Graciliano Ramos e o cinema

Graciliano Ramos e o cinema
Cena de 'Vidas secas', 1963, de Nelson Pereira dos Santos (Divulgação)

 

Georg Lukács sugeriu que muitas vezes obras de arte são revitalizadas quando respondem a ansiedades ou preocupações semelhantes àquelas da época em que foram originalmente produzidas. Isto é certamente o caso com as mais marcantes adaptações de Graciliano Ramos. Quando o Cinema Novo surgiu nos anos 1960, encontrou modelos culturais internos no movimento modernista dos anos 1920, com sua experimentação com a linguagem artística e seu nacionalismo cultural, e no romance social dos anos 1930, com o seu engajamento político. Nessa veia, a obra de Graciliano Ramos foi central. Três adaptações de livros de Graciliano, dirigidos por dois dos fundadores do Cinema Novo, são obras-primas do cinema brasileiro: Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), São Bernardo (Leon Hirszman, 1972) e Memórias do cárcere (Nelson Pereira dos Santos, 1984). Vale lembrar que outras obras de Graciliano também foram levadas ao cinema ou à televisão, caso de Insônia (1980), longa composto de três curtas baseados em contos, e Alexandre e outros heróis (TV; Luiz Fernando Carvalho, 2013).

Esses filmes são exemplares por sua intervenção em circunstâncias sociopolíticas específicas em três momentos da história recente do país. Vidas secas foi lançado no período antes do golpe de Estado de 1964. São Bernardo surgiu no período mais repressivo da ditadura militar. E Memórias do cárcere foi produzido durante a abertura política que levaria à redemocratização. Juntos, os três revelam a atualidade de Graciliano, as conexões importantes entre a produção cinematográfica do período pós-1960 e o romance social dos anos 1930, e as semelhanças entre as duas épocas.

Quando Nelson Pereira dos Santos filmou Vidas secas (1938), seu objetivo era não apenas fazer uma homenagem ao romancista e uma adaptação de uma obra-prima literária; também queria participar do debate, que acontecia na época, sobre a reforma agrária: “Naquele momento havia grandes discussões no Brasil sobre o problema agrário. Pensei que o cinema também devia participar do debate, e que a minha contribuição poderia ser a de um cineasta que rejeitasse uma visão sentimentalizada”.

No filme, o diretor reorganiza o material básico do romance numa narrativa algo mais linear. Ao mesmo tempo, encontra equivalências criativas ao estilo de Graciliano, particularmente em relação ao ponto de vista narrativo. O romance usa um estilo indireto livre que permite ao narrador captar os pensamentos e sentimentos das personagens, inclusive da cachorra Baleia, sem sair da terceira pessoa, o que resulta numa combinação eficaz de objetividade e subjetividade.

No filme, o discurso indireto livre dá lugar a imagens da incapacidade das personagens de articularem verbalmente os seus pensamentos, porque mal falam. Ao mesmo tempo, consegue transmitir a perspectiva de todos os membros da família através do uso de câmera subjetiva e do campo contracampo. Também usa o movimento da câmera, ângulo, foco e exposição para realçar esta visão subjetiva.

Vidas secas representa perfeitamente o que Glauber Rocha descreveu como uma “estética da fome”. Lida com a questão da fome desde as primeiras sequências, mas também incorpora a escassez de recursos como parte da sua elaboração estética. Como escreveu Ismail Xavier, em vez de imitar o cinema dominante, o que faria o seu trabalho apenas sintomático do subdesenvolvimento, os cinema-novistas resolveram resistir, transformando a escassez em elemento significante. O filme de Nelson Pereira dos Santos, com seu sóbrio realismo crítico, representa o melhor da primeira fase do Cinema Novo. Consegue levar o romance de Graciliano à tela de forma altamente criativa, mantendo as preocupações centrais do romance ao mesmo tempo que mostra a sua relevância para a conjuntura sociopolítica do começo dos anos 1960.

Cena do filme ‘São Bernardo’, com Isabel Ribeiro e Othon Bastos, como Madalena e Paulo Honório, respectivamente, 1971 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F06-009)
Cena do filme ‘São Bernardo’, com Isabel Ribeiro e Othon Bastos, como Madalena e Paulo Honório, respectivamente, 1971 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F06-009)

Em 1971, três anos depois da imposição do AI-5, Leon Hirszman embarcou na produção de uma versão de S. Bernardo. Por causa da censura, discussões diretas de questões sociais e políticas eram difíceis, e o cinema brasileiro muitas vezes se caracterizava por um discurso alegórico e às vezes hermético. São Bernardo marca uma volta ao realismo crítico que caracterizava alguns dos melhores filmes do Cinema Novo nos anos 1960.

Completado em 1972, o filme foi lançado em 1973, depois de ser detido pela censura por sete meses. Em suas negociações com os censores, Hirszman argumentou que o filme era uma adaptação fiel de um clássico da literatura brasileira e um tributo apropriado ao Graciliano no octogésimo aniversário do seu nascimento. De certo modo, o que tornou o lançamento do filme problemático foi exatamente a sua fidelidade ao romance. Se por um lado São Bernardo faz uma declaração universal a respeito das relações entre propriedade e personalidade, por outro faz uma asserção a respeito do Brasil do chamado “milagre econômico”. Como o diretor disse: “O romance de Graciliano Ramos é tão rico que ultrapassa suas limitações temporais e chega a nossos dias com seu relato de um homem que se dedica ao processo de acumulação capitalista”.

