Governo é comunicação, o resto é negociação e gestão
Um governo eficiente, como diz o pessoal do business, tem que fazer entregas. Entregar o que prometeu na campanha, talvez, mas, mais do que isso, entregar políticas públicas, providências, iniciativas, legislações e reformas que tenham impacto positivo e constatado pela percepção pública na vida do país.
Isso é o que se chama de política substantiva e um governo com substância. O resto é espuma, coisas para enganar ou orientar a vista, propaganda, que muita gente pensa que é nada, mas pode ser a condição de possibilidade de tudo.
Para fazer as entregas que de fato melhoram a vida das pessoas, contudo, o governo precisa também articular, negociar, construir níveis suficientes de apoio do parlamento e da sociedade civil, mas igualmente dos atores mais fortes dos setores representativos da sociedade, do jornalismo e dos formadores de opinião. É muita gente para agradar e dar agrados. É preciso compartilhar poder, formular acordos, convencer grupos de interesse, negociar politicamente e vender ideias. Fazer aliados e vender projetos é o que consome enorme energia de quem governa, mas governo que não tem apoio será presa fácil dos interesses adversários. Leão ferido é a festa das hienas.
Até aí, nenhuma surpresa. O que alguns ainda não entenderam é que para sobreviver, hoje, um governo tem que ser bem-sucedido na comunicação política. Sem ela não terá êxito nas negociações por apoio político nem na captura da benevolência da opinião pública, que são condições fundamentais para as entregas efetivas que um governo precisa fazer para sobreviver.
Comunicação política é simplesmente a atividade política que só se faz por meio da comunicação.
Não há metafísica nisto. Nos acostumamos nos últimos anos a ouvir que governos precisam “disputar as narrativas” sobre os problemas coletivos e sobre os fatos políticos, que presidentes lutam para ter a imagem mais conveniente para os papéis que eles pretendem representar para os políticos, os mercados e o eleitorado; que os partidos e as instituições precisam ir à luta todos os dias para disputar os tópicos presentes na agenda pública e as interpretações dominantes dos fatos políticos e das prioridades nacionais. Isto tudo é absolutamente verdade.
A comunicação política é justamente a disputa política pelas narrativas, pelas percepções que as pessoas têm do que está acontecendo ao seu redor, a luta para fazer com que o público coloque no topo de suas prioridades os problemas sociais para os quais um governo é capaz de dar respostas, a competição pelos enquadramentos dos fatos. Tudo isso que, no fim das contas, determina se uma proposta tem chances de sucesso no Parlamento, se uma agenda conseguirá se transformar em um projeto e ser aprovada, se uma iniciativa passará pelas barreiras e obstáculos da oposição ou dos grupos adversários, se um governo se reelege ou não, se será um presidente forte ou uma presa fácil do Congresso e de grupos de interesse.
Houve um tempo em que a comunicação era coadjuvante e complementar às atividades do governo e da política e as Secretarias de Comunicação não passavam de assessorias de imprensa e de Relações Públicas governamentais. Governo era política, negociação e gestão, a comunicação era meio e instrumento. Hoje, um governo pode até fazer mal esses três itens, mas não pode ser dar ao luxo de não dominar os meios, os modos e os recursos de uma comunicação política eficiente, de não ter uma estratégia geral de comunicação e de não se aplicar com grande dedicação a ganhar as disputas por narrativas, interpretações, convicções, corações e mentes. O jogo virou: governo é comunicação, o resto é negociação e gestão.
A gente olha para o governo Bolsonaro e se pergunta: o que deu errado? Bem, ele não entregou nada e ainda atrapalhou quem poderia fazê-lo. Apostou que sobreviveria fazendo apenas a disputa cotidiana pelos temas da discussão pública – em geral, tretas vazias infladas artificialmente para acirrar a disputa e radicalizar os seus – e pelas narrativas inventadas que dominaram a interpretação e o afeto públicos. Tampouco negociou com o campo político e com os setores sociais de seu interesse. O que houve foi a entrega de poder – ao Centrão, aos madeireiros, aos militares etc. –, haja vista a sua total incompetência para a gestão e a inaptidão para a política institucional. Mas o bolsonarismo era mestre na arte da comunicação política e isso quase bastou para lhe dar um segundo mandato.
O que o governo Lula deveria aprender disso? Antes de tudo, que um governo bem-sucedido – no século das comunicações digitais ubíquas, permanentes e horizontais – passa necessariamente por uma maestria na comunicação política. Os ministérios deverão fazer as entregas sem as quais a vida do país não melhora, isso é fato. O governo precisa negociar e articular, condição sine qua non para a governabilidade nas circunstâncias instáveis em que nos encontramos. Fato. Mas nada disso acontecerá sem uma estratégia de comunicação política eficiente.
Dilma provavelmente será reconhecida como a última presidente da República que achou que pudesse governar sem canais de interlocuções bem construídos com a imprensa e, sobretudo, sem uma estrutura de rede para a comunicação política horizontal. E fracassou. Temer sobreviveu porque entregou as reformas prometidas no acordo do impeachment e já emergiu de um conchavo político, por isso foi devorado na comunicação política, mas conseguiu empurrar o governo até o fim. Mas, como foi aniquilado na comunicação, não teve condições sequer de se apresentar eleitoralmente para defender o próprio presumido legado.
Bolsonaro, vimos, nada entregou, rendeu-se a uma facção do Congresso, terceirizou a administração pública aos militares e governou à base de lives, declarações, fake news, polêmicas e narrativas de complô. Perdeu a eleição, é verdade, até porque errou a mão na estratégia de polarização, mas salvou o bolsonarismo, inclusive institucionalizando-o no Congresso.
Qual será o caminho adotado por Lula? Não se sabe. Mas terá que lidar certamente com a centralidade da comunicação horizontal, descentralizada e em fluxo contínuo que não havia nos oito anos de seus primeiros governos. E terá que lidar com um mundo político em que não basta negociar governabilidade, mas vencer a guerra cultural, a disputa por narrativas e a batalha pela interpretação dos fatos na esfera pública. Por enquanto, não tem se saído bem. A ver.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)