Pachukanis e o componente de classe que marca o fascismo

Pachukanis e o componente de classe que marca o fascismo
Evguieni B. Pachukanis: persona non grata mesmo entre os juristas que se tomam como progressistas (Foto: Reprodução)

 

No prefácio de seu célebre 10 dias que abalaram o mundo, John Reed anotou: “qualquer que seja a nossa opinião a respeito do bolchevismo, é inegável que a Revolução Russa foi um dos grandes acontecimentos da história da humanidade”. Se, como sugeria Reed, os bolcheviques constituíam, naquele momento, a única força capaz de propor e implementar um programa socialista construtivo, talvez o fossem porque contavam, em sua vanguarda, com quadros preparados para agir em acordo com as grandes aspirações das massas trabalhadoras.

E, para além de qualquer dúvida, o jurista Evguiéni Bronislavovitch Pachukanis (1891-1937) foi uma dessas pessoas. Intelectual de primeira linha, não se furtou das lutas de seu tempo. Foi membro da Academia Comunista e do Comissariado do Povo, atuou como “juiz popular” e alcançou a posição de vice-comissário da Justiça, tendo, inclusive, colaborado para a redação da Constituição Soviética de 1936. Contudo, a despeito de sua destacada atividade nos momentos formativos da URSS, sua trajetória foi tragicamente abreviada no âmbito dos infames “processos de Moscou”, conduzidos pelo promotor Andrei Vychinski, que, àquela altura (1937), era dos nomes mais destacados nas cortes soviéticas. Perseguido, preso e executado, Pachukanis teve sua obra proscrita.

A condição de ilustre desconhecido, sobretudo fora dos restritos círculos marxistas, poderia ser creditada à violência stalinista? Sim e não. O que talvez melhor explique seu quase anonimato é, curiosamente, aquilo que lhe valeu a condenação: a contundência de sua produção intelectual. Sua obra fundamental, A teoria geral do direito e o marxismo (1924), imanentemente atrelada à crítica proposta por Marx em O capital, demonstra com peculiar clareza a historicidade da forma jurídica – as relações sociais somente são “juridicizadas” nas sociedades organizadas sob o modo de produção capitalista – e apontam para a incontornável conclusão de que, uma vez superado o capitalismo, também restaria abolido o Direito. Ignorado pelos juristas tradicionais (agarrados à legalidade e ao ordenamento jurídico), Pachukanis é persona non grata mesmo entre os juristas que se tomam como progressistas: seu radicalismo afronta a ideia de que o direito tenha um papel decisivo na emancipação social e abomina uma luta política que se limite à conquista de novos direitos.

Para além das questões jurídicas, a peculiar densidade de seu pensamento pode agora ser examinada em Fascismo. Não é uma obra doutrinária – não se apresenta como “reflexão acadêmica”, metódica e metodologicamente orientada para a crítica de um objeto –; reúne, outrossim, textos impregnados da emergência histórica. Revela-se aí uma qualidade rara, que, uma vez mais, remete a Marx, presente em um Pachukanis “historiador”: a capacidade de analisar os eventos e deles extrair sua dimensão lógica, de modo a construir uma narrativa objetiva, porquanto verdadeira, e fundante da práxis, no contexto da construção do socialismo na URSS.

Em Fascismo são elencados dois relatórios (“Para uma caracterização da ditadura fascista”, lido na Academia Comunista, em 20 de novembro de 1926; e “A crise do capitalismo e as teorias fascistas do Estado”, pronunciado na plenária da União das Associações das Sociedades de Estadistas Marxistas, em 11 de agosto de 1931), um exame dos eventos que compõem o complexo quadro da revolução socialista na Alemanha, em 1918, cuja derrota determinou as condições que permitiram a ascensão do nazismo (“Como os sociais-fascistas falsificaram os Sovietes na Alemanha”, escrito em 1933), e um verbete (“Fascismo”), escrito para a Enciclopédia do Estado e do direito (obra dirigida por outro jurista soviético, Piotr Stutchka, publicada entre 1925 e 1927 pela Editora da Academia Comunista).

 

Que há de comum entre os
escritos ora reunidos?
Pachukanis aponta o
componente de classe
que marca essencialmente
o fascismo, trazendo à
tona as imbricações do
movimento político com
os gigantes da indústria
e do mercado financeiro.

 

 

“O fascismo é fruto do estágio imperialista do desenvolvimento capitalista”, sugere. Pachukanis argumenta no sentido de mostrar como os efeitos catastróficos do acirramento da competição econômica em um contexto de guerra e de desilusão, criaram condições para o fascismo (da Itália para outros países europeus). Indica como os esforços contrarrevolucionários empreendidos pela burguesia e as elites os levaram a desnudar as tão caras ilusões democráticas liberais. “O grande capital, em determinadas condições, vê-se obrigado a declinar dos métodos de organização democrática das massas, bem como da ajuda que lhe prestam os sociais-democratas”, anota, ressalvando que “(…) eis que, no lugar do entorpecente social-reformista, coloca-se a demagogia fascista como meio de dominação das massas”.

É nessa verve que os elementos próprios do fascismo (o primitivismo, o chauvinismo eloquente, os caráteres mítico e mosaico de ideias, a organização miliciana, a relação com a pequena burguesia e as massas etc.) permitem um desbravamento da situação e a compreensão das tarefas históricas da revolução naquele momento particular. Porém, dado o alcance de sua análise, por não poucas vezes o texto é capaz de transcender seu próprio tempo e oferecer ao leitor subsídios decisivos para a crítica socioeconômica e para o pensamento político hodiernos.

Não se trata, pois, de manual para ideólogos nem de obra restrita aos juristas. Muito ao contrário. Fascismo é um daqueles livros para serem apreciados com detimento: sua concisão é inversamente proporcional ao aguçamento que provoca nas ideias. É, assim, leitura importante para qualquer um que queira compreender a história do capitalismo. E essencial para os marxistas do século 21.

Oswaldo Akamine Jr. é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, coautor de Léxico Pachukaniano (Lutas Anticapital, 2020) e professor da FACAMP – Faculdades de Campinas.

Fascismo
Evguieni B. Pachukanis
Boitempo
128 páginas – R$39


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você

Deixe o seu comentário

TV Cult