BAUHAUS 100: A sturm blond e a Bauhaus

BAUHAUS 100: A sturm blond e a Bauhaus
Tipo “universal” apresentado pelo designer Herbert Bayer em 1925 com o nome 'sturm blond' (Foto: Reprodução)

 

tomo a liberdade de começar este texto usando uma letra minúscula, inspirado pela tipografia sturm blond, desenhada em 1925 por Herbert Bayer, ex-aluno e também diretor da oficina de tipografia e publicidade da Bauhaus. A fonte sturm blond é um ponto de partida icônico para descrever os princípios que a Bauhaus pregava 100 anos atrás, quando foi fundada na Alemanha, em 1919. Entre várias características relevantes, a mais evidente e impressionante dessa fonte é que ela não tem maiúsculas. Diversos foram os argumentos do tipógrafo para essa tomada de decisão:

“Para justificar a redução à caixa-baixa, Bayer argumentava que a palavra falada não fazia distinção entre maiúsculas e minúsculas. As versais seriam então desnecessárias; além disso, também se facilitava a aprendizagem da leitura na escola primária, o tipógrafo economizava espaço de armazenagem para os tipos etc. etc.” 

Seus argumentos nos mostram um pensamento totalmente sistemático e abrangente das questões com que a sociedade lidava na época: a recuperação da derrota traumática na Primeira Guerra e os escassos recursos que o país tinha para o projeto de reconstrução. Essa lógica se repete em diversos projetos da Bauhaus, desde seus móveis sem ornamentos e pouca diversidade de materiais – como a icônica cadeira Wassily, de Marcel Breuer – até o próprio edifício da escola em Dessau, projetado por Walter Gropius, com traços retos e objetivos.

Os pensamentos projetivos da Bauhaus, sobre poupar recursos, evocam uma temática contemporânea importante e presente em discussões de qualquer área de estudo na atualidade: a sustentabilidade. Hoje, pensar qualquer projeto de maneira inteligente, que permita o melhor aproveitamento de recursos, é uma demanda muito relevante em nossa vivência laboral. Se antes, limitados pelas consequências da guerra, os designers da Bauhaus tiveram que reinventar o modo de produzir casas e objetos, hoje, a prenunciada escassez de recursos naturais, como água potável ou combustíveis fósseis, faz com que direcionemos nossos esforços para uma lógica produtiva baseada no uso consciente de recursos – tão necessária agora quanto um século atrás. Além disso, não apenas preocupada com o desenho do objeto em si, a Bauhaus tinha como objetivo alterar o modo de vida da sociedade da época por meio de seus projetos. Há um século a situação do planeta forçou-os a pensar sobre economia do metal usado na produção de um móvel, enquanto hoje os dados que temos a respeito de nosso planeta nos chamam à reflexão para a quantidade de carne que consumimos, se a origem de nossas roupas é digna e tantos outros temas que permeiam o campo da sobrevivência humana num futuro próximo.

Em adição, pensando novamente na tipografia de Bayer, podemos mencionar um dado muito relevante sobre seu criador: ele foi aluno da Bauhaus entre 1921 e 1923, período que se encaixa na primeira fase da Bauhaus (1919-1923).  O ensino, então, era muito pautado no plano didático desenvolvido por Walter Gropius e encabeçado por outros artistas, como Paul Klee, Kandinski e Johannes Itten. Este último, quando em seu curso preparatório para a escola (Vorkurs), estimulava seus alunos a experimentarem cores, formas, materiais e a se inspirarem em conceitos abstratos, possibilitando assim que exercitassem sua criatividade para que posteriormente a usassem com liberdade. Naquele ambiente, o aprendizado se dava por meio de aulas práticas nas oficinas da escola, e o professor era um facilitador, ou seja, não exercia a hierarquia de mestre detentor do conhecimento. É interessante pensar que talvez a falta de letras maiúsculas na fonte que Bayer desenhou tenha sido influenciada por essa horizontalidade e quebra de hierarquias do ensino na escola onde o designer estudou.

O plano pedagógico da Bauhaus, influência no ensino de arquitetura e design até hoje, principalmente no Brasil, como diz o texto de Claudia Cendales Paredes “Estilo Bauhaus na América do Sul”, publicado na revista on-line Humboldt, tem uma relação com a forma como repensamos a pedagogia nas escolas nos dias atuais. O ensino pela prática, pautado no cotidiano do estudante, é um dos temas recorrentes de Paulo Freire, pedagogo brasileiro de influência mundial no assunto. Quando ele propõe alfabetizar adultos usando palavras do dia a dia laboral deles, por permitirem reconhecimento e proximidade, Paulo Freire referencia como o curso de desenho industrial da Bauhaus estava pautado em ensinar projeto nas oficinas de madeira, metal, vidro e outros materiais. O professor como um mediador do conhecimento é uma ideia contemporânea muito discutida em vários sistemas de ensino pelo mundo. Já se sabe que a hierarquia imposta dentro das salas de aulas, onde o professor seria a letra maiúscula entre seu alfabeto de alunos, não é a maneira mais efetiva de as escolas serem inclusivas e fazerem com que seus alunos se interessem pelos conteúdos.

Além do mais, romper com os métodos tradicionais de viver era, com certeza, um dos costumes do corpo de alunos e professores da Bauhaus.  Na tipografia sturm blond percebemos o nível de utopia no pensamento do coletivo. A fonte é considerada experimental por esta razão: para o contexto em que foi criada, talvez ela não se encaixasse nos padrões de uma fonte comercializável, por não atender às expectativas do que uma família tipográfica deveria ser, mas com certeza foi projetada para um futuro idealizado por seu criador, numa escala quase imaginária. Repensar uma sociedade igualitária e justa foi o que tornou a escola de design também um ícone de resistência ao regime nazista, que estava se instaurando na Alemanha e que forçou a escola a fechar suas portas em 1933, por considerar seus trabalhos degenerados. 

Seu tom silencioso e elegante, sua falta de adornos que não remetem de maneira alguma à velha burguesia europeia, mas sim a um futuro democrático e universal, é o que faz da sturm blond uma tradução muito bela do que a Bauhaus representou  e representa até hoje para a cultura ocidental. A ideia de pensar que um estudante da Bauhaus preferiria projetar um conjunto de cadeiras para o dia a dia de uma família do que um trono para um rei incita atualmente a reflexão sobre a relevância de nossos projetos. Medir os propósitos dos trabalhos nos quais colocamos nossos esforços diariamente é mais do que de extrema importância: é um ato político resistente às ondas de retrocesso que diversas nações, como a brasileira, têm vivenciado. Inspirar-se em atitudes aparentemente pequenas, porém tão relevantes quanto eliminar as letras maiúsculas de um alfabeto, como Herbert Bayer fez, é uma  ação cotidiana que pode deixar marcas tão duradouras e humanitárias como a Bauhaus deixou em seu curto, porém extremamente intenso, tempo de existência. 

OSCAR NUNES é  artista visual e diretor de arte da Casa Natura Musical. Foi um dos vencedores do concurso Bauhaus 100, uma parceria da Revista Cult com a Revista Humboldt, do Instituto Goethe, sobre 
os 100 anos da Bauhaus: goethe.de/brasil/bauhaus.


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