O museu de si mesmo
Franscico Brennand em sua oficina de cerâmica e parque de esculturas, Recife, Pernambuco (Foto: Rafael Martins)
São incontáveis as histórias e lendas que reafirmam ao longo dos tempos o arquétipo da criatura que devora seu próprio criador. O mesmo modelo serve para definir um longo período da relação entre o artista plástico Francisco Brennand e uma de suas mais belas criações: o templo onde está exposta grande parte de sua produção, no afastado bairro da Várzea, em Recife. No local, havia uma antiga olaria da família, à beira do rio Capibaribe, que estava abandonada e cujas instalações foram recuperadas a partir dos anos 1970 por Brennand. Ele transformou o local em um gigantesco templo dividido em pátios ao ar livre – com grandes muralhas, totens, templos, espelhos d’água – e um enorme galpão, com corredores povoados por centenas de esculturas de cerâmica, câmaras instaladas em antigos fornos e anfiteatros cercados por murais.
Tanta beleza já custou muito caro ao artista: foi longo o período para se desfazer a ideia de que aquele templo não é sua obra e que cada peça tem autonomia e força estética própria. Há até mesmo um episódio interessante para ilustrar a tese. Certa vez, uma senhora, ao entrar apenas na primeira sala do local e se deparar com algumas esculturas, saiu correndo. Afirmou que “aquilo” era um museu dos horrores, uma carnificina, e que nunca mais colocaria seus pés ali novamente. O que a princípio poderia soar como ofensa, para Brennand surtiu efeito alentador. Essa fora sua primeira grande crítica. “Essa senhora viu o que ninguém via”, enfatiza o artista ao explicar que as pessoas se deixam embair pela monumentabilidade do conjunto, esquecendo de olhar cada uma das peças expostas no local.
Muitas críticas interessantes já foram destiladas sobre o trabalho de Brennand, mas somente em fins da década de 1990, com uma megaexposição na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, e a edição do livro Brennand (Métron) – com textos de Olívio Tavares de Araújo e Weydson Barros Leal, e fotos de Rômulo Fialdini – que o artista finalmente encontrou uma crítica condizente com sua obra. A criatura deixou de devorar seu criador. Brennand afirma que Araújo teria sido o primeiro crítico a levar seu trabalho a sério. “Sem essa visão, minha obra não teria o patamar que tem hoje. Foi definitivo. Até então, só se contentavam em elogiar ou falar mal.” Levar a sério não seria exatamente o termo que o próprio Araújo usaria para definir sua crítica. “Na verdade, lancei um olhar mais atento”, conta ele, que também foi o curador da exposição na Pinacoteca. “A tendência é realmente a de se atordoar com o conjunto. As críticas eram muito limitadas. É claro que também há a questão de Brennand estar situado fora do eixo Rio-São Paulo, o que o tornou menos visível.”
Grandes temas e personagens históricos, mitológicos e da arte universal, além de formas antropomórficas, animais e vegetais povoam o repertório de Brennand. Suas ideias são incorporadas em esculturas e murais de cerâmicas, em uma mistura de formas amórficas ou definidas, cores terrosas, opacas, e em texturas únicas provenientes da queima do barro. Trata-se de um resultado que não tem nada de tropical, solar ou mediterrâneo, como define Araújo. A opinião também desfaz outro “mito” em torno da obra de Brennand – o de que ela estaria calcada em padrões estéticos ligados à identidade nacional. “Brennand é um grande artista, e não é um ceramista do nordeste. No nordeste também há a tragédia, como havia na Grécia antiga”, afirma Araújo.
Há sempre algo de trágico, fantástico e intenso na obra de Brennand, como atestam seus temas bíblicos e animais imaginários. O drama humano pode estar no longilíneo dorso de “Dante”. A história da arte pode ser traduzida em uma bandeja com garrafas, intitulada “Homenagem a Morandi”; ou em “Os comediantes”, quatro personagens situados logo à entrada do templo que, como observa Araújo, vieram diretamente da tradição cultural peninsular, da burlesca commedia dell’arte.
