Educação e cultura
Escola rural em Uberlândia, Minas Gerais (Foto: Secom PMU))
Seria uma obviedade afirmar que se pode refletir sobre a educação de várias perspectivas, como, por exemplo, a das relações sociais e de poder ou a dos objetivos do gesto educativo, dos métodos etc. Porém, várias dessas perspectivas, senão todas, enfeixam-se na ótica do vínculo entre educação e cultura, embora um dos maiores riscos dessa abordagem seja ceder ao desejo de definir os dois termos da relação ou pretender sintetizar em fórmulas genéricas fenômenos e concepções díspares que a história da humanidade associou a eles no decorrer dos séculos.
Ocorre que precisamente o exame de certos dados históricos hoje bastante assentados é o que talvez permita um tratamento menos impróprio dessa correlação, esclarecendo alguns aspectos certamente nucleares da atitude mental com que se costuma tratar a temática e iluminando a práxis educativa.
Das cavernas aos quanta: elaboração e comunicação de sentido
Não parece exagerado afirmar que os documentos históricos mais antigos já revelam intenções didáticas, pois o gesto mesmo de registrar não se explica senão pelo objetivo de perenizar e transmitir um sentido experienciado e elaborado por artistas, artesãos, literatos, filósofos ou outros autores. Isso vale não apenas para os escritos poéticos, teatrais, filosóficos e sapienciais, mas também para os registros pictóricos, esculturais, cerâmicos etc., como se observa em Chauvet, Blombos, Lascaux, Serra da Capivara etc. Experiência e elaboração de sentido, comunicação social ou transmissão são preocupações que se podem facilmente supor nesses registros, permitindo pensar que a produção cultural, característica humana observável desde os primórdios da história, também se fazia acompanhar de um gesto educativo.
Com efeito, construindo-se como seres “capazes de sentido”, os humanos transcenderam o reino da necessidade ou da determinação (Natureza) e inauguraram o reino da liberdade ou da intervenção (História). Como afirmam inúmeros pesquisadores principalmente depois do surgimento da Antropologia Cultural, a situação física dos indivíduos e grupos foi – e continua a ser – a matéria sobre a qual opera o ato humano por excelência, quer dizer, a atividade espiritual ou o exercício de “sair de si, permanecendo em si”: sair de si é ver a alteridade, distinguir-se da realidade circundante e aceitar que se entra na vida por pura gratuidade; permanecer em si é constatar e assumir, em contraponto à alteridade, a própria diferença. Todavia, esses mesmos sinais de experiência subjetiva testemunham uma atividade também objetiva, a da expressão e comunicação do sentido elaborado. Nos registros mais antigos e mesmo nos documentos mais enigmáticos que sobreviveram ao tempo, constata-se a atenção com a escolha do melhor modo de exprimir e comunicar. Não se desenhava com qualquer coisa; não se concebiam por acaso relações de proporção entre imagens; não se passou casualmente à melhor maneira de produzir pergaminhos; também não se escrevia de qualquer jeito quando se percebeu que era possível escrever de modo mais compreensível. Métodos, recursos adequados, meios propícios: eis que os humanos pensavam no como registrar e comunicar; não apenas nos conteúdos de sentido elaborados.
Cultura e educação, portanto, nasceram imbricadas. Não se trata aqui, está claro, de entender a cultura segundo o modo como se usa esse termo nas atuais sociedades de consumo, ou seja, como referência à cultura ornamental, mas como o modo de ser propriamente humano; modo de existir de um ente que cria objetivamente seu mundo ou seu espaço vital. Assim, cultura e educação nasceram imbricadas tanto quanto se solicitavam entre si a elaboração de sentido, a consciência de si e do outro, a expressão e a comunicação social; e, ainda que essa sucinta reconstrução ganhe ares de “história idealizada”, ela permite, sem grande margem de erro, interpretar o evento humano como resultante de um processo no qual a hominização se tornou humanização.
