Traduzindo Elena Ferrante
O carioca Marcello Lino, tradutor de "A vida mentirosa dos adultos", novo romance de Elena Ferrante (Foto: DIvulgação)
Ninguém sabe ao certo qual é o rosto da escritora italiana mais celebrada do momento. Há três décadas, Elena Ferrante é o pseudônimo que esconde a pessoa por trás de sucessos como A amiga genial, uma tetralogia que já vendeu mais de 16 milhões de cópias mundo afora e deu origem à série My brilliant friend, da HBO.
Ao se manter fisicamente distante da sua obra, a autora joga luz a um trabalho fundamental: o da tradução, ofício extremamente valorizado pela italiana. “A tradução é a nossa salvação, faz-nos sair do poço dentro do qual completamente por acaso acabamos por nascer”, escreveu em um dos textos publicados na coluna que manteve por um ano no The Guardian. Ela diz ainda: “Meus únicos heróis são as tradutoras, os tradutores (adoro os bons conhecedores da arte da tradução simultânea)”.
O “herói” de A vida mentirosa dos adultos – o mais novo romance de Ferrante, lançado nesta terça (1º) no Brasil e em outros 26 países – é o carioca Marcello Lino, que também traduziu outros quatro livros da autora: os romances A filha perdida e Um amor incômodo, o infantil Uma noite na praia e Frantumaglia, uma reunião de cartas e entrevistas de Ferrante concedidas por e-mail.
Assim como em outras obras da italiana, a protagonista de A vida mentirosa dos adultos é uma personagem feminina, Giovanna, que começa a história aos 12 anos e termina aos 16. A diferença, segundo o tradutor, é que dessa vez Ferrante parte de um ponto de vista que talvez só possa ser comparado a Dias de abandono: o de uma família de classe média.
“Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia”, é a frase que abe o romance. Páginas depois, descobrimos que o que o homem disse sobre a filha, na verdade, era que a menina estava ficando a cara de Vittoria, uma irmã com quem ele não se dava bem. A partir de então, Giovanna dá início a uma investigação sobre sua origem paterna. Vai atrás da tia, de outros parentes e da periferia de Nápoles, uma porção da cidade por onde ela, moradora do Rione Alto, pouco andou.
Na entrevista a seguir, Marcello Lino analisa a narração do novo romance, além dos desafios e o prazer de traduzir Elena Ferrante.
Cult – A vida mentirosa dos adultos traz elementos comuns aos outros romances de Ferrante: se passa em Nápoles, é protagonizado por uma mulher em conflito com sua origem e que se incomoda com os personagens masculinos secundários. Alguns críticos percebem isso como um problema. Você concorda com essa visão?
Marcello Lino – Eu, particularmente, não concordo. Diversos autores escrevem sempre sobre alguns temas. Jorge Amado escreveu sobre a Bahia, as mulheres, e isso nunca foi um problema. É verdade que os temas de Ferrante se repetem. Ela fala sempre de Nápoles e da relação das famílias, por exemplo. Mas, desta vez, ela parte de um ponto de vista bastante diferente [Giovanna, a protagonista, é uma garota de classe média alta], que talvez só possa ser comparado a Dias de abandono: o de uma família de classe média alta. Na verdade, eu acho esse romance bastante diferente dos outros.
Diferente em que sentido?
A narrativa é muito diferente. Há uma exposição muito mais direta, tenho a impressão de que tem mais trechos de diálogos. Em outros livros, Ferrante sempre faz referência a alguma coisa que foi escrita por alguém. Neste, o caminho parece mais direto. Faz diferença também o fato de que a personagem seja uma adolescente mais recente. Não podemos ter certeza sobre em que momento a história é contada, mas sabemos que ela se passa nos 1990. Então, mesmo que seja alguém escrevendo agora, a voz não é de uma mulher idosa, como na tetralogia, por exemplo. Por isso acho que tem uma linguagem mais viva. Além disso, em A vida mentirosa dos adultos, não temos certeza de quem está narrando.
Não é Giovanna?
Não necessariamente. Na primeira página do livro tem um trecho muito impactante: “Eu, por outro lado, escapei para longe e continuo a escapar também agora, dentro destas linhas que querem me dar uma história, enquanto, na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção.” Quem, afinal, escreve?
Pode ser a narradora se remetendo à própria Ferrante?
Pode, claro. Mas ainda assim não temos certeza. A autoria da narração está em aberto. Também não sabemos a partir de que momento ela narra, ou que idade tem quando está narrando. Sabemos que a história contada se passa em um período delimitado, dos 12 aos 16 anos, e que Giovanna nasceu em 1979. Ou seja, podemos supor que ela tem cerca de 40 anos quando a história é contada. Mas não temos certeza disso.
Enquanto outras protagonistas, que eram da periferia, queriam fugir da herança familiar, Giovanna, que vem do alto, quer não só voltar para as origens, para o bairro, como também ir atrás dessa herança. Ela não foge, mas procura, quer saber o que tem lá.
É… tem a questão do pertencimento aí. Você não tem como apagar suas raízes. É um tema muito presente na obra de Ferrante. Por exemplo, na série napolitana, Elena vira uma escritora, uma intelectual, mas não consegue sair completamente do bairro, embora tente. Já a Giovanna, de A vida mentirosa, quer buscar alguma coisa que ela não entende bem, que é um mistério e, por isso obviamente a fascina muito. Quem é essa personagem? Quem é essa tia? Por que ela é tão abominada?
