Furio Jesi: máquina mitológica e cultura de direita, e outros lançamentos

Furio Jesi: máquina mitológica e cultura de direita, e outros lançamentos

 

Talvez, a melhor maneira de discutir a obra de Furio Jesi seja abordá-la longe dos limites disciplinares atuais e, no mesmo gesto, compreendê-lo como um pensador das travessias. Inicialmente, o jovem e prodigioso egiptólogo, nascido em Turim em 1941, dedicou suas pesquisas a temas que percorriam os campos da arqueologia e da papirologia. Mas, a inquietude desse italiano de origem judaica logo o levou a abandonar as fronteiras dos saberes aos quais se dedicava.

Entre o fim da década de 1950 e início de 1960, uma virada impactou seus estudos, que passaram a abranger um repertório vasto e de profundidade insuspeita: da literatura à política, passando pela ciência do mito. Uma das chaves dessa guinada está relacionada à radicalização e à torção irônica que irá realizar sobre a distinção que seu antigo mestre, o mitólogo alemão Karl Kerényi, estabeleceu entre mito genuíno e tecnicizado – este último correspondendo a manipulações políticas de materiais mitológicos.

Kerényi acreditava que a substância mítica poderia ser acessada por sábios – como ele próprio, bem entendido – e poetas. O rompimento entre o humanista burguês e o jovem pensador de esquerda é, inextricavelmente, de ordem teórica e política. Para Furio Jesi, não se tratava de recuperar a verdade intemporal dos mundos arcaicos, mas de sondar a “fome dos mitos” saciada por aquilo que ele passou a chamar, por volta de 1972, de máquina mitológica. Suspendendo a diferença entre mito autêntico e inautêntico, seu modelo de pesquisa se dedicou antes a esquadrinhar a fabricação de mitologemas que giram em torno de um vazio – um quid – jamais preenchido.

Cultura de direita foi recém-publicado no Brasil pela editora Âyiné com tradução de Davi Pessoa. O cuidadoso trabalho do professor de língua e literatura italiana da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) está intimamente ligado às suas pesquisas sobre a obra de Furio Jesi. Há anos desenvolve trabalhos em torno de uma constelação de importantes pensadores, traduzindo autores como Giorgio Agamben, Franco Rella, Suzanna Mati, Mário Perniola e Luigi Pirandello.

O livro de Furio Jesi, que chega às livrarias brasileiras com nova tradução, está situado nas tentativas de modular seu modelo gnosiológico da máquina mitológica direcionando suas análises para a direita tradicional. A cultura de direita que surge nas páginas do livro funciona fundamentalmente através de “manipulações de materiais mitológicos”. O que está em jogo, portanto, é “a qualidade ideológica dessas manipulações, do caráter tradicional e, em geral, da relação com o passado”, fazendo emergir “um quadro preciso do presente e do futuro”. Portanto, a máquina mitológica de direita dispõe elementos fetichizados do passado como uma massa homogênea e indiferenciada da qual extrai lugares-comuns, formas exemplares, palavras de ordem, estilemas, estereótipos, cifras esotéricas que dividem mestres e iniciados, etc.

Como mostra Furio Jesi, essa contrafação não histórica do passado busca instaurar valores eternos – portadores de maiúsculas metafísicas: Pátria, Liberdade, Justiça, Tradição, etc. – que gravitam em torno de ao menos duas problemáticas. Primeiro, a contradição presente nos “sábios do esoterismo moderno” que afirmam a inacessibilidade de suas verdades ao tempo em que fazem proliferar infindáveis discursos que giram em torno do centro vazio de mistérios pretensamente insondáveis.

Uma máquina linguística de direita que afirma – conforme palavras de Oswald Spengler citadas por Jesi – que “a única coisa que promete a solidez do futuro é a herança de nossos pais, que temos no sangue; ideias sem palavras”. Assim, a cultura de direita promete materializar sua linguagem de “ideias sem palavras” em gestos rituais que correspondem a “uma ideologia e um quadro bem definido de relações sociais”. Ora, essa fabricação de discursos elusivos também funciona manipulando o poderoso aparato simbólico da morte.

