Estética e Literatura

Estética e Literatura

Do Renascimento ao século 20, os caminhos cruzados da arte das letras e da arte das imagens

Márcio Seligmann-Silva

Tratar da relação entre Estética e literatura exige uma abordagem com um viés duplo: do ponto de vista da teoria estética a literatura sempre ocupou um local central. A Estética, desde seus primórdios – antes mesmo do surgimento propriamente dito da disciplina “Estética” no século 18 –, ocupa-se de textos da literatura. Já do ponto de vista da produção literária e da disciplina que a estuda, a teoria literária, a Estética aportou importantes idéias e deixou naquela última uma marca profunda, impossível de ser contornada. 

Desde a Antiguidade greco-romana a teoria das artes foi pensada a partir dos tratados de poética. A reflexão sobre as imagens foi em grande parte derivada de uma análise de obras literárias. A Poética de Aristóteles teve um papel fundamental na reflexão sobre as artes, assim como sua Retórica e, posteriormente, tratados latinos de autores como Horácio, Cícero e Quintiliano. Poucos textos da Antiguidade se detêm na reflexão mais aprofundada das artes plásticas. Tratados como o Naturalis historiae, de Plínio, contêm uma incipiente história da arte, mas não podem ser comparados com o grau de complexidade da teoria poética alcançada então. 

Os artistas plásticos do Renascimento não possuíam um acervo de regras e preceitos nem de longe tão rico quanto os vários tratados de retórica e de poética herdados da Antiguidade. Roger de Piles, no século 17, lamentava o fato de que tanto os tratados de pintura da Antigüidade, como também as próprias pinturas daquela época longínqua houvessem sido destruídos. Leon Battista Alberti, o primeiro pintor renascentista que resolveu diminuir essa desvantagem dos pintores diante dos poetas, baseou o seu De pictura (1435) em obras de oradores e teóricos da poesia antigos. 

Em decorrência desse fato a própria concepção de pintura e de escultura será, de início, eminentemente lingüística. Se entre os teóricos da Antiguidade a poesia era esporadicamente comparada com a pintura – lembremos, sobretudo, o ­famoso verso da poética de Horácio: “ut pictura poesi” (“Poesia é como pintura”) –, no Renascimento essas comparações esporádicas, que tinham um papel meramente ilustrativo, ganham um peso que não existia nos seus contextos de origem. 

Aristóteles, apesar de não ter deixado um tratado de artes plásticas, fundamenta a sua teoria da tragédia com base na noção de mímesis. Todas as artes seriam miméticas. O importante dessa concepção é que, apesar da centralidade da reflexão sobre a poesia na Antiguidade, esse tratado de Aristóteles, com sua ênfase na arte como imitação, coloca o ideal das artes como sendo um ideal imagético e, portanto, mais próximo da pintura que das artes das palavras. O paradoxo aqui é que o discurso, logos, é visto como meio privilegiado para essa realização da mímesis

O pintor moderno se torna teórico e ­realizador de uma pintura voltada, sobretudo, para a representação da narração, ou seja, da História. Esse pintor deve ser, para cumprir essa nova função, um pictor doctus (pintor erudito), cópia do doctus poeta (poeta erudito, com uma larga bagagem de leitura): sem essa erudição ele não poderia corresponder à doutrina do decorum. Por fim, o pintor está submetido a um rigoroso código de regras sociais, de âmbito moral, político e religioso. Nesse último sentido a pintura torna-se ilustração, um meio didático de atingir de modo mais “imediato” o que a escrita não consegue realizar; basta lembrar do papel fundamental atribuído a ela na era da Reforma e da Contra-Reforma. A pintura, desde o Renascimento, é, de certo modo, uma pintura de e sobre palavras. O seu fim também é o (re)despertar, no espectador, das palavras que ela encerra em si: se a poesia, como vimos, quer ser imagem, a pintura quer ser lida, traduzida em comentários, quer voltar a ser texto. A pintura histórica ocupa o local privilegiado dentro da hierarquia dos gêneros de arte, o que também dá provas da valorização da Idéia sobre o elemento material nas artes. Graças ao predomínio da invenção é que se pôde afirmar a traduzibilidade entre as artes. 

Criaram-se correspondências entre os personagens principais de cada uma delas: Zêuxis seria um Homero; Michelangelo, um Dante; Giotto, o Petrarca. Nessa série em espelho refletem-se também conceitos herdados da filosofia – sobretudo do neoplatonismo – como a oposição entre o olho e o espírito, entre visível e Idéia, sendo que constituía um lugar comum no ­neoplatonismo renascentista, com sua concepção panteísta de mundo, atribuir ao olhar a função central dos sentidos, pois o mundo seria ele mesmo uma escrita divina e os nossos olhos seriam as portas de acesso para o Saber. O pintor não deveria representar o objeto individual; isso não importava, não era digno de ser representado. Ele visava representar o macrocosmo através do microcosmo. A pintura buscava o universal, o tipo, vale dizer: o Belo absoluto. 

