Arcas de Babel: Francisco Mallmann traduz Francisco Casas

Arcas de Babel: Francisco Mallmann traduz Francisco Casas
Mallmann: Traduzir Casas é me deparar com minha própria bichice inscrita e vivida na América do Sul (Fotos: Divulgação)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir. Entre maio e dezembro de 2020, foi publicada semanalmente, em 32 edições. A partir de março de 2021 retorna com periodicidade quinzenal.

Nesta edição, o poeta, artista e pesquisador interdisciplinar Francisco Mallmann traduz e apresenta uma série de poemas do escritor e artista chileno Francisco Casas, que tematiza a homossexualidade numa perspectiva política e decolonial.

Mallmann atua na intersecção entre poesia, dramaturgia, artes visuais, performance e crítica de arte. Estudou jornalismo (PUC-PR) e artes cênicas (FAP), e é mestre em filosofia (PUC-PR). Publicou haverá festa com o que restar (Urutau, 2018, 3º lugar na categoria Poesia do Prêmio da Biblioteca Nacional, finalista do Prêmio Rio de Literatura e do Prêmio Mix Literário) e língua pele áspera (7Letras, megamini, 2019).

É artista residente na Casa Selvática, onde idealizou a Membrana, uma grupa de escritoras e é editor do Bocas Malditas – cena, crítica e contexto. É membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT, filiada à Unesco, e coordenador do departamento de exposições temporárias e itinerantes do Museu do Holocausto de Curitiba. Leia abaixo seu texto de apresentação da obra de Casas.

 

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Francisco Casas é uma bicha viva. Artista visual, escritor, poeta chileno. Entre seus livros publicados estão Sodoma mía (1991), Yo, yegua (2004), Partirura (2015) e La noche boca abajo (2018). Vive atualmente no Peru.

Em Santiago, junto a Pedro Lemebel, fundou o coletivo Yeguas del Apocalipsis, em 1986, desenvolvendo uma extensa obra em performance. Em mais de uma centena de ações públicas, Casas e Lemebel inscreveram uma das criações críticas às ditaduras latino americanas que considero das mais interessantes – exatamente pela interdisciplinaridade e interseccionalidade de seus trabalhos e gestos. As noções de memória, colonialidade, gênero e sexualidade surgem articuladas em uma criação em trânsito: a poesia, a literatura, as artes cênicas e visuais entrecruzadas tornaram essas éguas do apocalipse fundamentais em qualquer historiografia interessada nas inscrições decoloniais em arte no sul do mundo.

Seu primeiro livro – o único de poesia – é Sodoma mía, de 1991, reeditado em 2012 pela editora chilena Pequeño Dios Editores. Nele, Casas transita por uma certa ideia de Sodoma, cidade cruel, bíblica, presente em muitas criações homoeróticas. A busca por Sodoma integra o que poderíamos chamar de “viagem ao oriente”, tão comum a certo imaginário gay – assim o é com “Rimbaud em Aden, Lawrence na Arábia, André Gide na Tunísia, Oscar Wilde no Magrebe, Pierre Herbart em África, Henry de Montherlant na Argélia e em Marrocos, Pierre Loti na Galileia, Jean Genet na Palestina, William Burroughs e Allen Ginsberg em Tânger”, como escreve Fréderic Martel.

Mas, aqui, Casas desloca o território mítico para as ruas de Santiago, se afastando da brancura gay e reivindicando sua habitual mariconice sudaca. Sodoma é atualizada em uma vivência marica, em que a homossexualidade não se dissocia da violência colonial dessa parte do mundo, e o desejo é, ele mesmo, entendido enquanto uma posição estética, ética e política, em reivindicação decolonial. Uma Sodoma-encruzilhada, uma Sodoma-fronteiriça, Sodoma-Sul, território impossível para existências impossíveis. Sonhar um sonho em que estejamos inteiras, ainda com o que nos levou a violência, o poder, a colonialidade, a homofobia.

Em Sodoma mía, nem sempre há continuidade entre os materiais, um poema não segue, necessariamente, o outro em perspectiva, origens, tema, assunto, tonalidade. Trata-se de uma escrita lacunar que reivindica de quem lê uma atenção implicada. Existem cortes entre os poemas e dentro deles. Cortes que podem variar a imagem e o significado das palavras. Barras que separam, restringem, expõem esses limites gráficos nos escritos que, muitas vezes, se referem também a experiências limítrofes, como o sexo, a morte, a doença – a aids.

É, aliás, a aids que vai tencionar a tríade sexo-prazer-pecado, articulando, assim, as manifestações da culpa, o trânsito entre os corpos em espaços compartilhados, as noções de infecção e imunidade. Aqui há o corpo, sendo construído nas relações, no tempo do livro – no atravessar de um território-invenção.

Escolhi alguns dos poemas que, por razões diversas, mais me agradam na obra. Traduzir Francisco Casas é me deparar com minha própria bichice inscrita e vivida na América do Sul. Francisco Casas e Pedro Lemebel são, juntas, artistas que muito me inspiram a reivindicar uma criação fronteiriça, fazendo da inespecificidade motivo e força, subvertendo os marcadores do que é/pode ser a criação em/de arte.

