Entre Platão e o apagão
Foi o pano de fundo autoritário que deu sentido e alguma justificativa ao debate sobre a tecnocracia no Brasil; a moderna economia brasileira é, em grande parte, um produto da intervenção estatal
Nem planejamento, nem justiça social: as duas noções são enganadoras e incompatíveis com a liberdade, segundo Friedrich Hayek, um dos economistas mais polêmicos e mais influentes nos últimos sessenta anos. Quando ele morreu, em 1992, o mundo parecia haver-se rendido a algumas de suas bandeiras mais conhecidas. Políticas distributivas haviam sido abandonadas ou enfraquecidas na maior parte do mundo ocidental, a privatização avançava e a planificação econômica estava em baixa. O Brasil entrou na onda, a expressão política industrial só foi reabilitada no final dos anos 1990. O apagão de 2001 mostrou que deixar de planejar pode ser um chapado exercício de imprevidência e não de humildade intelectual e política.
A fase triunfal do ultraliberalismo e do culto ao mercado parece ter ficado para trás. Não há, no horizonte, sinais de retorno às políticas dominantes até o meio dos anos 1970, mas o debate mudou e tende a ganhar complexidade e riqueza. Esse debate refere-se, essencialmente, a relações entre conhecimento e política e entre política e economia.
Política, nesse caso, inclui a realização de valores típicos da modernidade, como a tolerância, a liberdade individual e a igualdade. Nenhum desses valores é unívoco. Além disso, pode-se combiná-los em proporções variáveis de um país para outro. O crescente prestígio da noção de direitos humanos também complica a discussão, deslocando os problemas para o plano supranacional.
A complicação, nesse caso, decorre de um dado simples: a consolidação dos direitos, primeiro individuais, depois sociais, é um aspecto da história do Estado moderno. A conversão da tolerância em princípio político é um exemplo disso. Direitos individuais e direitos sociais só se tornaram efetivos, nos últimos quatrocentos e tantos anos, porque levaram o carimbo do poder soberano. Ainda não está claro como essa função será exercida no plano transnacional.
O radicalismo liberal pode aceitar a defesa de certas liberdades pelo poder público, mas tende a rejeitar a maior parte dos papéis assumidos pelo Estado nos últimos 150 ou 200 anos. Nesse período, o poder político, além de instituir medidas protetoras da concorrência, como as leis antitrustes, regulou contratos para equilibrar o poder de empregados e empregadores, criou mecanismos fiscais para a redistribuição de riqueza e de renda, implantou políticas de proteção setorial e adotou novas formas de políticas de longo prazo, por meio de técnicas de planificação.
Essa intervenção do Estado na economia nunca foi recebida pacificamente. No século 20, os argumentos contra a ação estatal foram fortalecidos pela experiência do totalitarismo. Hayek publicou em 1944, quase no fim da Segunda Guerra, o texto que o tornaria famoso fora da Academia e projetaria seu nome nos grandes debates políticos: O Caminho da servidão. Um ano depois, Karl Popper lançaria A Sociedade aberta e seus inimigos. Platão, Hegel e Marx são os alvos principais de suas críticas – uma combinação estranha, à primeira vista, uma vez que o grego e os dois pensadores alemães pertencem a contextos políticos e culturais muito diferentes.
Popper e Hayek baseiam boa parte de suas críticas ao planejamento em suas convicções sobre os limites da razão e do conhecimento. Isso faz de Platão um alvo comum. “A justificativa da liberdade individual”, escreveria Hayek num livro publicado em 1972, “fundamenta-se principalmente no reconhecimento da inevitável ignorância de todos os homens quanto à maior parte dos fatores dos quais depende a realização dos nossos objetivos e do nosso bem-estar”. A concepção platônica de Justiça, tal como exposta em A República, é tomada, pelos dois autores, como símbolo da arrogância de uma razão que desconhece os próprios limites.