A partir do final do século 17 essa situação se modifica. Aos poucos uma retórica anti-racionalista vai se impondo. Dubos, com seu tratado de 1719 sobre a literatura e pintura, já anuncia as idéias de artista como um original, e não mais como um imitador. Em Breitinger, por exemplo, importante teórico suíço da literatura e contemporâneo de Voltaire, fica evidente a combinação na então incipiente Estética entre, de um lado, a filosofia de Christian Wolff, com sua tendência iluminista para a valorização dos conceitos claros e distintos (da linguagem discursiva) e, do outro, a retórica irracional e sensualista. É nesse contexto que um novo conceito de imaginação começa a ser delineado. 

A imagem ou, mais exatamente, o elemento imagético do conhecimento, é vista como um momento indispensável na formação do conhecimento racional. A obra de Breitinger representa justamente um passo importante no desenvolvimento da Estética como campo de estudo desse elemento imagético, o que significou a superação do tradicional rebaixamento do valor dos sentidos na constituição do aparelho racional. O renascimento da retórica irracional e as tentativas de conectá-la à criação de uma linguagem “direta”, imagética, são pressupostos sem os quais a fundação dessa nova disciplina, a Estética, teria sido impossível. A comparação entre as artes revelou-se para esse e muitos outros autores daquele século como um campo fértil para desenvolver essa teoria da imaginação. 

A teoria estética propriamente dita nasce em 1750, com Alexander Gottlieb Baumgarten, a partir de questões tanto filosóficas como literárias. A Estética se desenvolve justamente enquanto uma “ciência” que tenta mediatizar entre o absolutamente único (pensado tanto como o individual percebido na natureza, como a obra fruto do “gênio”) e o universal (campo ao qual a arte pertenceu até o séc. 17). A reflexão intersemiótica que está na sua base leva a uma teoria dos signos: o meio de ligação entre o indivíduo e o mundo, entre o sujeito e o objeto. A Estética é a disciplina que se desenvolveu para dar conta dessa faculdade anímica das imagens, “ponte” entre a percepção – aisthesis – e os conceitos, entre o individual-imagético e o universal-conceitual, que, por sua vez, não existe sem as imagens. (Lembremos a famosa máxima kantiana: “Conceitos sem intuição são vazios…”). Se o mundo se torna ao longo do século 18 mais e mais um fato lingüístico, a nossa linguagem, por sua vez, torna-se um “fato imagético e conceitual”. A doutrina da comparação entre as artes e a literatura vai, por assim dizer, se dissolvendo nesse novo paradigma da linguagem: se tudo é linguagem e imagem, a discussão não deve se dar mais nos termos da mímesis, mas sim em termos de uma teoria da linguagem produtora do mundo. 

Os grandes teóricos da Estética do final do Iluminismo e do Idealismo, como Diderot, Moses Mendelssohn, G.E.Lessing, Herder, Kant, Schiller, Schelling e Hegel vão transitar em seus exemplos entre as artes plásticas e a literatura, mas de um modo geral podemos dizer que a literatura continua a predominar (o que já era o caso no próprio Baumgarten), tendo em vista a familiaridade maior daqueles autores com obras literárias do que com a história da arte. Kant pouco conhecia desta última. A moderna teoria literária, por sua vez, nasceu de um diálogo daquelas reflexões estéticas com a tradição filológica anterior. Além dos autores já citados, outros, como Friedrich Schlegel, Novalis e Baudelaire foram fundamentais para a reflexão sobre a literatura, e em todos os três a teoria literária nunca deixou de ser realizada ao lado da teoria das artes plásticas e da própria criação de obras literárias. É apenas ao longo do século 19, com a criação dos departamentos de filologia nacionais, que surgem os teóricos especializados apenas em literatura. 

No século 20 vemos tanto filósofos que tiveram uma importante produção de teoria literária e de estética (Heidegger, W. Benjamin, Adorno, H-G. Gadamer, P. Ricoeur, J. Derrida e G. Deleuze), como teóricos da literatura que influenciaram o pensamento estético (G. Bataille, M. Banchot, R. Barthes, T. Todorov, G. Genette). Adorno pode ser visto como o último filósofo que ainda tentou escrever a sua teoria estética dentro da tradição idealista alemã (mas também contra ela). Desde as últimas décadas do século 20 detectamos uma dissolução das fronteiras entre as disciplinas Estética e teoria literária, que ocorre tanto em função de uma crise das disciplinas das humanidades, de um modo geral, como devido ao surgimento de novas abordagens e de novos temas. A midialogia, por exemplo, incorpora elementos dessas duas tradições. Com a web, a distinção entre literatura e artes visuais entra em crise também. Mas a Estética, onde quer que ela seja pensada, ainda tem uma grande dependência em relação à literatura, mesmo que esta agora seja concebida cada vez mais como imagem. 

Márcio Seligmann-Silva
é professor livre-docente de Teoria Literária na UNICAMP

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