Esse processo atravessou a história da humanidade e é testemunhado nos quatro cantos da Terra. Para citar somente as tradições ditas ocidentais, recomeçar pelos gregos é algo natural: o nascimento da Filosofia e dos outros saberes mostra com clareza que os círculos pitagóricos, a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles foram formas das primeiras “escolas” (nesses casos, escolas de nível superior), assim como os variados grupos da era helenística, principalmente com a sofisticação lógica dos estoicos e os debates afiados dos céticos, consagraram a atividade educativa como gesto de compreensão e comunicação centrada na preocupação com o método. O período helenístico marcou-se, ainda, por uma intenção de difundir os saberes, algo que se observará também na Idade Média, sobretudo com o afluxo cultural dos três grandes monoteísmos, da Cabala, da Alquimia, da fundação das escolas catedralícias, das universidades, dos centros de estudos islâmicos e judaicos, além de muitos outros fatores. Por sua vez, a Modernidade, com seus novos modelos de ciência e sua pretensão a ser um momento “inaugural”, pode comparar-se a um novo nascimento de cultura, ao qual seguiriam os séculos 18 e 19, sobretudo com o Iluminismo. Este, em analogia com a era helenística e a Idade Média, pode ser caracterizado por sua clara intenção de levar os saberes ao maior número possível de destinatários (ainda que com graves limitações, como foi a situação das mulheres e dos pobres até o século 20). Enfim, o século 20 certamente merece ser considerado como outro novo nascimento cultural, sobretudo por causa do paradigma aberto pela física quântica; e as décadas de 1950 até os dias atuais corresponderiam a uma renovada tentativa de divulgar e democratizar a cultura.
Afaste-se desses parágrafos, no entanto, toda correlação com a crença de que no passar das diferentes fases históricas houve sempre um progresso cultural. Não há dúvida de que os saberes e as ciências progrediram em diversos aspectos, mas isso não permite dizer que a humanidade tenha, em uma fase histórica posterior, desenvolvido a consciência de sua condição como produtora de sentido mais do que pôde desenvolver em fases anteriores segundo os recursos então existentes. Se houvesse um progresso desse tipo, o mundo atual seria a civilização do conhecimento (como, aliás, alguns profetizaram nos séculos 18 e 19); e a humanidade perceberia, em maior escala, aquilo que é exigido para a autorrealização livre dos indivíduos e grupos. É muito difícil, todavia, comprometer-se com a afirmação segundo a qual a humanidade de hoje entrou na era do conhecimento. Não há dúvida de que saberes e tecnologias melhoraram incomparavelmente a vida na Terra e formataram o cotidiano mais íntimo dos humanos, mas isso não significa que entramos na era do conhecimento como percepção de nós mesmos e da alteridade, num movimento de autoprodução consciente e aberto à realização responsável das possibilidades de todos os humanos. Em outras palavras, não se entrou ainda numa era da cultura. Aliás, o que hoje se designa por esse nome não passa, muitas vezes, da cultura ornamental, quer dizer, do consumo de mercadorias de entretenimento ou repertórios de dados e práticas que não põem necessariamente o tema do sentido no centro das atenções.
Educação e cultura no Brasil
Os caminhos da história mostram que os humanos podem regredir ou estacionar no movimento de humanização, continuando apenas a hominização. É precisamente esse risco que conduz ao núcleo do tema das relações entre educação e cultura, pois ou a educação configura-se como prática efetivamente cultural, ou ela se reduz a uma transmissão de aspectos do patrimônio intelectual objetivo, deixando minguar o senso de responsabilidade de indivíduos e grupos na construção da existência.
Essa problemática ganhou destaque nos anos 1950, quando grande parte dos países viu-se diante da necessidade de corresponder às dimensões nunca antes vistas de demanda por acesso à educação. Falava-se mesmo de um fenômeno positivo e necessário de massificação educacional. No entanto, como alertava Karl Mannheim (1893-1943) no livro Liberdade, poder e planificação democrática, publicado em 1950, fazia-se urgente refletir sobre a educação e reservar-lhe um lugar essencial na construção de um horizonte de cultura que integrasse a função humanizadora da técnica e afastasse o risco da incultura tecnocrática com a barbárie do seu poder. Esse era o destino de qualquer sociedade que pretendesse estabelecer, nos quadros de uma estrutura democrática, a correlação entre saber e poder. Era preciso, sim, alterar a pirâmide do poder cultural, fazendo com que as massas adentrassem nas esferas dos poucos que podiam frequentar escolas e universidades; mas buscando atender, por um lado, à quantidade maior de estudantes e, por outro, às exigências dos novos tipos de mercado, havia o risco de transmitir-se apenas uma formação técnica e alienada do mundo da cultura.
