Hermann Rorschach, artista
O psiquiatra e psicanalista suiço Hermann Rorschach (Foto: Reprodução)
Há cem anos, o psiquiatra e psicanalista suíço Hermann Rorschach publicou o estudo que o tornaria extremamente célebre. Rorschach havia estudado psiquiatria com Eugen Bleuler e Carl Gustav Jung; mas logo manifestou entusiasmo pelo freudismo. Escrito em Herisau nos últimos três anos de sua vida (ele faleceu com apenas 37 anos, por complicações de uma apendicite), o trabalho recebeu o nome de Psicodiagnóstico (Psychodiagnostik).
Em Dicionário de psicanálise, Elisabeth Roudinesco e Michel Plon resumiram o método de Rorschach como um “teste projetivo, destinado a explorar o mecanismo das representações imaginárias da criança e do adulto, fazendo-os falar por associações verbais”; uma fala que se construía a partir da interpretação de padrões de manchas simétricas, que eram obtidos por meio de um procedimento tão estético quanto lúdico, já que cada padrão, cada mancha era o resultado da dobra de uma lâmina de papel com tinta no centro. O tratado se inspirava “no método junguiano, no estudo experimental de [Justinius] Kerner e na concepção freudiana do inconsciente”. E sobre esses aspectos estéticos e lúdicos, indissociáveis da biografia de Rorschach, Elisabeth Roudinesco e Michel Plon anotaram:
“Nascido em Zurique em uma velha família protestante do cantão de Turgóvia, Hermann Rorschach manifestou muito cedo um gosto acentuado pelo desenho. Foi apelidado ‘Klex’ por seus colegas de escola, pois era muito hábil no jogo da kleksografia (jogo das manchas de tinta), difundido entre os alunos e conhecido desde que Justinius Kerner (1786-1862) publicara em 1857 Kleksographien, uma série de desenhos obtidos a partir de manchas, e poemas inspirados por estas. O jogo consistia em fazer manchas em uma folha de papel, que era dobrada de modo que as manchas tomavam formas diversas: objetos, animais, plantas etc.”
Obviamente, nesse jogo de imagens e projeções, Rorschach não poderia prever as associações em torno do seu nome e do seu trabalho, de acordo com as derivas das leituras e do tempo. Como saber que, a posteriori, viriam a ressituar seu método, num deslocamento que ao mesmo tempo o validava e negava? Isso porque, numa dessas ironias da História, nas décadas de 1950 e 1960, artistas e críticos de diferentes países associariam seu teste ao que deveria ser rejeitado entre as propostas das vanguardas então em disputa pela hegemonia do campo das artes visuais. Entre esses críticos da “arte Rorschach” estavam, por exemplo, Mário Pedrosa e Ferreira Gullar, no Brasil, e León Ferrari, na Argentina.
À exceção de Ferrari, na década de 1950, prevalecia entre esses intérpretes o alinhamento com os rigores da abstração geométrica ou, ainda, com os princípios formais do concretismo e seus vocabulários supostamente articuladores dos projetos de modernização nacional com as formas mais depuradas do modernismo europeu (à la Bauhaus e seus continuadores, no caso). Tal alinhamento, como sabemos, foi sustentado por uma rede de legitimações e de institucionalizações do paradigma construtivo, contando com protagonistas como Sérgio Milliet, Niomar Muniz Sodré, Tomás Maldonado, Jorge Romero Brest, entre outros. Como escreveu María Amalia García, “a racionalidade geométrica descoberta pela produção industrial parecia capaz de apreender harmoniosamente a ordem social. Aos objetos elaborados industrialmente, assim como aos ambientes edificados, conferiu-se um poder transformador da percepção e da ação coletiva”. Para aqueles comprometidos com essa racionalidade totalizadora, a “arte Rorschach” movia-se na contramão de tal progressismo, devendo ser recusada, portanto, como proposta de vanguarda.
