Graciliano Ramos entre “a gramática e a lei”

Graciliano Ramos entre “a gramática e a lei”
Graciliano Ramos: observador perspicaz, é também exímio decodificador do nosso labirinto existencial (Foto: Kurt Klagsbrunn)

 

“Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos. Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, há ainda um outro querer-dizer, e nada será nunca esgotado…”
Jacques Lacan

 

A prisão do escritor alagoano Graciliano Ramos pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas completa 85 anos nesta quarta, dia 3 de março. O “velho Graça”, como era chamado pelos amigos, muitos deles também escritores, como José Lins do Rego e Raquel de Queiroz, foi encarcerado pela polícia sem formalização de acusação ou mesmo apresentação de provas de seu envolvimento com grupos opositores do regime ditatorial. Graciliano foi vítima de um antiquíssimo e infelizmente tantas vezes repetido ritual de exclusão pelo poder do estado. Coube ao escritor a narrativa do período em que esteve preso e que resultou na publicação póstuma do livro Memórias do cárcere, em 1953, ano da morte de Graciliano, aos 60 anos. A violência deixou marcas profundas em seu corpo, traços irremediáveis que também foram testemunhados pelo arranjo escrito da palavra.

Observador fino e perspicaz, Graciliano é também um exímio decodificador das mazelas sociais e do labirinto existencial no qual nos encontramos. Coisa muito enredada, complicação inextricável: o labirinto, suas salas subterrâneas e superfícies vertiginosas, porão de navio sujo e fétido, metáfora da vida tantas vezes derrotada e afogada num mar de sofrimento psíquico.

Essa escritura é uma tarefa que exige cuidado, pois as armadilhas no caminho são muitas: o gesto preciso da decodificação carrega, de certo modo, a magia da transposição dos sentidos de um lugar para outro. A gramática responde às tramas da lei, linguagem de águas turvas, mas a vida desde sempre atravessada não se deixa apagar: na pele do texto carimbado pela ordem social cabe à palavra revelar os segredos que se escondem na sutileza de seus interstícios. Na pena do escritor alagoano, o trânsito da experiência que deságua na linguagem – linguagem da experiência – não embaralha os sentidos da passagem que resulta na experiência da linguagem. “Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos.” Assim se inicia o relado das Memórias…

Para a composição de suas memórias do período em que foi preso e sequestrado pela ditadura do Estado Novo, nos anos 1936-37, Graciliano não pôde contar com os registros escritos no tempo/espaço do cárcere. Ele temia por complicações maiores com as autoridades militares: “Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água.”

A tonalidade da experiência vivenciada pelo escritor em seus longos dias de confinamento está de tal forma incrustada no contorno das palavras que se arriscam em dizê-la que, no fim das contas, palavra da experiência, experiência da palavra, acontecimentos separados no curso do tempo, confundem-se no movimento indistinto que revela sua profunda condição de desamparo. Decodificação alquímica que vai além da simples intenção de registro dos fatos; a palavra escrita transborda em sua precisão fugidia a vida do escritor em tempos sombrios.

 

“Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.”

 

Se o trecho das Memórias explicita a natureza do obstáculo, em que Graciliano compara a gramática à lei (reduzindo-as ao gesto comum da opressão), há que se levar em conta também a liberdade proporcionada pelo fato de que ainda assim “nos podemos mexer”. A vida não se apaga no estreito encadeamento que irmana as regras da sintaxe e o regime de poder legal. Nestas poucas palavras, nos deparamos com um universo vastíssimo de significados que ilumina toda a obra do escritor. Por tudo isso, as Memórias do Cárcere ocupam o lugar que converge num mesmo ponto testemunho político e testamento literário.

Nos “estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”: o final da frase se revela um tanto enigmática e sinaliza para o que aqui se enxerga como a grande questão que anima a obra deste autor: enquanto houver linguagem, para o bem ou para o mal, “ainda nos podemos mexer”. Mas que linguagem? Certamente, não se trata do discurso dos quartéis, dos silêncios que residem atrás de cada ameaça. Um cano de ferro de uma arma prensada às costas da vítima pode “falar” a mais profunda verdade sobre a condição na qual se encontra: a pistola do soldado nas costas de Graciliano, à entrada no porão do barco Manaus, embarcação que o levou, junto a centenas de presos, da cidade do Recife ao Rio de Janeiro, revelou, de súbito, sua total precariedade, até então velada pela monótona rotina do quartel nos primeiros dias de prisão. A linguagem de que fala Graciliano, sintaxe singular, é aquela capaz de “dizer” o idioma do sujeito lançado à experiência de si mesmo, como diria Lacan, um “mais-além” da palavra.

Enfim, se quisermos acessar o idioma em que nos “fala” o escritor, devemos mergulhar em sua própria experiência de libertação: a palavra que reinscreve no texto as cores e os traços de seu universo existencial. Tal mergulho nos ajuda a enxergar mais de perto o modo como a dimensão do humano se realiza no âmbito da palavra. Entre uma infinidade de obstáculos, violências desmedidas, identificamos as leis e a gramática em que o escritor esteve enredado. Resta buscar em sua morada, sua linguagem, o momento em que seu ser transcende as amarras do texto e faz da palavra um gesto genuíno de transformação. Esse momento configura o encontro do ser com a linguagem que o constitui. Encontro em que os sentidos da existência realizam-se num modo de ser que é essencialmente palavra. Em suas Memórias, o escritor realiza a palavra que lhe restitui a capacidade de revelação, de levantar-se do golpe que intencionava suprimi-lo.

João Paulo Ayub Fonseca é psicanalista e doutor em Ciências Sociais pela Unicamp com tese intitulada “Arte é sangue, é carne – a riqueza e a miséria da palavra no romance de Graciliano Ramos”. Autor de Introdução à analítica do poder de Michel Foucault (Intermeios, 2015).


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