Pachukanis: contra as ilusões do direito

Pachukanis: contra as ilusões do direito
Evgeny B. Pachukanis: são dele algumas das ideias mais agudas para desvendar as ilusões jurídicas (Foto: Reprodução)

 

A forma como a sociedade passou a conviver de modo cada vez mais intenso com as entranhas do “mundo jurídico”, não apenas pela espetacularização dos processos judiciais (comentados passo a passo em programas sensacionalistas e com julgamentos transmitidos ao vivo), mas também pela contínua judicialização das mais variadas esferas da vida, não deixa dúvida de que o interesse por entender o que é o direito – como ele surge, ganha forma e conteúdo, se alastra e age – ultrapassa os círculos especializados, compostos por bacharéis que manejam o “juridiquês”.

É por isso que temos todos que aplaudir a publicação de estudos que nos levem para além dos discursos de costume, que apenas justificam o direito e reforçam as ilusões (igualdade, liberdade, neutralidade etc.) sobre as quais ele se sustenta e detrás das quais se esconde sua verdadeira natureza. Neste sentido, poucos autores deram contribuição tão decisiva para a crítica do direito e para a compreensão de seu papel no funcionamento da sociedade capitalista quanto o jurista soviético Evgeny B. Pachukanis (1891-1937), ao pensar o direito enquanto se dedicava intensamente à atividade política revolucionária nas primeiras décadas do século 20. São dele, sem dúvida, algumas das ideias mais agudas para desvendar as ilusões jurídicas: é dessas ideias que trata Léxico pachukaniano, livro que a editora Lutas Anticapital lança em novembro.

O livro reúne 14 verbetes escritos pelos pesquisadores brasileiros Carolina de Roig Catini, Celso Naoto Kashiura Jr., Flávio Roberto Batista, Gabriel Martins Furquim, Márcio Bilharinho Naves, Oswaldo Akamine Jr., Pablo Biondi e pelo italiano Carlo Di Mascio. Traz ainda dois textos de Pachukanis inéditos em português: o artigo “Os primeiros meses da existência do Tribunal Popular de Moscou” e uma resenha do terceiro volume do Arquivo K. Marx e F. Engels, organizado por D. Riazánov, em 1927.

De início, deve-se destacar o acerto da forma escolhida para o livro. A ideia de abordar coletivamente a obra de Pachukanis a partir de seus principais termos-chave (contrato, delito, Estado, Estado proletário, extinção do direito, fetichismo jurídico, forma jurídica, ideologia jurídica, método, moral, norma jurídica, propriedade, relação jurídica e sujeito de direito) favorece a aproximação do leitor com ideias que, escritas há 100 anos, se inserem no debate sobre a teoria marxista que a antecede, atravessa e sucede, bem como, de lá para cá, se chocam com diversas outras questões teóricas e históricas, como o próprio destino da revolução de que Pachukanis fez parte.

Registre-se, também, que Léxico pachukaniano chega em momento oportuno, em razão do interesse recentemente despertado pela publicação de duas edições de sua obra máxima, A teoria geral do direito e o marxismo, de 1924, que saíram aqui em 2017 (uma pela Boitempo, outra pela Sundermann) e têm sido objeto de diversas pesquisas e debates no meio universitário. Mas cabe lembrar: assim como as ideias de Marx não são bem-vindas nas rodas em que o capitalismo é visto como insuperável (sejam por aqueles que simplesmente o defendem, seja por aqueles que o criticam, mas entendem que “tem conserto”), Pachukanis normalmente fica de fora de obras tradicionais que se propõem a pensar o direito, como se suas ideias, por serem “radicais demais”, não merecessem sequer a consideração dos juristas. E é justamente por serem “radicais demais” – por chegarem às raízes do direito – que deveríamos estudá-las com atenção.

