Uma artista fora da ordem

Uma artista fora da ordem

Marília Kodic

Ao contrário de muitos artistas brasileiros, Rivane Neuenschwander, 44, não precisou passar pelo crivo do eixo Rio de Janeiro-São Paulo para se afirmar. Aliás, no Brasil, realizou mostras individuais somente no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, no Recife, e no Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte, sua cidade natal e onde continua a morar.

A artista de fala mansa e palavras interrompidas, olhar baixo e sorriso espontâneo está lançando o livro Um Dia Como Outro Qualquer (editora Cobogó), que traz a retrospectiva de sua produção.

O discurso vem sempre após alguns segundos de reflexão, não raro acompanhado de pausas que não têm pressa para acabar. Rivane é tímida, mas isso não importa: a mineira tem presença regular nos maiores eventos de arte do globo – só em bienais, já expôs na Turquia, África do Sul, Reino Unido, Estados Unidos, Itália, França e Cuba.

Decolagem meteórica

Ainda adolescente, a primeira tentativa de uma profissão não lhe rendeu frutos – não tinha talento para a flauta transversal. A segunda, por meio do curso de ciências sociais, não durou muito. “Tinha uma visão muito romântica sobre antropologia, a área que me interessava, mas percebi que não daria conta do mundo acadêmico”, diz. Foi na terceira, com a decisão de cursar belas-artes na Universidade Federal de Minas Gerais, que achou seu caminho. Em 1996, apenas dois anos após formar-se no curso de artes visuais, sua carreira começou a levantar voo.

O primeiro grande acontecimento em sua vida foi a obtenção de uma bolsa de estudos no Royal College of Art (RCA), em Londres. Na mesma época, foi premiada no hoje extinto Antártica Artes com a Folha, projeto que se propunha a realizar um mapeamento de artistas emergentes do Brasil e contemplava os que mais se destacavam.

Em seguida, Rivane foi convidada por Dan Cameron, curador norte-americano que havia participado como jurado no prêmio, para expor na galeria londrina Stephen Friedman. “Esse programa foi fundamental na minha carreira e acho que deveria ser reavaliado pelo Ministério da Cultura. Foi uma coincidência feliz porque me deu visibilidade estando lá fora”, diz.

No mesmo ano, aos 29 anos, a artista já participava das bienais internacionais de Istambul, na Turquia, e Joanesburgo, na África do Sul. “Foi muito intenso o ritmo em que aconteceram as coisas, quase não consegui aproveitar a escola de tão rapidamente que tive de começar a trabalhar”, diz.

Pouca formação

Vivendo no epicentro da arte contemporânea, já com duas bienais no currículo e com a etiqueta do RCA, Rivane conta que “havia na época um grande interesse pelos formandos do Royal College of Art, como se isso fosse garantia para dar certo como artista”.

Com isso, veio uma liberdade de criação pouco experimentada por artistas tão jovens. “Consegui desde o início procurar vários caminhos diferentes para não ser rotulada”. E sem precisar passar pelo crivo do mercado nacional.

“Queria sair daqui, especialmente morando em Belo Horizonte, onde, na época, não acontecia muita coisa – a cidade não oferecia uma estrutura muito interessante no que se refere às arte plásticas contemporâneas. Tive de ir ver o que estava acontecendo no mundo”, diz ela, que passou dois anos na capital inglesa.

Para Rivane, o panorama artístico no Brasil ainda é tímido. “Acho a educação fraca. Não adianta querer que o professor seja um formador de opinião se ele não tem como fazer pesquisa, não viaja, não recebe um salário adequado”, defende. Em relação à produção do país, também tem ressalvas.

“Alguns artistas brasileiros sobressaem, mas a média, no geral, não é satisfatória. É uma média desinformada, que não tem acesso ao que está acontecendo de relevante no mundo”, diz.