Décadas após sua morte, rendido pelas contingências culturais e suas intrincadas batalhas simbólicas, Rorschach teria seu nome e seu método apropriados para a desqualificação de uma ampla e heterogênea série de obras e artistas. Estava assim ajuizada essa plástica aparentemente caótica ou informe, excessivamente impulsiva ou mesmo irracional, elaborada a partir de manchas de tinta; essa pluralidade expressiva, associada facilmente a projeções tão díspares, como a subjetividade romântica, o niilismo do pós-guerra, as caligrafias chinesa e japonesa, o automatismo surrealista, o espiritualismo Zen e os impulsos da “anti-arte” dadaísta; enfim, essa arte que ficou mais conhecida, nos meios artísticos, com os nomes de informalismo, abstração lírica, tachismo, expressionismo abstrato ou gestual, e que não obstante encontrou prestígio internacional e regional, notadamente nas Bienais de São Paulo de 1957 e 1959, que destacaram artistas como Jackson Pollock, Fayga Ostrower, Fernando Lemos, Wega Nery e Manabu Mabe.
“A ofensiva tachista e informal já ocupa o acampamento de Ibirapuera”, escreveria Mário Pedrosa a respeito da Bienal de 1959, receoso de o Brasil estar negligenciando a sua autêntica vocação construtiva com essa arte sem rigor formal, sem ordem, sem disciplina. Para Pedrosa, as pinturas dessa corrente internacional eram “uma espécie de teste Rorschach para a interpretação das almas angustiadas das classes médias urbanas de todo o mundo”, e o que se via, com isso, era uma geração “tomada por uma vaga de ensimesmamento solipsista”.
Em semelhante contexto, talvez pudéssemos dizer que se o trabalho de Rorschach com as manchas de tinta seria muito respeitado e divulgado no campo da medicina, ele seria impugnado no campo que, em sentido estrito, mais imediatamente o tocava, quer dizer, enquanto exercício plástico, como proposição de uma experiência estética que, de resto, fora elaborada por alguém que parece ter cogitado, mesmo, seguir o caminho artístico, hesitando até decliná-lo pela medicina.
No entanto, creio que essa situação diz algo mais: ela aponta como, em torno do fenômeno estético, o sensível e o sensato não encontram facilmente uma solução de continuidade. Remetendo aos nossos sentidos, e portanto aos afetos, ao corpo em contado com o mundo e com o outro, o estético é, por excelência, o que não pode ser contido em campos autônomos.
Malogrado artista ou notório psicanalista, Rorschach tornou-se, a seu modo, um eminente pintor de quadros – poderíamos dizer que chegando mesmo a assinar, postumamente, uma série de obras. Em outras palavras, talvez seja mais preciso afirmar que, jogando com os limites do possível, Rorschach teria encontrado sua maneira de dar potência a todo acontecimento que, em sua emergência, em seu vir-a-ser, não pode ser apropriado por conceitos ou significados, afinal resistindo a uma interpretação, seja ela primeira ou última. Torna-se importante, neste caso, um comentário como o de Ewald Bohm, a respeito dos usos do método de Rorschach:
“Com o passar do tempo, inúmeras modificações foram introduzidas, não se sabe se para melhor ou para pior. E hoje é ‘moderno’ quantificar tudo, mas o teste de Rorschach, pelo menos em sua forma primitiva, não permite uma quantificação. Se, portanto, a possibilidade de medição for considerada um requisito para a verdadeira ciência (o que ainda não é certo de qualquer maneira), o método de Rorschach não seria uma ciência, mas sim uma arte”.
Nas lâminas e no método de Rorschach pode ser acompanhado um acontecimento estético que – a despeito das regras, valorações e juízos históricos – segue, nos tempos, seu próprio passo, na medida em que é reatualizado em cada processo de produção e leitura das imagens. Esse acontecimento sem dúvida tem uma força disruptiva: com essas manchas de tinta – manchas feitas com arte, com técnica (ars, techné) – que interrogam a cada vez o que sabemos e o que não sabemos, o que somos e o que não somos, vemos vacilarem a suposta autonomia da arte e a lógica do progresso histórico. No lugar das certezas (como as esgrimidas em torno do “moderno”), vemos emergir a contingência dos significados que projetamos sobre as imagens da cultura, ou seja, abre-se novamente, sob os nossos pés, o fundamento ausente que afinal sustenta nossas sociedades e é colocado em jogo, reiteradamente, em nossas decisões.
Artur de Vargas Giorgi é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)