Quem gosta mesmo da democracia?

Quem gosta mesmo da democracia?
Arte sobre obra de Tom Molloy, ‘Dúvida’, 2010 (Arte Andreia Freire)

 

Esta eleição teve algumas surpresas e muitas incógnitas. Para os liberais-democratas convictos, por exemplo, foi motivo de enorme perplexidade a resiliência da predileção por Bolsonaro na última eleição, apesar dos reiterados exemplos que demonstravam o desprezo do candidato pelos mais elementares valores da democracia. Por que, afinal, o discurso, as convicções e as práticas do candidato que claramente afrontavam os valores e princípios da democracia liberal foram desconsiderados pela maioria dos eleitores brasileiros na sua decisão de voto? No fim das contas, havia (e há) provas de sobra, acumuladas em declarações e comportamentos públicos do candidato, em diversas ocasiões ao longo da sua vida, de que as crenças do bolsonarismo e o que universalmente se compartilha como parte da mentalidade democrática moderna simplesmente não combinam. Mas por que apenas uma parte minoritária da sociedade considerou o distanciamento entre Bolsonaro e a democracia um critério suficiente para a sua definitiva rejeição eleitoral? Por que, afinal, a obsessiva exibição, pela propaganda eleitoral e pelo jornalismo, dos absurdos iliberais, autoritários e antidemocráticos ditos e prometidos por Bolsonaro e pelos bolsonaristas não produziram praticamente qualquer efeito nas intenções de voto no candidato, mesmo por parte de pessoas que claramente não eram fascistas nem compartilhavam o núcleo duro de crenças do bolsonarismo? Por que o #elenão fracassou tão completamente?

Na outra semana saiu o relatório anual da Latinobarômetro, uma ONG e think tank internacional, com sede no Chile, que monitora o apoio à democracia em todos os países da América Latina. A Latinobarômetro anda preocupada com o Brasil pelo menos desde 2010, quando começaram a declinar os índices de apoio à democracia no país. A partir de 2016, saiu de preocupada para alarmada, pois os índices de adesão à democracia simplesmente precipitaram. E é neste tom que publica o seu último relatório, que foi divulgado pela The Economist, mas qualquer um pode encontrar online.

Pois bem, o relatório de 2018 da organização Latinobarômetro ajuda, em minha opinião, a explicar o resultado da nossa última eleição presidencial brasileira, mostrando que a “surpresa Bolsonaro” não é tão surpreendente assim. Sobretudo, o relatório praticamente esfrega em nossa cara a resposta às perguntas sobre por que os brasileiros não se escandalizaram com exibição dos discursos e comportamentos antidemocráticos de Bolsonaro e por que, afinal, não se conseguiu mobilizar políticos e cidadãos em um número expressivo para a constituição de uma frente em favor da democracia.

Na verdade, nos dizem os dados do Latinobarômetro, os brasileiros não se escandalizaram com as ideias antidemocráticas de Bolsonaro nem se mobilizaram para evitar que um sujeito com tais ideias ganhasse a presidência da República simplesmente porque não têm particular apreço pela democracia. Ninguém briga por algo que não estima. E a democracia, no sentido de um conjunto de princípios e valores, é objeto de estima sincera e profunda de apenas um em cada três brasileiros. Apenas para 34% dos brasileiros, diz o relatório, a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. A média latino-americana não é muito alta, a democracia vive um preocupante viés de declínio popular no subcontinente, mas é de 48%, bem superior ao padrão a que chegou o país em 2018.  Só para efeito de comparação, no Uruguai, 61% nitidamente preferem a democracia; no Chile, estes são 54%. Na Nicarágua, em crise política como nós, ainda assim os apoiadores são 51% e, vejam só, na Venezuela, 75% dos entrevistados disseram que preferem a democracia em face de qualquer outra alternativa. Dentre os 18 países pesquisados, só guatemaltecos e salvadorenhos demonstram menor adesão à democracia que os brasileiros. Todos os outros parecem gostar mais da democracia do que nós.

