Elegendo um presidente estável
As eleições de 2018 sugerem pulverização semelhante às de 1989 (Foto: José Cruz/Agência Brasil)
Há basicamente cinco elementos que podem favorecer a eleição de um presidente da República em ambiente de relativa estabilidade democrática: um bom plano de governo, um partido grande com arco de alianças sustentando a proposta, tempo de TV, recursos financeiros para a campanha e carisma do candidato. São, além disso, três os componentes que comprimem as chances de um governo não prosperar: o mesmo partido grande (para garantir governabilidade), experiência política e sabedoria administrativa.
Se abstrairmos a questão ideológica dessa equação, bem como os arranjos políticos mais próprios de um teatro de sombras do que do preto no branco estampado em redes sociais encharcadas de cizânia, podemos chegar a algumas apreciações interessantes. Até porque eficácia e estabilidade, ainda que com enfoques diversos, podem se manifestar em governos de esquerda, de direita ou de centro.
Para Collor de Mello, eleito em 1989, sobrava carisma. Não faltava dinheiro para campanha. O projeto não era ruim, considerando que propunha a desregulamentação de uma economia então engessada e a pugna pela estabilidade financeira. Mas sua desenvoltura política e administrativa se limitava ao governo e a representação de um Estado pequeno – e, sobretudo, seu partido não passava de uma vírgula, nem sequer um ponto. Deu no que deu: Collor se indispôs com Deus e meio mundo, e acabou renunciando diante de um inexorável processo de impeachment no Congresso. Seu vice, Itamar Fraco, se saiu melhor, porque integrava um grande partido, além de ter boa trajetória política e administrativa.
Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1994, tinha menos carisma pessoal (compensado, contudo, pelo sucesso do Plano Real), mas reunia os outros elementos. Assim, apesar dos embates, seu governo atingiu boa parte das metas a que havia se proposto e, entre críticas e saudações, terminou seu ciclo. Porém, com imagem entibiada após oito anos de mandato, reformas impopulares, denúncias inclementes de parte da oposição e excruciantes crises econômicas internacionais, FHC não conseguiu emplacar o sucessor. Enquanto a sua base de sustentação sofria baixas e o próprio partido se fraturava, o oposicionista melhor mobilizado, Luiz Inácio Lula da Silva, encorpava sua candidatura.
Para Lula, carisma era um dom natural, para dar e vender. O seu PT já era em 2002 um partido médio, com tradição e com potencial evidente de incremento. Lula, certamente, estava entre as lideranças da República que reuniam rico saber político: líder sindical, deputado constituinte, presidente do partido, três vezes candidato à Presidência da República. Faltava-lhe vivência gerencial: Lula nunca administrara nada.
Essa fragilidade cobraria seu preço no futuro, evidenciando a dificuldade de gestão de obras e políticas, expondo crises como a do caos aéreo de 2006. A tessitura engendrou as condições pertinentes para a ascensão de Dilma Rousseff, ex-secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul, mais tarde apelidada por Lula de “Mãe do PAC”, o Plano de Aceleração do Crescimento, que condensava um conjunto ousado de obras públicas em todo o país. Dilma, uma neófita, que jamais se submetera a processo eleitoral, viria para compensar o calcanhar de Aquiles de Lula, isto é, sua frouxa aptidão executiva.
Em 2002, porém, nada desautorizava uma aposta na habilidade de execução de Lula, até porque o PT vinha de registros concretos na condução de importantes prefeituras, como a de São Paulo, de Porto Alegre e de Belo Horizonte. De resto, como nenhum dos candidatos reunia todos os oito elementos-chave (Serra carecia de carisma e amargava o peso de carregar a imagem de um governo com popularidade combalida), era preciso fazer uma escolha. A opção do eleitor brasileiro pela mudança na composição de forças que comandaria o país foi razoavelmente madura. FHC estabilizara o Brasil, cuja economia ainda era zurzida pela ameaça de crise. A população ansiava por melhorias na área social. Lula, melhor do que ninguém, soube encarnar essa promessa.
