A arte pede misericórdia

A arte pede misericórdia
Graciliano, Rio de Janeiro, 1949 (Foto Kurt Klagsbrunn / Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F01-070)

 

Uma “obstinação concentrada” no “arranjo de ninharias”. Precisas e poéticas, ainda mais considerando que ninharia etimologicamente é criancice, tais expressões, do retrato memorialístico “Manhã”, traduzem a concepção de arte de Graciliano Ramos como trabalho imerso nas palavras e sensível à força de seres silenciados pela sociedade.

Escritas em 1938, depois de o escritor haver saído da prisão, a que fora levado, de Maceió para o Rio de Janeiro, em março de 1936 e onde permaneceu até janeiro de 1937, essas palavras foram publicadas em Infância, em 1945. No mesmo ano, o crítico Antonio Candido estampou no Diário de S. Paulo uma série de ensaios sobre a obra de Graciliano, depois recolhidos no livro Ficção e confissão. Inegável esse caminho da ficção para a confissão, cumpre compreender como a força do estilo do escritor, clássico e moderno, advém justamente de combinar circunspecção (olhar para fora, para a realidade e suas iniquidades), introspecção (olhar para dentro com vistas a analisar seus impasses) e respeito (olhar para trás), palavras estas com o mesmo specio de origem. Ou seja, a representação da realidade observada e experienciada, a expressão subjetiva confessional e ficcional, e o repertório inventivo formado de leituras e narrativas conhecidas se fundem na construção da arte de Graciliano. Tanto elementos confessionais comparecem artisticamente em sua ficção, como traços da dicção ficcional e da composição da alteridade perfazem a singularidade da escrita das memórias.

Se é fato que, depois de sair da prisão, quanto à produção romanesca Graciliano publicou apenas Vidas secas e se dedicou às memórias da infância e da cadeia (além dos contos de Insônia e de alguns dispersos, de A terra dos meninos pelados, Histórias de Alexandre, das crônicas e traduções), entende-se que a configuração da história de Fabiano e família, retirantes nordestinos, materializa a concepção de romance do autor, que pressupõe conhecer e experienciar a realidade representada. Já a realidade do escritor na então capital federal, o Rio de Janeiro, desde a sua “migração forçada”, marcando-se por fragmentação, acúmulo de tarefas intelectuais e necessidade financeira de publicar, coincidiu com a não publicação de novos romances. Graciliano tentou escrever um romance ambientado no Rio, mas “não sentia aquilo”: preferia a caatinga.

Eis que uma carta de 1935 deixa ver que ainda em Alagoas, antes da prisão, defrontou-se com este impasse: afeito ao romance realista à Balzac, pautado no fator econômico, vindo de publicar S. Bernardo, Graciliano sofre a impossibilidade de escrever mais um, insatisfeito diante da decadência do gênero, sobretudo quando considerava a produção panfletária dos soviéticos de então que descambava em noticiário. “Se ainda tentasse escrever um romance, provavelmente não me afastaria da gente mesquinha que há nos meus dois livros. É uma tristeza mexer com ela, mas não conheço outra. Suponho, porém, que não há perigo: não teremos reincidência”, afirma Graciliano em carta a Oscar Mendes. Ainda bem que houve “reincidência”: em 1936 saiu Angústia, com o autor no cárcere, e várias cartas de 1935 acompanham suas inquietações enquanto compunha a narrativa do pequeno funcionário assassino e das “figurinhas insignificantes”, nos tempos difíceis que anunciavam a Segunda Guerra e a sua prisão pelo Estado Novo.

O leitor de Graciliano se lembrará de que, justo a partir de 1935, segundo ele entendia, houve um declínio na produção de seus companheiros de romance social, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego, Amando Fontes. Tal percepção motivou o artigo “Decadência do romance brasileiro”, publicado em 1941 na Nueva Gazeta, de Montevidéu, e em 1946 em Literatura, do Rio de Janeiro; consta do volume Garranchos (2012).

“A arte é um ofício, uma técnica, e, como técnica, exige aprendizagem.” Traduzindo uma concepção de arte que pressupõe observação de modelos, trabalho e persistência, essas palavras, de Romain Rolland (1866-1944), são evocadas por Graciliano na carta inédita em livro que ora partilhamos com os leitores. Vale ressaltar que ele as retomou nos artigos “Os tostões do sr. Mário de Andrade”, de 1939, e “Uma palestra”, de 1952; neste recorda inclusive a enquete referida na carta, a respeito da literatura soviética.

A dimensão ética tanto do homem quanto do artista Graciliano também avulta na missiva. Ainda que imaginasse que uma eventual revolução social o levaria à fome e ao suicídio, ansiava por essa transformação ampla que promoveria o bem-estar geral dos trabalhadores. Mas para fomentar tal desenlace se recusava a adequar sua produção à cartilha do realismo socialista, preferindo fiar-se em um ideal de verossimilhança artística que englobava, em chave crítica, as contradições e complexidades da realidade que estava inscrita em sua história de vida. Nada de panfleto. Nada de noticiário.

O escritor aos 40 anos, em Maceió, 1942 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F01-048)
O escritor aos 40 anos, em Maceió, 1942 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F01-048)

Crítico literário e tradutor, Oscar Mendes era o destinatário da carta, a quem Graciliano agradecia um ensaio sobre S. Bernardo, intitulado “Egoísmo”, que saiu na Folha de Minas a 17 de janeiro de 1935. Segundo Gutemberg da Mota e Silva, que publicou a missiva no artigo “A revolução social me levaria à fome e ao suicídio”, no Jornal do Brasil, em 1980, Oscar Mendes a havia guardado “carinhosamente” e, apesar de ter demorado a divulgá-la, devido sobretudo aos elogios que lhe eram dirigidos, destacava a condenação do totalitarismo expressa pelo romancista na carta.

