Arcas de Babel: Guilherme Gontijo traduz hieróglifos egípcios
Guilherme Gontijo traduz hieróglifos egípcios dos séculos XII e XI a. C.
A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto a um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.
A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.
Hoje, o poeta, tradutor e professor da UFPR Guilherme Gontijo Flores nos leva ao Antigo Egito com a recriação de versos de amor dos séculos XII e XI a. C.
Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) é autor dos poemas carvão :: capim, do romance História de Joia e do ensaio Algo infiel, em parceria com Rodrigo Gonçalves, entre outros. Traduziu ‘A anatomia da melancolia’, de Robert Burton, ‘Elegias de Sexto Propércio’ e ‘Safo: fragmentos completos’, entre outros. É coeditor do blog-revista Escamandro e membro do grupo Pecora Loca, dedicado a tradução e(m) performance.
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Há alguns anos venho traduzindo sistematicamente todos os cantos amorosos do Antigo Egito, curiosamente concentrados nos séculos XII e XI a.C. Meu plano é publicá-los hibridamente como um livro de poemas meus, porém o tempo inteiro assumindo seu caráter tradutório. Fato importante é que, apesar de eu ter estudado sozinho o egípcio médio e um pouco de egípcio novo, não posso considerar de fato que eu tenha conhecimento eficiente da língua. Por isso, consultei mais de dez traduções para línguas diversas, além de transcrições variadas dos textos. Uma parte das minhas reflexões saiu no artigo “Antes do original”, publicado ano passado, onde o leitor pode ver um pouco mais das ideias por trás desta recriação. Uma pequena série de três poemas apareceu também há dois anos na revista Ruído manifesto já como poema com minha assinatura hibridizada; aqui inverto e assino hibridamente como tradutor.
Dois pontos eu gostaria de destacar.
- Em primeiro lugar, como que por contágio poético, venho escrevendo esses poemas-traduções numa linguagem similar à que empreguei para verter todos os fragmentos de Safo de Lesbos. Mesmo ciente da distância linguística e temporal (os poemas egípcios são cerca de meio milênio mais antigos que Safo), são dois repertórios que notavelmente produziam uma poética da leveza, capaz de se sustentar no canto, diferenciando-se assim das supostas linguagens elevadas de sua época (os hinos religiosos, no Egito, a épica heroica, na Grécia). O objetivo é produzir algo que soe como poesia e canção para o presente.
- Há uma longa discussão sobre a presença ou não de métrica na poesia egípcia. Como é possível ver na transcrição do papiro Chester Beatty, o poema não se apresenta visualmente em verso, sendo escrito de modo corrido, como a prosa; no entanto, os pontos vermelhos marcam respirações com certa regularidade, a ponto de estudiosos tentarem descobrir qual seria a unidade rítmica por trás deles. O problema é que a escrita egípcia não apresenta vogais, daí é impossível, por exemplo, avaliar se haveria um jogo de tônicas e átonas ou de longas e breves, como em outras línguas. Sigo, no fim das contas, a sugestão do egiptólogo Bernard Mathieu, que postula uma tendência heptamétrica, ou seja, feita por quatro acentos principais no primeiro verso e três no segundo verso. Com isso, proponho versos de números pares de sílaba, em geral entre 4 e 8 sílabas poéticas, para criar uma regularidade fluida; algo que me lembra os versos de Il dolore de Giuseppe Ungaretti. – Guilherme Gontijo Flores
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Canção de Nakht-Sobek
Começam doces versos achados na coletânea por Nakht-Sobek escriba da Necrópole
1
quando trouxer aquilo até o lar da irmã • num jorro em sua gruta •
o portão estará desferrolhado • a pérgola o transbordará •
ceda canto dança cerveja vinho • de tua melhor reserva •
excite assim os seus sentidos • leve essa noite ao cabo •
ela dirá me tome em teu abraço • juntos até a aurora ?