Justamente aquilo que o pensador italiano chama religio mortis. Uma utilização política de dados mitológicos da morte gloriosa em guerra, mas também do sacrifício dos diferentes – como no caso do extermínio dos judeus pelo nazismo. O que não exclui, antes reforça, a morfologia temporal da cultura de direita, já que “a mitologia de matar e ser morto” é um “procedimento de aceleração do advento e fundação do novo reino, da nova lei e do novo homem”.

Cultura de direita, como outros livros de Furio Jesi, não está estruturado sob a forma de um tratado ou mirada globalizante. Como inspirado leitor tanto de Aby Warburg como de Walter Benjamin, Jesi propõe muito mais um atlas ou uma montagem de leituras de extratos empíricos da cultura de direita centro-europeia e italiana. Indo do nazismo esotérico à mitologia fascista espanhola e romena, de uma novela de E. T.A. Hoffmann aos romances da italiana Liala, do medo dos judeus ao compromisso de historiadores da religião com a extrema direita (o caso de Mircea Eliade), de sábios mistificadores como Julius Evola ao exame dos luxos espirituais e materiais, etc.

Explorando, dessa maneira, camadas da cultura de direita imiscuídas mesmo nos discursos daqueles que não mantem qualquer identificação com o campo da direita. Um exemplo paradigmático desse trabalho, indispensável para pensar nosso mundo, é a preciosa arqueologia histórica que Jesi elabora sobre as concepções de honnête homme, homme de bien e grand homme presentes na cultura europeia dos séculos 18 e 19.

Entretanto, o problema do mito não está confinado no âmbito da cultura de direita e vetado ao campo ideológico das esquerdas. Ao contrário, como mostrou o pensador italiano no belo ensaio Spartakus: simbologia da revolta – traduzido por Vinícius Nicastro Honesko, também um importante pesquisador da obra de Furio Jesi no Brasil –, a interrupção mítica do tempo histórico é de grande interesse, sobretudo a dimensão simbólica da revolta como acesso à epifania de uma experiência coletiva. Exatamente a via explorada por ele na sua interpretação fenomenológica da revolta espartaquista de janeiro de 1919 na Alemanha, por trás da qual se abre uma brecha para vislumbrarmos muitas outras, como a comuna de Paris ou maio de 1968.

O livro Spartakus foi publicado no Brasil em 2018, coincidindo com a eleição presidencial e a vitória da extrema-direita em nosso país. Cultura de direita está sendo lançado quatro anos depois sob o mesmo quadro das disputas eleitorais, muito embora em contextos diversos. Nesse período, a palavra mito, entre a banalização e a cínica manipulação política, se espraiou em nosso cotidiano. Com efeito, os leitores saberão encontrar as implicações das afinidades entre esse agora e as recentes traduções dos livros de Furio Jesi para o português.

Reginaldo Sousa Chaves é doutor em História Social (UFC), professor adjunto I da UESPI, mestre em História do Brasil (UFPI) e especialista em História Cultural (UFPI).


por Redação

Em 15 contos, com variadas formas e estilos, o autor investiga aspectos que constituem a experiência humana e sua condição universal. Memória, infância, sexo, desejo, solidão, relações familiares, loucura, inconsciente, fetiche e arte são alguns dos temas que Pedro Jucá entretece para sondar questões como o que caracteriza a experiência humana, os limites da interação do homem com o mundo e os sentidos do amor. Os contos abordam desde a história de uma bailarina depressiva até  a narrativa de um homem que descobre no sadismo uma forma de panaceia sexual.

Considerado por muitos como um poeta menor, subversivo e pornográfico, o escritor modernista Jamil Almansur Haddad tem sua obra e trajetória biográfica revisitadas no trabalho de Christina de Queiroz. O livro é dividido em quatro partes: nas três primeiras – “A lua do Oriente”, “A lua do remorso” e “A lua dos profetas” –, a autora desenvolve uma ampla biografia do poeta, recuperando sua ascendência libanesa, os estudos de medicina, suas concepções poéticas e críticas, suas relações familiares, seu envolvimento político e outros aspectos de sua trajetória; na quarta parte, a autora apresenta ao leitor uma seleta de poemas de todos os livros de poesia publicados pelo autor, que vai de Alkamar, a minha amante, de 1935, até o póstumo Aviso aos navegantes, publicado postumamente em 1980.


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