Especialistas podem criticar como a-histórica a interpretação da obra platônica oferecida por autores como Popper, Hayek e outros escritores modernos. Mas a tentação é forte. Com algum cuidado, pode-se apontar em sua obra sementes de um tipo de pensamento autoritário. Na república ideal de Platão não haveria leis. A Justiça resultaria da ordenação do corpo social. Cada classe cumpriria seu papel e praticaria a virtude correspondente à sua condição. Aos homens dedicados à atividade material, caberia a temperança. Aos guardiães, a coragem. Aos governantes, a sabedoria. A Justiça não estaria vinculada a nenhuma das classes ou castas: seria uma conseqüência do bom funcionamento de todas as partes. O comando seria exercido, preferencialmente, por um rei filósofo, capaz de saber o que convém ao Estado em cada circunstância.
Ficou associada ao nome de Platão a imagem de um Estado rigidamente ordenado e submetido à orientação de um rei filósofo, embora ele tivesse escrito, no fim da vida, um livro intitulado As Leis, mais longo que A República. Nesse livro, só conhecido postumamente, as personagens discutem a fundação e a ordenação de uma colônia pelos cretenses. Depois de uma discussão preliminar, conclui-se que o governo das leis seria o melhor para a nova cidade. As leis seriam pedagógicas e conteriam um elemento de persuasão. Haveria, portanto, um sistema de garantias legais para os cidadãos? Essa pergunta não teria sentido para Platão. A noção moderna de garantia está associada a uma concepção de direitos que só se esboçou na fase final da Idade Média e se consolidou na modernidade. Além disso, as leis daquela colônia imaginária seriam pedagógicas não só por seu componente persuasivo, mas também porque regulariam detalhes mínimos da vida cotidiana. Por um caminho diferente daquele de A República, seria afirmada a supremacia da razão ordenadora.
Mas a democracia moderna, que valoriza as liberdades e os direitos individuais, não é uma negação da racionalidade. Ao contrário: seus primeiros defensores tentaram mostrar que a obediência ao poder político só é justificável com base num cálculo de perdas e ganhos. Segundo esses autores, a mesma razão que pode justificar a adesão à sociedade política deve limitar o alcance do poder público. Essa noção é um dos pilares do contratualismo liberal. “Não se pode supor”, escreveu Locke no Segundo Tratado sobre o Governo, “que uma criatura racional mude propositadamente sua condição para pior”. Logo, não se pode supor que o poder da sociedade, isto é, o poder legislativo por ela constituído, “se estenda para além do bem comum”, que inclui, nessa perspectiva, a garantia da segurança pessoal, da liberdade e do patrimônio de cada um.
Na tradição liberal, a interpretação desse “bem comum” seria em geral muito restritiva e conduziria à formulação do ideal do “Estado mínimo”. A defesa dessa noção, na obra de Robert Nozick, é essencialmente baseada em certa concepção de liberdade e independe, em geral, de considerações sobre a eficácia das políticas distributivas ou de planejamento. Hayek apresenta argumentos políticos, econômicos e epistemológicos. Segundo Hayek, o planejamento é uma ação condenada ao fracasso, porque nenhum planejador pode mobilizar toda informação relevante, nem pode competir com os múltiplos agentes que operam no mercado. O planejamento é uma imposição inepta de pontos de vista dos detentores do poder. Depois, as políticas distributivistas, além de interferir no mercado, erram no alvo, porque elegem como problema a desigualdade e não a pobreza.
Todos esses argumentos valem alguma consideração, mas não respondem a algumas questões inevitáveis. Será possível, mesmo, deixar aos agentes privados todas as decisões sobre alocação de recursos? Mesmo nas economias mais liberais isso não ocorre. Quem terá nervos bastante fortes para deixar que o mercado resolva, a longo prazo, as questões ambientais mais complexas e mais importantes?