Nem sempre foi assim, é bom dizer. Os brasileiros nunca se demonstraram realmente fãs ardorosos da democracia, pelo menos desde o ano de 1995, quando a pesquisa da Latinobarômetro começou a ser feita. Naquele ano, 41% dos brasileiros preferiam indiscutivelmente a democracia, enquanto os uruguaios eram 80%, os argentinos, 76%, e os venezuelanos eram 60%. Mas o número brasileiro chegou a 55% em 2009 e a 54% em 2015, os seus picos históricos. Depois de 2015, entretanto, a afeição dos brasileiros pela democracia despencou nada menos que 20 pontos percentuais.

Pior que a baixa adesão à ideia de democracia, porém, é o número de brasileiros que concordam com a afirmação tanto faz um regime democrático ou um regime não democrático. El Salvador, Honduras e Brasil lideram a lista. No país, 41% dizem não se importar se o nosso governo for ou não democrático. Democracia ou autoritarismo lhes dá na mesma. Assustador, não? Então pense que 14% dos brasileiros concordam que, em algumas circunstâncias, um governo autoritário é preferível a um governo democrático. Repito, para não deixar dúvida: para 55% dos brasileiros o governo pode não ser democrático e a democracia não faz falta, enquanto para 14% pode até ser preferível que não seja democrático. Definitivamente, se alguma coisa não esteve em alta no Brasil em 2018 foi a democracia.

De forma que se a maioria dos eleitores achou nada demais Bolsonaro ter-se indisposto com os valores e princípios da democracia isto se deu simplesmente porque a democracia não lhe diz nada. Não é que pouca gente tenha comprado a história de Bolsonaro ser contra a democracia, é que para dois em cada três brasileiros a salvação da democracia não vale o esforço. Por que eu iria engolir a minha mágoa do PT, a minha aflição com a delinquência e a minha amargura com a economia em nome da democracia, se eu nem gosto dela tanto assim e a ideia de democracia me diz tão pouco?

E quando você sai da democracia abstratamente considerada, como sistema de princípios e valores, e passa para a avaliação da situação da democracia no país, os números brasileiros continuam estarrecedores. O índice de satisfação com a democracia no país é baixíssimo. Apenas 9% estão satisfeitos com a democracia no nosso país, enquanto a média latino-americana é de 24%, a chilena é de 42%, a uruguaia é de 47%. Mesmo os venezuelanos, com 12%, se demonstram mais contentes com a democracia no seu país do que os brasileiros. Em toda a América Latina, os brasileiros são isoladamente as pessoas menos satisfeitas com a democracia no país.

O desapreço à democracia como ideia e a avaliação negativa sobre a democracia no país devem bastar para explicar, portanto, por que os brasileiros ficaram insensíveis às brutalidades antidemocráticas e indiferentes ao chamado à mobilização para salvar a democracia, mas não explica, naturalmente, porque o escolhido, afinal foi Bolsonaro. Mas demonstra, enfim, que a aposta no amor dos brasileiros à democracia foi o maior erro dos liberal-democratas e da esquerda nesta eleição.

A decepção dos brasileiros, contudo, não é só com a democracia. Brasileiros e venezuelanos estão na rabeira do ranking dos países latino-americanos no que se refere ao sentimento de que o país está progredindo. Apenas 6% acreditam nisso, contra 44% dos bolivianos e 33% dos chilenos. Além disso, só os venezuelanos superam os brasileiros no ranking de pessimismo acerca da situação econômica do país. São 62% os brasileiros que acham que a situação econômica atual do país está ruim ou péssima, contrastando com apenas 6% dos que acham que está boa.

