O que é um lar

O que é um lar
Foto Funarte / Divulgação

 

Há um conto de Borges em que o narrador, após o falecimento de um estimado tio, retorna à sua cidade natal, onde, nos confins do continente, no meio de uma “solidão quase agreste”, o parente o iniciara em diversos enigmas filosóficos. Lá chegando, é informado de que a antiga casa de seu tio, na qual transcorreram seus aprendizados, fora leiloada e adquirida por um forasteiro, de nome Max Preetorius, sobre quem quase nada se chegara a saber. Preetorius iniciou uma misteriosa reforma da casa, executada durante as noites, e cujo resultado era desconhecido, pois a casa dali em diante ficaria sempre de portas e janelas fechadas. Envolta nessa penumbra, a casa se tornou objeto de superstição e temor na pequena cidade.

Tocado em sua curiosidade, o narrador começa a investigar o caso. Consegue localizar o arquiteto responsável pelo projeto original, que Preetorius tentara contratar para a sua reforma. O narrador, entretanto, descobre por ele que rechaçou a proposta de Preetorius, por considerá-la “uma coisa monstruosa”. Ao cabo de seguidas tentativas, o forasteiro conseguiu que um carpinteiro de outra província se encarregasse de executar suas ideias. O narrador encontra-o também e ouve dele que “em minha humilde opinião, o sr. Preetorius estava louco”.

Em meio a essas contundentes reticências, certa noite o narrador caminhava nas proximidades da casa quando foi surpreendido por uma tempestade. Abrigou-se sob uma árvore, mas à luz de um relâmpago notou que já estava em frente à casa. Empurrou o portão de fora, que cedeu. Dali pôde ver que a porta da casa estava entreaberta. “Uma rajada de chuva me açoitou na cara e entrei.”

Dentro da casa, descobre que a sala de jantar e a biblioteca de suas recordações deram lugar a uma só grande peça desmantelada, com um ou outro móvel. “Não tratarei de descrevê-los porque não estou seguro de tê-los visto, apesar da desapiedada luz branca.” O narrador se justifica argumentando que só se pode, propriamente, ver uma coisa quando se a compreende: “a poltrona pressupõe o corpo humano; as tesouras, o ato de cortar”. Nada, porém, do que se lhe deparava naquela casa correspondia ao reconhecível e doméstico mundo humano, tudo ali era destituído do manto simbólico pelo qual as coisas tornam-se coisas, os objetos, objetos, e o mundo, mundo. “Senti repulsa e terror.”

Lembrei-me repetidamente desse conto nos últimos meses. No começo do ano passado, desfiz um casamento de dez anos e duas crianças. A experiência comum é suficiente, ninguém precisa ter lido de Ovídio a Freud para constatar que o trabalho do luto é um processo de realocação da libido. Menos óbvia e repisada, entretanto, é a questão do espaço em meio a essa aventura. Um movimento de desterritorialização envolve dimensões afetivas, psíquicas, mas também propriamente espaciais. Refazer o seu mundo implica refazê-lo afetivamente, psicologicamente e espacialmente. Tendo saído da casa em que vivi por anos com minha ex-companheira e meus filhos, abria-se para mim o processo de construir espacialmente uma nova casa. Ou, mais precisamente (a língua é sábia): um lar.

Um lar é muito mais do que uma casa. Uma casa é um espaço delimitado, destinado à moradia. É uma abstração. É o que as crianças desenham, é o que outdoors anunciam, é um arquétipo. Já um lar – um lar é uma casa humanizada, particularizada, impregnada de sentido e história. A casa do conto de Borges é uma espécie de redução da casa à coisa, do objeto ao inominável, da linguagem à opacidade, em suma, do simbólico ao real. É uma não casa, e é, antes disso, um antilar.

Um lar pressupõe uma casa (ao menos para nós, modernos), mas uma casa não garante um lar. Para transformar uma casa num lar, é preciso dedicar-se ao espaço como nos dedicamos aos afetos ou ao trabalho. É preciso pensar o espaço, sentir o espaço, testar o espaço. E, claro, ocupá-lo. Em toda a minha vida, sempre tivera uma relação negligente com o espaço doméstico. Tendo alcançado equilíbrio e estabilidade em outras dimensões, não sentia a necessidade de uma relação mais profunda e estabilizadora com a casa. Gosto enormemente de um livro de Flávio de Carvalho em que ele observa que a moda é um sistema externo de equilíbrio psicológico, prescindível aos que encontram seu equilíbrio no registro interno (os filósofos, por excelência, segundo o modernista). Pois bem, para mim, a casa sempre foi um pouco como a moda: dois sistemas que em boa medida ignorei, por não precisar muito deles.