Apesar disso, Rivane mora em Belo Horizonte há sete anos e não tem planos de se mudar. “São Paulo ainda é certamente a capital que mais oferece diversidade e oportunidade no âmbito da cultura, mas prefiro a qualidade de vida que temos por aqui. E, por um lado bem pragmático, tenho uma estrutura que me permite mais conforto, mais concentração no trabalho e mais mobilidade”, diz.

Além disso, gosta de estar perto do Instituto Inhotim, que, para ela, se tornou um centro de referência em arte contemporânea no mundo e é onde trabalha, como diretor artístico, seu marido.

Vida em família

Rivane conheceu Jochen Volz em Frankfurt, em 2001, ao ser convidada para uma mostra individual na Portikus, instituição de arte alemã da qual ele era curador. Casaram-se quatro anos depois, em 2005, e tiveram dois filhos – Theo, 5, e Hannah, 3.

Quando indagada se os filhos puxaram o lado criativo da mãe, responde: “O Theo tem uma percepção maior. Ele teve uma fase escultórica e agora está no desenho. Ele fala ‘eu fiz essa exposição pra você levar para tal museu’. Já fez três exposições pra eu levar [risos]. A Hannah já é bem mais ligada em música”.

Apesar de ficar em casa com os filhos pela manhã e à noite, a rotina é intensa – Rivane trabalha em seu ateliê todos os dias e viaja para o exterior, em média, uma vez a cada dois meses (embora não fique longe de casa por mais de oito dias, número-limite que impôs para que a saudade da família não doa muito). “Acho que já mostrei mais em instituições norte-americanas do que em brasileiras. Acho que até na Suécia já mostrei mais do que aqui”, diz.

Liberdade coletiva

Em junho de 2010, na época de uma exposição que ocupou três andares do New Museum, uma reportagem do jornal norte-americano The New York Times associou sua obra à dos artistas neoconcretos Hélio Oiticica e Lygia Clark. “Acho que a crítica internacional tenta fazer uma ponte com a produção histórica. Poderia ter uma leitura por aí, mas não é a única. As pessoas citam por obviedade”, diz, considerando seu trabalho mais ligado aos artistas contemporâneos dentro e fora do Brasil. Rivane abre mão de citar nomes para, diz, não melindrar ninguém.

O reconhecimento, porém, é, sem dúvida, recompensador. “É algo que me surpreende até hoje. Não parei pra pensar por que aconteceu ou se realmente faz sentido ter chegado até onde cheguei. Tento abstrair um pouco, porque é ao mesmo tempo uma pressão e uma responsabilidade muito grandes”, diz.

Talvez seja por isso que ela, muitas vezes, goste de dividir a responsabilidade. Com trabalhos que contam quase sempre com a interação do público, que vai mexendo no que está exposto e fazendo com que a obra esteja em constante mudança, a questão autoral é ambígua. “É preciso que essa noção [de direito autoral] seja diluída, destituída de hierarquia e precisão, para podermos redimensionar o papel do artista e do visitante”, diz.

É o caso da obra Eu Desejo o Seu Desejo (2003), em que pedidos de diversas pessoas foram impressos em fitas coloridas, similares às do Senhor do Bonfim, que podiam ser levadas para casa. Ou, ainda, da Série Zé Carioca (2003), em que os desenhos e a narrativa das histórias em quadrinhos foram apagados, deixando balões em branco para os visitantes preencherem.

“Gosto de pensar o trabalho como uma plataforma onde determinadas condições são oferecidas para que as pessoas possam se expressar, mas dentro da minha delimitação”, explica.

Outros agentes também tornam muitas vezes inviável o controle sobre as obras – formigas, besouros, peixes e lesmas, cheios de vontade própria, já fizeram parte delas. Além disso, o próprio tempo as modifica. “Não tenho uma preocupação de que sobrevivam. Interesso-me pelo que não é de todo previsível, por aquilo que escapa ao controle, que subverte as regras do jogo, que contraria a normalidade dos fatos. É a tentativa de controle contra o caos”, diz.