Talvez o templo construído pelo artista seja apenas um “museu de si mesmo”, na definição de Weydson Barros Leal em texto biográfico no livro Brennand. E a partir dessa definição, inúmeras peças desvelam os vários significados de seu trabalho. Entre elas, a série de degoladas, dorsos de mulheres – mitológicas ou verdadeiras – cujo fardo se desvela nas imagens claustrofóbicas de rostos destorcidos, sem face. Há Inês de Castro, que depois de morta virou rainha; Galatea, que assistiu à morte do amante; Lara, cuja língua fora cortada por uma fúria divina; e, claro, Joana D’Arc.
Para Brennand, é impossível criar formar novas, tudo é referencial. Para ilustrar seu argumento, cita o conto “A casa rosada”, de Borges, em que um quarto – com guarda-roupa de seis metros de altura e cama em forma de ferradura – revela formas estranhas para um ser totalmente inclassificável.
Daí uma quantidade expressiva de citações, não apenas em sua obra, mas até em sua fala, sempre baseada na argumentação literária. “As pessoas me acusam de só falar fazendo citações. E agora eu falo sem cerimônia sem citar as fontes. Eu tenho memória e as pessoas me acusam de erudição. As citações me atropelam, permanecem na minha retina, na minha memória.”
Não há, portanto, despropósito algum em sua identificação com certos nomes da literatura. As citações, a linhagem oriental e a barbárie das civilizações revelam o viés que liga Brennand a Jorge Luis Borges (há legendas com citações literárias do escritor gravadas em alguns murais do templo). O dramaturgo romeno Eugène Ionesco visitou o local nos anos 80 e na ocasião afirmou ser aquele um magnífico cenário para suas peças. “O horror, o horror”, revela a frase de Joseph Conrad em uma das várias inscrições gravadas nos gigantescos murais de cerâmica espalhados pelo grande pátio.
Aliás, o referencial é parte indissociável de Brennand. Ele – melhor do que ninguém – sabe muito bem explicar sua arte e faz isso com uma benevolência sagrada: está sempre no templo, andando entre suas criaturas e disposto a conversar com os visitantes. A erudição apaixonada – somada à aparência de seus 75 anos embalados em um elegante porte alto e cabelos alvíssimos – também ajuda a formar uma espécie de imaginário mítico sobre o artista. Nas conversas com os visitantes, citações bíblicas e mitológicas embalam o ouvinte em uma viagem “à la mil e uma noites”. Ele mesmo parece ser um personagem de seu work-in-progress.
Outro ponto refutado por Brennand é o sentido erótico exagerado que às vezes recai sobre sua obra. Mas situar o tema do erotismo na obra de Brennand pode ser um passo interessante para entendê-lo. Para o artista, a questão da sexualidade coincide com a incapacidade humana de ver o mundo. Para ilustrar, cita uma frase do escritor e historiador inglês Arnold Toynbee, “de quem esperava tudo, menos que ele se preocupasse com assuntos sexuais”: “O sexo, mais do que a morte, nos deixa diante de uma perplexidade insanável.”
São muitas as questões levantadas pela obra de Brennand. Há até mesmo um ponto de vista inusitado, uma espécie de sopro de vida, no livro Francisco Brennand: A matriz da vida, em que a bióloga Cecila Toro compara suas obras com imagens microscópicas. “Cecila é a antípoda de Araújo. Ela afirma que o homem tem a memória de sua própria espécie e que somos feitos da mesma matéria das estrelas. A arte não tem de imitar a vida; ela tem de coincidir com a vida.”
Mesmo assim, há muita dramaticidade em sua obra. “Não viemos aqui para ser felizes. Somos escravos de nossa própria condição humana. Não existe liberdade. Até mesmo os pássaros têm de respeitar territórios demarcados, senão são devorados por outras espécies”, afirma o artista que, em tom quase confessional, afirma haver uma grande dúvida religiosa por trás de suas indagações. Apesar de dizer que a palavra é uma de nossas condenações, Brennand consegue fazer maravilhas com seu vasto vocabulário, como mostram as inscrições em seu templo, “escritas em definitivo”. Lembra até que grandes figuras da humanidade falaram por parábolas e nada deixaram por escrito, como Cristo, Buda, Sócrates e Homero. O curioso é que sua saga tem algo em comum com tudo isso. Sua linguagem é a escultura. E mesmo com as limitações físicas e subjetivas dessa forma de expressão, Brennand consegue operar uma profunda catarse com a arte. O que deveria ser sua condenação, agora parece sublimar-se.
Alessandra Simões é jornalista