2
quando trouxer aquilo ao hall da irmã • sozinha sem ninguém •
complete o teu desejo pela tranca • o salão vai tremer •
o céu deve descer em leve brisa • pelo sopro do vento
levando seu perfume • que inunda em cheiros • excita tudo em todos •
a Dourada a envia como oferta • pra repletar teus dias ?
3
que experta minha irmã lançando o laço • porém não prende gado •
com seu cabelo é que me enlaça • com seu olhar me puxa •
com seu colar é que me trava • com seu sinete me chancela ?
4
por que você questiona o coração • persiga abrace a moça •
Amon vive • sou eu que te procuro • com a roupa nos ombros ?
5
meu irmão vai à fonte • seu pé pisa a ribeira •
prepara o altar do dia • com a melhor cerveja •
revela os tons do torso • é mais alto que largo ?
6
mas tudo que passei com minha irmã • acaso vou calar •
me deixou plantado à porta da casa • enquanto ela adentrava •
nem me falou bem-vindo lindo • fechou o ouvido à minha noite ?
7
passei num transe em sua porta • bati ninguém abriu •
que bela noite pro porteiro • ah trinco eu vou te abrir •
tranca você é meu destino • é meu demônio •
por dentro nosso boi será imolado • tranca não faça resistência •
imolo um boi ao trinco • bezerro ao limiar •
ganso gordo ao umbral • banhas à padieira •
mas os melhores cortes desse boi • vão para o Pai das Artes
pra nos fazer trinco de juncos • tranca de palha •
assim a todo instante o irmão iria • achar aberta a casa dela •
achar a cama com lençóis de linho • uma mocinha linda •
a moça vai dizer a casa • pertence ao filho do vizir ?
Notas à Canção de Nakht-Sobek (Papiro Chester Beatty 1, poema 3)
Como vemos no texto inicial, Nakht-Sobek não é o autor dos poemas, mas apenas o escriba que os transcreveu; é provável que ele tenha vivido na 20a. dinastia (segunda metade do séc. XII a.C.). Navrátilová & Landgráfová (2009, p. 222) sugerem que Nakht-Sobek poderia ser até uma espécie de usurpador, já que o texto em que seu nome aparece está escrito sobre outro apagado.
1
aquilo, como observa Fox, aparece um designativo neutro inexplicado, que pode ter sentido sexual, por isso optei por “aquilo”. Bresciani entende que o pronome retomaria o título do poema, “os doces ditos”.
4
Amon, ou Amun, é um deus dos ventos, porém no Novo Reino ele passa a ser o deus principal, uma espécie de chefe-de-estado divino. Seu nome significa “o oculto”. Aqui ele funciona como uma espécie de juramento.
5
prepara o altar do dia / com a melhor cerveja. Os versos estão em um estado de difícil decifração, crio ao meu modo, entre as traduções.
7
demônio, o termo original akh em geral indica os espírito de um morto, ou mesmo um gênio, mesmo um bom gênio (assim quase todos tradutores verteram o termo), como um daímon grego; mas creio aqui, pelo contexto, que seja mais um demônio, no sentido de um dáimon nefasto, nisso sigo os comentários de Michael Fox.
Pai das artes é um epíteto possível de Ptah, deus demiurgo de Mênfis, patrono das artes e juiz dos mortos. Uma outra possibilidade seria ter por “O carpinteiro”, mas sigo a sugestão de Mathieu.
filho do vizir. Este verso está seriamente afetado em seu entendimento. Sigo a reconstrução de Pascal Vernus, que parece a de Emanuel Araújo. O cargo de vizir era responsável pela administração geral de uma cidade, um equivalente do nosso prefeito. Vernus ainda supõe que a jovem aqui sugeriria não que de fato pertenceria à casa do vizir, mas sim que sua preparação seria digna de um vizir. Bresciani sugere que possa haver aqui um trocadilho com o nome do amado.
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