De Truffaut a Jorge Ben Jor

A temática de Rivane é diversa. Às vezes, é inspirada em questões mais políticas, como em Contingente (2008), em que formigas devoram um mapa-múndi feito de mel, alterando sua configuração.

Em outras, a abordagem é mais lúdica, como em Alfabeto Comestível (2002), composto de 26 painéis, cada um representando uma letra do alfabeto, em que foram colocados temperos e pós alimentícios de acordo com a primeira letra de seu nome – açafrão, black pepper, colorífico, e assim por diante. “Não acho que sejam muito panfletários, mas, dependendo de como são agrupados, os trabalhos têm um significado bem claro”, diz.

A inspiração vem de todos os lados – “Tudo que a gente aprende, desde a infância, é determinante para o que vamos nos tornar quando adultos” –, mas algumas influências são claras. É o caso do cinema. Cinéfila quando jovem, Rivane é fã dos cineastas Werner Herzog, François Truffaut, Michelangelo Antonioni e Rainer Werner Fassbinder.

O Inquilino (2010), gravação que mostra a trajetória de uma bolha de sabão pelas salas vazias de uma casa sem nunca estourar, divide o nome com um filme de Roman Polanski, no qual foi inspirado. Outro cineasta homenageado é Francis Ford Coppola, com a obra homônima A Conversação (2010), em que a artista instala dispositivos de vigilância em pontos estratégicos de um museu.

Na música, faz referência à canção homônima de Jorge Ben Jor em Chove Chuva (2002), com baldes suspensos do teto que gotejam em outros iguais abaixo, criando uma chuva artificial. A obra Lá Fora Está Chovendo (2008), na qual o som de gotas d’água que caem em uma bacia de alumínio é captado por um microfone, transmitido a um computador e reproduzido em dezenas de alto-falantes, também é uma homenagem ao cantor. O título vem de um verso da música “Que Maravilha”.

Além de MPB, gosta de uma miscelânea de gêneros: The Doors, Robert Wyatt, Leonard Cohen, Elza Soares e Lupicínio Rodrigues. Fala também de uma nova cantora e instrumentista mineira chamada Juliana Perdigão, que tem “uma voz e um talento incríveis”.

Um dia como outro qualquer

“Muito obrigada pela visita de ontem, espero que tenha sido proveitosa para você. Como lhe disse, tenho muita dificuldade para falar, as palavras me fogem, a timidez se sobrepõe ao raciocínio.” A mensagem chega por e-mail, menos de 24 horas após a visita da CULT ao ateliê de Rivane, em Belo Horizonte. Rivane Neuenschwander não precisa se preocupar com a voz para se comunicar. Ela faz isso – e muito bem – com sua arte.

De Machado a BeckettA relação com a literatura é marcante na produção de Rivane Neuenschwander. Primeiro Amor (2005) – em que o visitante é convidado a descrever seu primeiro amor para um desenhista da polícia especializado em retrato falado – é também o título de um livro de Samuel Beckett, autor que, para Rivane, representa o sentimento do mundo.Já […] (2005) – instalação com máquinas de escrever que contêm apenas teclas com números e pontuações, por meio das quais o público pode deixar seu recado – tem relação com o capítulo “O Velho Diálogo de Adão e Eva”, de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881, várias editoras), de Machado de Assis. Ele é escrito apenas com pontos, interrogações e exclamações.

“No momento, estou lendo Ó (Iluminuras), do poeta Nuno Ramos, o belíssimo catálogo Drifts and Derivations, Experiences, Journeys and Morphologies, publicado pelo Museo Reina Sofía, e Crônica da Casa Assassinada (Civilização Brasileira), romance de Lúcio Cardoso. Ele me fascina pela maneira como a narrativa é estruturada – cada personagem traz em si uma densidade psicológica de afetos, interesses e julgamentos morais que se embaralham na construção narrativa do livro e na cabeça do leitor”, diz.

[ad_gallery]

Deixe o seu comentário

TV Cult