Em sua principal obra, Pachukanis demonstrou como o direito tem sua “estrutura íntima” inseparavelmente dedicada à afirmação e à perpetuação da exploração capitalista, de modo que é impossível conceber um direito de natureza diversa, socialista ou comunista, ou conservar algo do aparato jurídico e institucional burguês numa sociedade que não seja capitalista. Na formulação de Pachukanis, o direito é fundamental para dar forma à sociedade capitalista e não pode ser separado das relações típicas do capitalismo, portanto, é tarefa revolucionária essencial superar completamente o direito burguês como parte da superação do capitalismo. É evidente, assim, que as ideias de Pachukanis não se chocavam apenas com o discurso burguês sobre o direito, mas também com o ideário dominante no stalinismo, o que fez com que o autor fosse obrigado a rever suas teses. A rejeição expressa às ideias defendidas em A teoria geral do direito e o marxismo, no entanto, não foi o suficiente para que ele sobrevivesse a Stálin.

 

Os verbetes de Léxico pachukaniano
que, na verdade, são longos ensaios
sobre cada um dos temas – percorrem
o pensamento de Pachukanis abrindo
novas perspectivas para discutir a
atualidade de sua obra e, ao mesmo
tempo, recolocam seu sentido dentro
da crítica marxista do direito.

 

 

Para tanto, os autores não apenas apresentam os conceitos segundo Pachukanis, mas também leem criticamente seus textos, retomando a sua relação com a obra de Marx e estendendo o embate da teoria de Pachukanis com a teoria jurídica dominante até os dias de hoje. Como afirmam Celso Naoto Kashiura Jr. e Márcio Bilharinho Naves no prefácio, o livro tem um duplo objetivo: “Por um lado, permitir a consulta direta aos principais conceitos da teoria do direito de Pachukanis, suprindo a necessidade de se conhecer um aspecto determinado dela; por outro, devido ao entrelaçamento desse campo conceitual […] servir como uma verdadeira introdução ao pensamento do jurista russo”. Pode-se dizer, no entanto, que Léxico pachukaniano vale também como uma introdução crítica à teoria do direito.

Para quem se interessar por aprofundar as leituras sobre Pachukanis, vale lembrar que os autores dos verbetes do Léxico pachukaniano assinam também alguns dos principais livros sobre as – e a partir das – ideias do autor, que vale registrar aqui: de Marcio Bilharinho Naves, Marxismo e direito (Boitempo, 2000) e A questão do direito em Marx (Outras Expressões, Dobra, 2014); de Celso Naoto Kashiura Jr., Crítica da igualdade jurídica (Quartier Latin, 2009) e Sujeito de direito e capitalismo (Outras Expressões, Dobra, 2014); de Flávio Roberto Batista, Crítica da tecnologia dos direitos sociais (Outras Expressões, Dobra, 2013); de Oswaldo Akamine Jr., A teoria pura do direito e o marxismo (Lado Esquerdo, 2017); de Pablo Biondi, Dos direitos sociais aos direitos de solidariedade (LTr, 2017); de Carolina de Roig Catini, Privatização da educação e gestão da barbárie (Lado Esquerdo, 2017); e de Carlo Di Mascio, Pasukanis e la critica marxista del diritto borghese (Phasar, 2013) e o recente Note su ‘Hegel. Stato e diritto’ di Evgeny Pachukanis (Phasar, 2020).

Percorrendo os verbetes de Léxico pachukaniano, assim como os livros citados acima, fica fácil perceber por que o jurista soviético, passados quase 100 anos da publicação de sua principal obra, é ainda uma figura tão incômoda e indesejada nas conversas sobre o direito. O pensamento de Pachukanis atinge de modo fulminante algumas das “verdades” mais repetidas, inclusive por parte da “crítica”, e revela o quanto de mistificação envolve a aposta em que o direito seja capaz de tornar mais digna a vida numa sociedade armada pelo e para o capital. Gestadas num dos momentos históricos cruciais da luta dos trabalhadores contra o capital, as palavras de Pachukanis, seu léxico rigoroso, continuam sendo armas importantíssimas da crítica neste momento em que outras tantas lutas se impõem aos trabalhadores. Decerto, neste contexto adverso, quanto menos ilusões tivermos a respeito de nosso papel e de nossos “instrumentos” dentro da sociedade capitalista, melhores condições teremos de lutar. E Pachukanis, seguindo a trilha de Marx, derruba ilusões como poucos. Pouquíssimos.

Tarso de Melo é poeta e ensaísta, doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. Autor de Rastros (Martelo, 2019), entre diversos livros.

Léxico pachukaniano
Márcio Bilharinho Naves e outros
Lutas Anticapital
273 páginas – R$ 40


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