Francisco Casas faz de mim uma bicha viva.
Irmanadas em nome, desconfiadas dele.
Saúdo Pancho, no desejo de que reverberem suas palavras! – Francisco Mallmann

 

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Desde esse exílio que se limita ao norte com o Pirú / nos escrevo
pedra / desde a rua onde estou relegada pelos
anjos perversos destruidores de nossa Sodoma.
Veja como estamos degradados / você também viu os
outros caminhando sobre as margens desse território inóspito /
Minha Sodoma disse no parque / esse estertor sonâmbulo que
fez recordar nossas avenidas e palácios / nossa nobre
linhagem milenária / a antiga sobre a face da terra

*

Desde este exilio que limita al norte con el Pirú / nos escribo
piedra / desde la calle ésta donde relegada estoy por los
perversos ángeles destruidores de nuestra Sodoma.
Mira cómo estamos degradados / tú también has visto a los
otros caminar sobre los márgenes de este territorio inhóspito /
Sodoma mía dijiste en el parque / ese estertor sonámbulo que
hizo recordar nuestras avenidas y palacios / nuestra noble
estirpe milenaria / la antigua sobre la faz de la tierra.

 

SODOMA EM ALGUM LUGAR

 

Esses versos são para você exilado amado / para trabalhar com você /
estabelecer também nossa aliança quebrada no delírio /
te chamo através dessa linha / a construíram para
nós / podemos armar nosso plano perverso / a vingança
é nosso ofício reconstruir / entremos nas catedrais a
violar anjos como em outro tempo / formemos grupos
e infectemos /
Entremos com cara de loucos nos estandartes / com
nosso patrono edifiquemos novos altares para reviver o
sacrifício / Amado / o sangue doce abandonado espera

 

SODOMA EN ALGUNA PARTE

 

Estos versos son para ti exiliado amado / para trabajar contigo /
establecer también nuestra alianza rota en el delirio /
te llamo a través de esta línea / la han construido para
nosotros / armar podemos nuestro perverso plan / la venganza
es nuestro oficio reconstruir / entremos a las catedrales a
violar ángeles como en otro tiempo / formemos las bandas
e infectemos /
Entremos con la cara de los locos en los estandartes / con
nuestro patrono edifiquemos nuevos altares para revivir el
sacrificio / Amado / la dulce sangre abandonada espera

 

 

Agora que posso te olhar deslavado o olho /
espero me agenciar contigo / compartilhado tudo
a mesma escola nos ocupa / somos bastardos
dessa rua onde perco a vida

*

Ahora que puedo mirarte deslavado el ojo /
agenciarme contigo espero / compartido todo
la misma escuela nos ocupa / somos bastardos
de esta calle donde pierdo la vida

 

 

Desejo de possuir as paisagens
cercando a noite
Sou um nessa vertigem / olho para elas
escondidas atrás de tecidos
Sou e admiro / assim vou
amando desejando / em você amado /
em você na hora da masturbação
Para você a homenagem deste sêmen
Derramado

*

Ganas de poseer los paisajes
rodeando la noche
Soy uno en este vértigo / las miro
escondidas tras telas
Soy y admiro / así voy
amando deseando / en ti amado/
en ti la hora de las masturbaciones /
Por ti el homenaje de este semen
Derramado

 

 

Espiando pelas fechaduras o retorno
do lobo / o mal nascido está no cio
rosnando sua febre aos quatro
ventos / em quatro patas percorre o
cortiço / Fareja besta o cheiro
Te amo mais desde que sou um lobo / uivo
solitário atrás dos bronzes de minha
cama /
Que não me surpreenda o caçador /
Que não me surpreenda

*

Espiando por las cerraduras el regreso
del lobo / está en celo el mal nacido
gruñendo su calentura a los cuatro
vientos / en cuatro patas recorre el
conventillo / Husmea el olor bestia
Te amo más desde que soy lobo / aúllo
solitario tras los bronces de mi
cama /
Que no me sorprenda el cazador /
que no me sorprenda

 

 

Enlouquecemos diante das janelas dos consultórios
Olhando cartazes de propaganda nos lugares
Manipulando desesperados máquinas de preservativos nos
mictórios públicos
O seu amor e o meu, aquilo que a aids tirou da marquise
junto com minhas maria chiquinhas Travestidos de Hollywood com seus
Laycras da rua Franklin, sentado na última poltrona
esterilizada da sala de espera, onde irão substituir
seu cabaré por uma mortalha branca.

*

Desatinamos frente a las ventanillas de los consultorios
Mirando carteles de propaganda en lo sitios
Manipulando desesperados máquinas de condones en los
urinarios públicos
Tu amor y el mío, lo que el sida se llevó de la marquesina
junto con mis colitas Travestidos de Hollywood con sus
Laycras de calle Franklin, sentado en la última butaca
esterilizada de la sala de espera, donde reemplazarán
su cabaret por una mortaja blanca.

 

 

Continuo transando/ viciado espero
a transfiguração / destino de uma porca no cio/
a lama minha origem / uma goteira aguarda na
tumba onde dorme o regente

*

Sigo mandándome todo al pecho / viciado espero
la transfiguración / encelado destino de puerca /
el barro mi origen / una gotera aguarda en la
tumba donde duerme el regente


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