Não bastasse a depressão com respeito às situações da democracia e da economia, os brasileiros revelam imenso desânimo com relação a outros temas importantes da vida política. O Brasil lidera, por exemplo, o ranking da certeza de que o país está sendo governo por alguns grupos em benefício próprio: nada menos que 90% dos entrevistados fizeram esta declaração. Assim, como os brasileiros estão isolados na rabeira do ranking dos que acreditam que o país está sendo governado para o bem de todos: 7%. Aliás, no que se refere também a este índice, o pico de otimismo aconteceu em 2010, com 45%, final do governo Lula, tendo despencado 38 pontos percentuais em 8 anos. Nem os venezuelanos (12%) revelam tal descrença.

No que se refere à aprovação do governo, o pessimismo brasileiro é igualmente inquietante. Apenas 6% dos brasileiros aprovam o seu presidente. A média do subcontinente é 32% e no vice-lanterna do ranking, o México, 18% aprovam o governo. E com relação ao Congresso, pouco muda o nível de confiança. Apenas 12% dos brasileiros confiam no Congresso, contra 33% dos uruguaios, por exemplo. É pior ainda quando se trata da confiança em partidos políticos, onde novamente somos os últimos do ranking continental (6%), juntos com El Salvador. Por fim, chamo a atenção para a confiança interpessoal. Não é que os brasileiros apenas não confiem nas instituições, não gostem da cara da democracia no país, não confiem na elite governante nem gostem do governo. Nós não gostamos sequer uns dos outros. O Brasil é o último colocado no ranking de confiança interpessoal na América Latina. Apenas 4% dos brasileiros acham que se pode confiar na maioria das pessoas, contra 20% dos colombianos e dos uruguaios.

O que significa tudo isso? Que somos um país politicamente deprimido, com uma autoestima na lama, sem qualquer confiança nas instituições da política e absolutamente descrente com relação ao Estado. E com a sensação de enormes problemas na economia (desemprego, baixos salários, pobreza, estagnação econômica), na sociedade (delinquência, serviços públicos deficientes), na política (corrupção, governo em interesse próprio), que são as áreas no nosso foco no momento. Nesse estado de desolação, vocês acham que o que os brasileiros mais desejam da política, neste momento, são mais valores democráticos como igualdade, liberdade, direitos, respeito a minorias, garantias fundamentais? Acho mais razoável imaginar que desejem que sejam resolvidas as suas aflições mais urgentes, que são os problemas sociais que estão no seu foco.

Onde nós vemos democracias, os cidadãos veem governo, Estado. E se o Estado, não importa se regido democrática ou autoritariamente, não entrega o que os cidadãos acham que deveriam entregar, eles não o querem mais. Nem ao governo, nem ao regime. Os venezuelanos são os latino-americanos mais apaixonados pela democracia hoje em dia porque estão convencidos de que o seu governo não é democrático. A rejeição ao governo se transforma numa rejeição à forma e ao regime de governo. Os brasileiros no final dos anos 1970 certamente não tinham dúvida de que a democracia era um valor universal, uma vez que não mais suportavam o governo militar e, com isso, rejeitavam também o regime que eles impunham. Já nos anos 1980, caíram em enorme depressão quando falharam as expectativas de que a mudança de regime também fosse melhorar economicamente a sua vida, e a democracia já não era unanimidade. O ano de 2018, sob muitos aspectos, espelha 1988, e o desencanto com a democracia é apenas o nível mais à superfície de um desencanto com um regime de governo que não consegue melhorar a vida dos cidadãos, incapaz de entregar uma situação econômica, social e política que lhe deixe satisfeito.

Democracia não paga as contas, não protege do homicídio, não dá emprego nem prosperidade. É assim que os latino-americanos em geral e os brasileiros em particular entendem os regimes políticos. O que resolve os problemas dos cidadãos são governos eficazes. Se estes forem democráticos, gostamos da democracia. Por outro lado, se a economia está péssima, quem governa nos parece incapaz, os serviços públicos não funcionam, a nossa vida parece horrível e o governo for democrático, para que então, serve a democracia? Em suma, quem gosta de democracia é intelectual; o povo gosta mesmo é de um governo que resolva os seus problemas. Para o deprimido brasileiro de 2018, a democracia é um luxo que ele nem considerou se conceder.


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