O “enfrentamento da desinformação” por parte do governo e os seus obstáculos

O “enfrentamento da desinformação” por parte do governo e os seus obstáculos

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Ao que parece, este governo leva muito a sério a guerrilha informacional digital que findou por se constituir, nos últimos sete anos, em um dos maiores problemas para a vida pública em sociedades democráticas. Ao contrário, entre os ministérios e órgãos da administração direta, parece ter se instalado uma verdadeira competição por iniciativas, instituições e projetos de lei destinados a combater as formas mais insidiosas da digitalização da propaganda suja, isto é, da comunicação estratégica baseada em manipulação inescrupulosa da informação para os fins políticos convenientes aos extremistas que a praticam. Ou, para dizê-lo no jargão de preferência dos novos mandatários, a fim de fazer “o enfrentamento da desinformação”.

Desde o início do ano, já ouvimos falar de uma Procuradoria de Defesa da Democracia, anunciada pela AGU, que enfrentaria a desinformação; de um conjunto de iniciativas chamado “Pacote da Democracia”, do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, que incluía uma iniciativa legislativa sobre fake news; bem como de uma subsecretaria que se ocuparia do mesmo tema dentro da Secretaria de Comunicação do Governo Federal.

Por fim, foi publicada esta semana uma portaria do ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania criando um Grupo de Trabalho para o assessorar na formulação de estratégias de “combate ao discurso de ódio e ao extremismo” e para a proposição de políticas públicas sobre o assunto. Camilo Onoda Caldas, relator do GT, em entrevista nesta quinta-feira (23), fez questão de deixar claro que o objetivo é combater, além do extremismo e do discurso de ódio, a “desinformação”.

A esta lista da dedicação governamental ao tema, deve-se acrescentar o fato de que o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), da base do governo, é relator de um Projeto de Lei dito “das fake news”, já em tramitação no Congresso.

Melhor muito do que muito pouco, diz-se. De toda sorte, é digno de registro o fato de que um governo que vem tendo tanta dificuldade com a sua própria comunicação digital pelo menos considere que a guerra suja da informação política, que hoje necessariamente acontece nas ou passa pelas plataformas digitais, é um assunto que merece urgentemente preocupações e soluções.

Por outro lado, há de se pensar se essa gincana intragovernamental para criar iniciativas que enfrentem as manipulações maliciosas da informação é realmente produtiva e o melhor caminho para contornar as inúmeras dificuldades que se apresentam.

Se fosse fácil formular e aprovar uma lei sobre fake news, provavelmente isso já teria sido feito em 2021 e 2022, quando havia mais de uma dezena de projetos de lei em discussão sobre o tema. Afinal, parlamentares são seres que, diante de qualquer problema reconhecido como urgência social, têm como reação instintiva propor uma legislação, como se normas pudessem resolver tudo e a ausência delas fosse a causa das dficuldades.

Claro, o caminho hoje parece bem mais fácil, por duas razões. A primeira é que findou a presidência de Bolsonaro, que, como foi o maior beneficiário de fake news, propaganda digital de ódio e teorias da conspiração, obviamente representava um formidável obstáculo para qualquer iniciativa que fosse contra a sua própria sobrevivência política. Foi já uma proeza ter existido uma CPMI das fake news e o Inquérito sobre o mesmo tema, por iniciativa do STF, foi resultado de uma obstinação de dois de seus ministros. Ambos tiveram que enfrentar o governo e toda o seu exército envolvido em uma guerra sem trégua cujo meio fundamental era a informação digitalmente disseminada.

A segunda razão é decorrente do acúmulo de evidências das intenções antidemocráticas e terroristas das brigadas bolsonaristas e de suas redes digitais. Desde a pandemia, ficou claro a todo mundo o alcance da malignidade do gabinete do ódio, mas o 8 de janeiro esfregou na nossa cara que essa gente e seus métodos não reconhecem limites nem obstáculos. Isso tudo destaca a necessidade de que alguma coisa precisa ser feita contra o mal que pode ser praticado por meio da digitalização da manipulação inescrupulosa da informação.