Tanto o romance quanto o filme abrem com uma metáfora econômica. No primeiro capítulo do romance, o protagonista Paulo Honório conta que havia proposto a composição de um romance baseada numa divisão de trabalho entre vários amigos. O filme, por sua vez, abre com a imagem de uma cédula de cinco mil-réis, assim enfatizando o tema central das duas obras: a obsessão pela acumulação de propriedade e capital e a resultante reificação de seres humanos. A obsessão de Paulo Honório com a propriedade leva não apenas ao suicídio de Madalena, mas também a sua própria destruição como ser humano e a sua solidão existencial. A última imagem do filme contrasta Paulo Honório, sozinho, com os trabalhadores, que trabalham e cantam juntos.

São Bernardo se compõe em grande parte de planos-sequência filmados com uma câmera estática, o que traduz a imobilidade final do protagonista e abre espaço para a reflexão por parte do espectador. Ao mesmo tempo, expressa cinematograficamente o estilo esparso, econômico, e autorreflexivo do romance. O filme São Bernardo – assim como o romance original – analisa os efeitos do processo de acumulação no ser humano, inclusive a alienação, violência e destruição, de si mesmo e dos outros, que fazem parte do sistema econômico regente nos anos 1930 assim como nos anos 1970.

‘Memórias do Cárcere’ (Divulga)
Bastidores de ‘Memórias do Cárcere’, de Nelson Pereira dos Santos (Divulgação)

A adaptação de Memórias do cárcere (1953), por Nelson Pereira dos Santos, continua a tradição política dos dois filmes anteriores, transformando-se num símbolo cinematográfico do processo que levaria à volta da democracia. No livro, Graciliano relata sua experiência como prisioneiro político entre março de 1936 e janeiro de 1937, sem nunca ter sido acusado formalmente. É uma denúncia eloquente do abuso do poder sob o autoritarismo e das condições degradantes e abjetas a que foram submetidos o autor e muitos outros opositores do regime. O filme dá novo alento ao relato de Graciliano, de modo a refletir criticamente sobre o Brasil e sua história de autoritarismo. Memórias do cárcere oferece a prisão como metáfora da sociedade brasileira, criando um paralelo entre o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e a ditadura militar que se impôs no país em 1964.

A série de prisões que aparecem no filme confinam homens e mulheres de todas as classes e profissões: intelectuais, soldados, trabalhadores manuais, ladrões, políticos, religiosos, e assassinos. Apesar das suas muitas diferenças, eles têm em comum o fato de serem oprimidos por um sistema político arbitrário e autoritário que impõe sua vontade através da força, submetendo-os a um mundo subterrâneo de intolerância e violência, tão representativo dos porões da ditadura pós-1964 quanto do regime Vargas nos anos 1930.

Memórias do cárcere é um de vários filmes que expressam o desejo de liberdade política num momento da abertura – e coincidente com o movimento Diretas Já – que levaria à redemocratização. Como o livro, denuncia o autoritarismo em todas as suas formas. A trilha sonora, por exemplo, recupera para o movimento democrático o Hino Nacional, que havia sido usado durante a ditadura para tachar a oposição de não patriótica.

Mas os temas centrais de Memórias do cárcere são a liberdade, não a opressão; a resistência, e não a submissão. A cabeça raspada de Graciliano é um símbolo do tratamento ignominioso que regimes autoritários impõem aos dissidentes, suspeitos ou reais. A determinação de Graciliano de registrar a sua experiência, de resistir, representa uma reafirmação da sua fé na participação política e na democracia. Sua liberação é uma conquista coletiva, não individual.

No filme, Nelson Pereira dos Santos discute não apenas a natureza autoritária da sociedade brasileira, mas também o papel do escritor e artista no debate e na resistência política. Como Ismail Xavier observa, ao focalizar o escritor, que é frequentemente visto isolado dos outros presos, pelo menos em termos de espírito se não de espaço, o filme parece afirmar a missão da literatura – e, por extensão, do cinema – como meio de documentar a época, a memória e a história. Reforça a importância do ato de escrever e do intelectual no processo social. É significativo que, perto do final do filme, os outros presos se unem com o escritor, escondendo as suas memórias dos guardas. Assim, Graciliano deixa a prisão em triunfo, já que a brutalidade dos guardas e a opressão da vida na prisão deram um novo sentido a sua vida e a sua literatura. Como escreveu a sua filha, Clara Ramos, ele saiu da prisão outro Graciliano, “um homem reestruturado ideologicamente”.

Com a sua visão crítica e sua dedicação intransigente a sua arte, que é exemplar por sua combinação do político e do estético, Graciliano serviu de modelo importante para novas gerações de artistas e fonte de inspiração para intelectuais e artistas em décadas subsequentes que tentaram entender os mecanismos operantes da sociedade brasileira. Os três filmes mencionados aqui são exemplos perfeitos do impacto e da importância duradouros do escritor.


Randal Johnson é professor da Universidade da Califórnia, autor de Cinema novo x 5 (University of Texas Press, 2012), entre outros


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