Reeleita em 2014, depois de um pleito apertado e tenso, Dilma se viu diante da mãe de todas as crises – um terremoto econômico, uma infecção institucional e uma inflamação política poucas vezes vistas. Carregando um anti-carisma abrasador, incapacitada até mesmo de falar em público com coerência, bateu logo no teto, frustrando toda a impressão anterior de que seria uma boa gestora e indicando que os quatro anos de mandato não lhe ajudaram a adquirir jogo de cintura. Sempre confundindo teimosia com valentia e enredada em incoerências, faltavam-lhe os meios para barrar o tsunami do impeachment.
Temer, seu infausto sucessor, ascendido com baixa legitimidade e amargando a mais chã das popularidades usufruídas por um presidente brasileiro, encarta-se em um partido grande, tem política correndo nas veias e ostenta razoável saber administrativo. Assim, mesmo acossado por duas denúncias da Procuradoria-Geral da República, naufraga, mas não cai.
Agora, com uma crise econômica ainda não diluída na poeira, a corrosão institucional a todo momento se insinuando, deletéria, e a conjuntura política estridente, boa parte dos candidatos mais ou menos lançados pertence a pequenos ou micro-partidos: Bolsonaro, Marina Silva, Ciro Gomes, Álvaro Dias, Cristovam Buarque, Manoela D’Ávila. Todos envergam carisma, mas é de se supor que, qualquer deles, caso eleitos, enfrentará problemas de governabilidade e de interlocução com o Congresso. Todos, além disso, arrostarão problemas de financiamento para a campanha. Bolsonaro, em particular, não possui plano de governo (e dificilmente o terá). Não tem nenhuma experiência administrativa e sua vivência política se resume à medíocre histeria parlamentar, o que obviamente não lhe capacita para o necessário diálogo. Ciro, Marina, Buarque e Álvaro têm invejável experiência política e, até, com certo destaque para Ciro, trajetória administrativa. Manuela não tem plano de governo, nunca administrou nada, mas tem algum cabedal parlamentar.
O PSD acena com Meirelles e o PSDB tenta emplacar Alckmin, um mais opaco em termos de carisma do que o outro. Carisma e apelo popular são problemas maiores para Rodrigo Maia, do DEM, a quem também falta corrida executiva. PMDB, o coadjuvante mais bem-sucedido da América Latina, e PTB, que parece se filiar à mesma escola, observam o tabuleiro em obsequiosa discrição.
Lula, o único até agora a reunir todos os elementos (não obstante nunca ter brilhado como administrador), afunda num mar de lama, açodado por uma avalanche de denúncias de corrupção e de lavagem de dinheiro, que estão se concretizando em sentenças condenatórias no segundo grau e tendem a inviabilizar uma candidatura. Mas seu carisma ainda é robusto e seu partido, embora desidratado, tem porte. Ele estará nas eleições mesmo que não possa ser candidato. E, nos últimos tempos, tem feito esforço para recuperar o discurso de mártir da democracia e líder da esquerda doutrinária que o caracterizou nos anos 1980, tentando, talvez, (re)colmatar seu partido nas origens. Algum destino os votos identificados a esse projeto terão.
Pela quantidade de pré-candidatos já em movimento (outros tantos ainda devem aparecer), as eleições de 2018 sugerem pulverização semelhante às de 1989, nas quais 22 candidaturas foram esgrimidas. Naquela oportunidade, como agora, havia enorme vontade de mudança. Nos dois casos, o espectro da crise econômica e dos escândalos políticos obumbrava o horizonte. Dentre as diferenças, o contexto atual de maior descrédito nas instituições tende a fazer o carisma, sobretudo de outsiders, jogar papel ainda mais relevante que o habitual. Isso ajuda a explicar que uma raposa delirante como Collor esteja se lançando agora, depois de tudo o que se passou.
Por outro lado, quão fartas as pessoas já não estariam da atrição polarizante detonada em junho de 2013? Nas redes sociais, cada vez menos as pessoas “curtem” o alarido, embora seja expressiva ainda sua visibilidade. Um Bolsonaro, sem Lula para lhe servir de contraponto em debates, poderia ficar reduzido a fanfarronices sem maiores amplificações. Isso favoreceria discursos de centro com apelo ecumênico à concórdia?
Gunter Axt é doutor em História Social pela USP e colaborador do Núcleo Diversitas/USP