A experiência da desintegração da família, contudo, perturbou a economia do meu equilíbrio e fez surgir a necessidade de tornar a casa um elemento estabilizador. De um adepto do décor vazio, jobsiano (dizem que Steve Jobs só tinha uma poltrona e uma luminária em sua grande sala), transformei-me em um apaixonado por objetos. Móveis, fotos, vasos, brinquedos, até um simples pendurador – cada objeto dá a sua contribuição para a humanização da casa, para a sua transformação em um lar. Cada objeto é um fragmento de história que se inscreve espacialmente na casa, investindo-a de sentido. Ao longo de quase um ano, pude sentir a colaboração dos mais diversos objetos e a experiência estabilizadora da criação do espaço: as camas dos meus filhos, os lençóis de meus filhos (objetos poderosos, que vão velar o que tenho de mais sagrado), cada parede da casa que emassei, lixei e pintei, cada pote de cozinha, o duto do gás, cada quadro pendurado, em suma, cada objeto que, incorporado à casa, transformou, junto dela, meu espaço psíquico, organizando-o, estabilizando-o, situando-o numa vita nuova.

É isso um lar: uma espécie de proteção, não apenas material, contra as intempéries naturais e urbanas, mas também psíquica e emocional. Da perspectiva etimológica, “lar” designava, antes de tudo, o espírito tutelar a quem incumbia proteger a casa (e também a cidade, as ruas, etc.). Entre os etruscos e os antigos romanos, “lares” eram deuses domésticos, protetores da família e da casa. Lar é o que guarda, protege, tutela. Ainda sob essa perspectiva, chamava-se “lar”, desde os séculos 15/16, ao local, na cozinha, onde se acendia o fogo (daí “lareira”). Por extensão, lar passou a designar a casa habitada como um todo. Com efeito, a cozinha, ainda hoje e com mais forte razão, podemos imaginar, em épocas passadas, é o centro da casa: local onde se produzem os alimentos, fonte de tudo, e onde tantas vezes se concentrou a sociabilidade. “Lar” se referia a essa espécie de coração da casa que é a cozinha, lugar quente, afável, agregador.

A língua portuguesa guardou essa especificidade, essa dimensão tutelar, acolhedora da palavra lar em relação ao termo casa – que, portanto, não é seu sinônimo absoluto. Casa está mais próximo de moradia, de habitação. É uma palavra que se presta a registros discursivos impessoais. Lar, não. O seu campo de uso é afetivo, pessoal. O Estado deveria garantir a toda a população moradias dignas. Mas o Estado nunca poderia proporcionar um lar. Um lar é sempre de cada um, cada um com seus deuses domésticos, na verdade uma extensão de suas personalidades, seus gostos, seus valores, seus afetos, suas histórias.

Em outras línguas a diferença entre casa e lar também é marcada: maison/foyer, por exemplo, ou house/home. A expressão de língua inglesa home, sweet home traduz perfeitamente o significado de lar. Qualquer que seja a visualização mental disparada por ela, sempre haverá pessoas no cenário. O lar é a realidade psíquico-afetiva formada pela relação entre a casa e seu(s) morador(es). Essa palavra que designa um espaço protegido, acolhedor, lugar de identificação pessoal, passou a se referir também, por extensão, ao país natal, lugar de identificação coletiva. Lar, portanto, é sobretudo uma realidade afetiva. Também aqui a língua inglesa dispõe de uma expressão precisa: home is where the heart is (escrevendo sob o calor carioca de 40 graus, acabei de escrever home is where the heat is).

O espaço doméstico é sempre o correlato físico do espaço psíquico do sujeito. Mas essa é uma relação de mão dupla. Não são apenas as aventuras e desventuras do sujeito que aparecem no espaço da casa, revelando-as, e como sua consequência; as aventuras criadas no espaço doméstico também repercutem no espaço psíquico, transformando-o. Os objetos e as relações espaciais têm um poder terapêutico de estabilização.

franciscobosco@terra.com.br

 

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