Por outro lado, isso não significa que seja simples criar uma secretaria, uma procuradoria nacional, um (ou dois) projetos de lei, um conselho no Ministério da Justiça e um GT no Ministério dos Direitos Humanos, todo esse aparato para propor políticas públicas e normas para um mesmo fim: salvar a vida pública das inundações de fake news, da avalanche de teorias da conspiração, das ondas de assédio digital, de incitação à sedição e de destruição da reputação dos não alinhados.

Mas, se quase todos vemos os problemas, por que aceitar a solução seria algo tão difícil?

Há dois tipos de obstáculos: um de ordem prática, outro de ordem normativa. Na prática, Bolsonaro foi demitido e está em ostracismo, é verdade, mas o bolsonarismo está vivo e vigilante. Uma boa parte das cadeiras no Congresso foi obtida por meio da guerra suja dos ambientes digitais, em que difamação, satanização dos adversários e disseminação do pânico moral contra os comunistas, a ideologia de gênero e os perniciosos e ateus progressistas foi moeda corrente.

E em tempos de “campanha permanente” como condição para manter os mandatos, é imperativo continuar podendo servir-se dos púlpitos digitais, assim como da ecologia midiática da extrema-direita, espalhada por mil plataformas de mídias sociais, para falar diretamente com os seus constituintes. Em suma: se parte dos parlamentares continua beneficiária de uma comunicação pública desregrada, por que haveria de concordar em matar a galinha dos ovos de ouro?

Normativamente, há uma série de coisas que os afoitos no governo talvez não estejam conseguindo perceber. Em uma sociedade dividida e polarizada, em que o governo deve a sua existência a uma maioria mínima, não há certamente um volume adequado de confiança moral no governo. A verdade é que pelo menos metade da sociedade não consegue confiar no governo como capaz de propor obrigações morais e legais.

Você confiaria no governo Bolsonaro para propor uma regulação da comunicação pública segundo valores nobres e com apelo moral incontestável? Certamente, não. É plausível imaginar que a outra metade da sociedade desconfie da capacidade moral de o governo do PT produzir leis e políticas públicas moralmente inquestionáveis.

Uma grande parte da sociedade considera que o novo governo abusará da norma legal, havendo uma, para reduzi-la ao silêncio. E se a gente pensa que, entre os novos vencedores, há certamente quem deseja garrotear os vencidos e todo dia dá demonstrações disto, os temerosos terão cotidianamente um reforço para descrer de que haverá suficiente neutralidade na nova legislação ou em quem tiver poder para aplicá-la. Ou seja, a motivação de quem governa pode parecer moral, mas é vista como mera vontade de dominar por meio de instrumentos legais.

Além de não confiar na neutralidade e na universalidade de quem está agora no poder, uma boa parte da sociedade desconfia que nas matérias em questão (comunicação política, informação, valores) a competência epistêmica em assuntos morais de quem está por cima neste momento é, no mínimo, discutível. Justifica-se o receio, dado o estado atual do debate público, de que a maioria de nossos concidadãos alimente concepções equivocadas sobre como se resolvem as controvérsias morais, isto é, por meio da supressão e da perseguição de expressões e perspectivas que eles consideram moralmente erradas ou perigosas, mesmo que elas possam ser consideradas, num debate leal e argumentado, perfeitamente legítimas. Em suma, há gente demais querendo criminalizar opinião demais, inclusive sobre temas em que os desacordos morais são absolutamente legítimos, simplesmente porque há um consenso formado em certos grupos ou porque são dogmas em certas facções sociais.

Como confiar, por exemplo, que os identitários de esquerda, agora dominantes no próprio governo, se contenham nos consensos democráticos e não imponham a sua visão de mundo e as suas sensibilidades como base de uma norma de aplicação universal, por exemplo?

São objeções que não devem ser descartadas e que, nesse momento, constituem um consistente conjunto de dificuldades para quem quer enfrentar os enormes problemas da “desinformação” e do discurso de ódio.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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