E agora todos poderemos ler esta missiva de Graciliano a Oscar Mendes, enviada de Maceió, a 5 de abril de 1935, e ficar com tal inquietude sobre as possibilidades e limites da arte e da realidade. Se o vazio de experiências do mundo, sua superficialidade individualista, suas intransigências e guerras tiram o desejo de escrever, forçam a crise do romance, ao mesmo tempo demandam o “arranjo de ninharias”, o olhar crítico para a realidade dos matutos, para seus silêncios e potencial de poesia, como Graciliano faria em Vidas secas, em 1938. Aqui um aperitivo para o volume de cartas inéditas de Graciliano Ramos que estamos organizando, a ser em breve publicado pela editora Record.

***

Maceió, 5 de abril de 1935

Recebi o número da Folha de Minas que trouxe o seu magnífico estudo sobre o meu S. Bernardo. Venho dar-lhe os agradecimentos e conversar um pouco, se isto não lhe desagrada.

Estamos longe do tempo em que os mais conceituados críticos nacionais eram uns sujeitos que ensinavam colocação de pronomes e sintaxe de regência. Ainda há uns idiotas que fazem crítica, infelizmente: o ano passado um deles descobriu que não sei conjugar verbos. Mas o certo é que, em geral, o Duque Estrada e outros semelhantes morreram.

A sua maneira de escrever me dá ideia de uma pua. Esta comparação é besta e muito repetida, mas agora não encontro outra: eu queria dizer que o senhor afasta com facilidade as letras miúdas, a madeira mole, que vira farelo, e chega num instante ao ponto duro onde o ferro enfia, ponto que fica muito abaixo das vistas ordinárias.

Estou de acordo com o senhor em várias das afirmações que faz no seu excelente artigo. Deixemos os elogios de parte: já lhe apresentei os agradecimentos. Acho, como o senhor, que transformar a literatura em cartaz, em instrumento de propaganda política, é horrível. Li umas novelas russas, modernas, e, francamente, não gostei.

O senhor deve ter visto uma enquete que se fez na Rússia o ano passado. Um dos quesitos era: “Qual a sua opinião a respeito da literatura soviética?”. Quase toda a gente respondeu que não conhecia a literatura soviética. E os que a conheciam amoitavam-se, usavam panos mornos. Romain Rolland, depois de rodeios, disse isto: “A arte é um ofício, uma técnica, e, como técnica, exige aprendizagem”.

A verdade é que muita gente se livra dessa dificuldade: o romance virou artigo de fundo e descambou em noticiário. Quanto a mim, penso como um dos meus personagens: “A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa”. Vejo com satisfação que Romain Rolland pensa também assim.

O senhor não quer nenhuma revolução. Eu desejo que as coisas mudem, embora me pareça que isto não me trará vantagem. Pergunto a mim mesmo que trabalho me dariam se o cataclismo que espero chegasse agora.

Não sendo operário, não poderia fabricar nenhum objeto decentemente. Faria um livro, com dificuldade, matutando, trocando palavras. Mas hoje existe o romance-cenário, que pretende ser uma espécie de literatura. Li um deles, russo, traduzido em francês, horrível. Junto a isso de nada serviriam as minhas letras, aprendidas no tempo em que a gente estudava Balzac.

Creio que a revolução social me levaria à fome e ao suicídio. Mas como, segundo o evangelho, nem só de literatura vive o homem, é razoável que se procure o bem-estar dos outros trabalhadores. Além disso, pode ser que o romance-artigo de fundo e o romance-noticiário sejam realmente, depois de aperfeiçoados, melhores que os antigos, extensos demais, pesadões. Quem sabe?

O que é certo é que não podemos honestamente apresentar cabras de eito, homens da bagaceira, discutindo reformas sociais. Em primeiro lugar, essa gente não se ocupa com semelhante assunto; depois os nossos escritores, burgueses, não poderiam penetrar a alma dos trabalhadores rurais.

Lins do Rego, que nasceu em engenho, apresentou alguns aspectos deles, mas ligeiramente. O que lhe interessa é o sofrimento do pequeno-burguês, decadente e cheio de fumaças, ignorante, vaidoso, inútil. Rachel de Queiroz tem algumas cenas de cadeia da roça, benfeitas, mas é possível que ali haja muita imaginação. Julgo que ninguém conhece bem a vida dos nossos matutos. Essas criaturas falam pouco diante de pessoas estranhas, são acanhadas. E não creio que existe nelas a consciência de classe a que Jorge Amado se refere. Vivi trinta anos em cidade pequena – não vi nada que se parecesse com revolta. Se ainda tentasse escrever um romance, provavelmente não me afastaria da gente mesquinha que há nos meus dois livros. É uma tristeza mexer com ela, mas não conheço outra. Suponho, porém, que não há perigo: não teremos reincidência.

Adeus. Considere-me um seu amigo e admirador.

Graciliano Ramos
Maceió, 5-4-1935
Rua do Macena, 159


Ieda Lebensztayn 
é doutora em Literatura Brasileira pela USP, autora de Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno 
e os meninos impossíveis (Hedra, 2010)

Thiago Mio Salla 
é doutor em Letras e em Ciências da Comunicação pela USP, professor da ECA-USP, autor de Garranchos – Textos Inéditos de Graciliano Ramos (Record, 2012), entre outros

 


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