Você conheceu Ferrante a trabalho, quando a editora encomendou a tradução?
Não. Ironicamente, eu conheci o trabalho de Ferrante pelo cinema. Na década de 1990, eu assisti a L’Amore molesto, filme de Mario Martone, e gostei muito. Já não me lembro mais se foi em algum festival de cinema aqui no Brasil ou durante uma viagem à Itália. Duas décadas depois, em 2016, a editora Intrínseca me procurou para traduzir o livro da Ferrante que tinha o mesmo título. Lembrei do filme e, em seguida, descobri que se tratava da obra que inspirou o filme. No Brasil foi publicado como Um amor incômodo.
É um título diferente da versão portuguesa, Um estranho amor. O título de outro livro traduzido por você, A filha perdida, também teve uma tradução diferente e mais distante da original, em italiano: La figlia oscura, que, em Portugal, saiu como A filha obscura. Como são feitas essas escolhas?
A editora Intrínseca me dá muito espaço para opinar sobre os títulos, mas eles não são resultado simplesmente de tradução. Outros fatores são levados em conta também. Achamos que a palavra “incômodo”, além de ser mais fiel ao original em italiano, era mais adequada. “A filha obscura” talvez não tivesse o mesmo impacto na capa que “A filha perdida”. Além disso, “obscura”, para nós brasileiros, tem sentidos mais restritos do que “oscura“, em italiano. Aqui nos soa só como o lado obscuro de alguém, quase negativo. Mas o romance é muito mais do que isso. E, na história, há mesmo filhas que se perdem.
E nunca fica muito claro quem é a filha e quem é a mãe da história, não é? Daí o sentido de “oscura“, em italiano?
Sim, é isso. Mas, em português, “obscura”, no título, não remeteria a isso, entende?
Ainda sobre esse romance, no começo da história, Leda, a narradora, conta que, enquanto dirigia, teve um devaneio que a fez sofrer um acidente. É a partir desse ponto, ela retoma os dias antes do acidente e encerra o livro com os momentos antes da viagem. Na última frase do romance, ela diz: “Estou morta, mas bem”. Pode-se pensar esse final como se tivesse sido escrito por uma narradora póstuma?
Não tinha pensado assim, mas acho muito possível, sem dúvida. Ferrante joga muito com suas narradoras. E isso acontece também em A vida mentirosa dos adultos.
Existe algum desafio especial na tradução de Ferrante?
O que Ferrante faz é boa literatura e, como tal, tem desafios, é claro. Ela tem essa escrita límpida, mas que, de repente, nos surpreende com uma frase estranha, que causa um estranhamento mesmo. Como eu faço para traduzir isso e manter a mesma sensação da língua original? Esse é um desafio. Mas é maravilhoso. Há quem imagine que existe uma dificuldade especial para um homem traduzir uma obra de uma autora mulher, que trata sobre o universo feminino. Eu não vejo assim. A literatura me leva para lugares e experiências novas. A tradução, assim como a escrita literária, como qualquer forma de arte, passa por você conseguir fazer com que uma pessoa veja coisas de uma maneira que ela não via antes, que ela sinta coisas que não sentia, que se identifique com coisas com as quais não imaginava. A boa arte faz isso. E, no caso da Ferrante, como eu disse, ela faz boa literatura. Então me dá essa possibilidade de pensar em assuntos que, como homem, talvez eu nunca tenha pensado, mas que, enfim, acho que não somos tão limitados assim.
Ainda bem!
Pois é. Porque, se não, não daria nem para imaginar Marguerite Yourcenar escrevendo um livro maravilhoso como Memórias de Adriano. Como eu disse, é boa literatura. Tem uma boa escrita, enfim… E eu me sinto, como sempre, muito privilegiado de poder traduzir a Ferrante e acho que o fato de eu ser um homem não influi de forma decisiva na minha tradução. Você estaria limitando muito tanto o escritor quanto o tradutor. Quer dizer: homens só traduzem homens, mulheres só traduzem mulheres?
Você traduziu também Uma noite na praia, livro infantil de Ferrante. Você já tinha traduzido obras para crianças? Tem alguma especificidade nisso?
Sim, traduzi Chitty chitty bang bang, do Ian Fleming. É uma experiência diferente. Além de acertar o tom da linguagem, para que comunique com crianças, mas não fique infantilizado, tem o desafio de harmonizar a escrita com a imagem. Nos livros infantis, a ilustração é uma parte importantíssima da obra. Só que não dá para mudar a imagem. Se tem uma fruta muito comum no país de origem, mas que é exótica no Brasil, eu tenho um desafio aí. A ilustração traz, por exemplo, um cranberry, mas será que um cranberry faz sentido para uma criança brasileira? Outra dificuldade frequente, que inclusive encontrei em Uma noite na praia, de Ferrante, foram algumas pequenas músicas, estrofes, cantaroladas por um dos personagens. Nesse caso, o problema foi tentar manter o ritmo e as rimas sem se afastar muito do conteúdo original e conservando uma linguagem acessível e lúdica.
A vida mentirosa dos adultos
Elena Ferrante
Intrínseca
Trad.: Marcello Lino
432 páginas – R$ 59,90
Giuliana Bergamo é jornalista e mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP. Em sua pesquisa, investigou narradoras de obras de Ana Maria Machado e Elena Ferrante.