Planejar e corrigir as chamadas imperfeições do mercado não envolve, necessariamente, a pretensão de impor à sociedade um governo de sábios. Boa parte do debate sobre a tecnocracia, assunto em moda nos anos 1960 e 1970, foi simplesmente desfocada. Nunca houve, de fato, algo parecido com um governo de sábios nas chamadas sociedades abertas. Se técnicos e cientistas cometeram abusos, alguns cômicos, em certos países, foi porque um regime autoritário lhes conferiu poder para isso. Os desastres do planejamento na União Soviética, descritos de forma assustadora em textos de Abel Aganbegian, mostram o fracasso de um sistema político fechado, não a impossibilidade de um planejamento limitado e prudente.
Foi o pano de fundo autoritário que deu sentido e alguma justificativa ao debate sobre a tecnocracia no Brasil, quando os militares ocuparam o poder. Até a mudança de regime, em 1964, a mais ambiciosa e mais bem-sucedida experiência de planejamento econômico, no Brasil, havia ocorrido em condições democráticas, no governo de Juscelino Kubitschek. A moderna economia brasileira, goste-se desse fato ou não, é, em grande parte, um produto da intervenção estatal.
A siderurgia brasileira, a exploração em grande escala de recursos naturais, a criação de uma ampla base industrial e a modernização da agricultura, hoje uma das mais competitivas do mundo, são resultados positivos de ações desenvolvidas pelo poder público em circunstâncias políticas variadas. Algumas dessas intervenções ocorreram em períodos de autoritarismo, outras, em fases de regime aberto. E nem todas as mudanças que ocorreram em tempos de autoritarismo seriam incompatíveis com políticas democráticas.
Que o planejador esteja sempre arriscado a errar e a cometer o pecado da arrogância é inegável. O que não se pode afirmar é que esse pecado seja inerente ao planejamento e às chamadas políticas ativas do setor público. As mesmas pessoas que se referem com desdém à idéia de planejamento podem elogiar os administradores previdentes. Mas boa parte do planejar não é mais que um exercício de previdência.
Durante décadas, no Brasil, o investimento na geração de energia elétrica andou bem à frente da demanda. Durante esse longo tempo, ninguém afirmou que os planejadores do setor energético estivessem violentando a democracia. Quando houve o apagão, em 2001, houve muita conversa sobre incompetência e imprevidência, e nenhum discurso a respeito das delícias da escuridão democrática. Da mesma forma, nenhum governo ganhou medalha de ouro da democracia por haver sido omisso na política educacional – que é uma interferência no sistema distributivo – ou por haver negligenciado a assistência médica ou o saneamento. No entanto, a vacinação obrigatória já foi criticada como violação da liberdade individual. Sendo assim, abaixo Oswaldo Cruz?
Rolf Kuntz
jornalista e professor de Filosofia Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)
Bibliografia básica
• José Murilo de Carvalho. Cidadania no Brasil. Civilização Brasileira, 2001
• José Murilo de Carvalho. A formação das almas. Companhia das Letras, 1990
• José Murilo de Carvalho. Os bestializados. Companhia das Letras, 1987
• Kenneth Maxwell. Chocolate, piratas e outros malandros – Ensaios tropicais. Paz e Terra, 1999
• Kenneth Maxwell. A devassa da devassa. Paz e Terra, 1995
• Eliezer R. de Oliveira. De Geisel a Collor: Forças Armadas, transição e democracia. Papirus, 1994
• Celso Castro. Dossiê Geisel. FGV, 2002
• Bernardo Sorj. A construção intelectual do Brasil contemporâneo: da resistência à ditadura militar ao governo Fernando Henrique Cardoso. Jorge Zahar, 2001
• Elio Gaspari. A ditadura encurralada. Companhia das Letras, 2004
• Elio Gaspari. A ditadura derrotada. Companhia das Letras, 2003
• Elio Gaspari. A ditadura envergonhada. Companhia das Letras, 2003
• Elio Gaspari. A ditadura escancarada. Companhia das Letras, 2003
• Gianpaolo Baiocchi (Org.). Radicals in power: The workers’ party and experiments in urban democracy in Brazil. Zed Books, 2003
• Peter R. Kingstone e Timothy J. Power. Democratic Brazil: Actors, Institutions and Processes. University of Pittsburgh Press, 1999