O Brasil, na passagem da primeira à segunda metade do século 20, também vivenciou preocupações semelhantes, mas seu caso tinha agravantes: a necessidade de aumentar o acesso à educação era maior aqui do que em muitas outras partes do mundo; vivia-se, nos anos 1930-1960, a preocupação acentuada com uma “educação para o desenvolvimento”; buscava-se também sair de um modelo educacional considerado colonialista, excessivamente europeu-ibérico, e reforçar elementos da identidade nacional; por fim, observava-se uma violência organizada de classes sociais contrárias à educação em grande escala, sobretudo em nível superior. O filósofo mineiro Henrique Claudio de Lima Vaz (1921-2000) – que o presente artigo gostaria de homenagear e a quem deve algumas das ideias aqui exploradas – escreveu, nos inícios da ditadura militar, que a educação brasileira merecia pensar com realismo uma solução do desafio histórico no terreno da comunicação social do saber e de um humanismo cultural. Essa solução, situando-se como de direito, deveria referir-se às condições globais de mudança da sociedade brasileira, pondo em descrédito a cultura ornamental e fazendo o rigoroso planejamento de uma “educação para o desenvolvimento” que não fosse apenas preparação de quadros técnicos, mas que permitisse a todos os brasileiros participar efetivamente da crítica à violência organizada de uma estrutura social hostil à promoção cultural das massas, à sua libertação econômica e à sua ascensão social (LIMA VAZ, Cultura e universidade, Editora Vozes, 1966, p. 37).
No entanto, os governos da ditadura militar, ainda que tenham aumentado o acesso à educação, foram deletérios para o vínculo dela com a cultura. Já são conhecidos (talvez não suficientemente!) os prejuízos educacionais dos anos 1964-1985: controle ideológico, sucateamento da escola pública, esquecimento quase total de algumas regiões do país, fortalecimento dos padrões oligárquicos, instrumentalização política, concepção do gesto educativo como mera transmissão de dados “cultos” etc. Mesmo com relação à “massificação” do acesso à escola, as iniciativas foram insuficientes. Só durante o governo Lula, por exemplo, abriram-se novas universidades e expandiram-se as antigas (embora, curiosamente, as últimas universidades fundadas antes da era Lula venham da Ditadura Militar).
Agrava esse quadro o fato de professores e estudantes nem sempre se encontrarem como subjetividades produtoras de sentido. Muitos preocupam-se com os exames que dão acesso às universidades e esquecem que só há educação humanizadora quando se estabelece uma relação de pessoa a pessoa, num posicionamento comum diante do mundo dos valores. No limite, a educação é uma criação e um treinamento de hábitos. Não há segredo nesse aspecto, que foi intuído já pelos primeiros indivíduos que cruzaram a fronteira da irracionalidade e iniciaram o processo hominizador e humanizador. Há que se perguntar, portanto, que tipo de hábitos pretende-se desenvolver na educação brasileira.
Em outra frente, visando suprir a carência cultural e mesmo fazer dos ambientes educativos lugares de emancipação, os “decididores” de políticas educacionais (em geral, ex-professores que, quando deixam a sala de aula, parecem esquecer-se de que um dia nela estiveram) apegam-se ainda a um resto de mentalidade pretensamente anticolonialista e não hesitam em falar de identidade nacional, nutrindo, por exemplo, uma desconfiança azeda com relação à transmissão de conteúdos clássicos ou com relação à cultura que se costuma chamar de erudita (aquela que requer iniciação e treinamento). Sem autocrítica e em nome da justiça social, terminam por privar os estudantes do contato com formas tradicionais do saber, como se fosse possível construir a subjetividade ativa sem elaborar o conjunto objetivo de dados que foram legados pelos antepassados. Cai-se na falácia de opor cultura erudita e cultura popular, valorizando-se regionalismos e elementos imediatos que, embora mereçam, por si mesmos, ser assumidos e desenvolvidos, não podem resultar no fechamento das mentes aos valores e conteúdos universais a que os estudantes têm o direito de aceder. A cultura “erudita” ou “clássica” é, tanto quanto a cultura “popular”, a matéria sobre a qual se aplica o espírito humano. Na contrapartida, tanto a cultura popular como a erudita, se não desenvolverem nos indivíduos e grupos a consciência da condição humana capaz da consciência de si e do outro, da intervenção na realidade circundante e da comunicação social, tornam-se ornamentais e fatores de manipulação autoritária, alienando as pessoas de si mesmas.
Mais do que nunca, o momento histórico brasileiro requer, hoje, a reposição da pergunta pelos vínculos entre educação e cultura. Avanços enormes na democratização do acesso à educação formal já foram feitos, mesmo que ainda falte muito nesse quesito. Não parece conveniente, portanto, continuar a repetir que o problema por aqui é a oferta de vagas. Se se efetivar o improvável “fracasso” do Brasil, profetizado por conservadores neoliberais que, diante da perda de privilégios, começam a dizer que o país ruma para o caos, tal “fracasso” não será resultado da falta de tentativa de oferecer educação para todos. Por outro lado, há que se refletir sobre o sentido mesmo de pôr as pessoas nos bancos escolares. Fala-se de educá-las com qualidade; resta saber, porém, se qualidade é sinônimo de preparação para o vestibular, inseminando nas mentes o engodo de que os cidadãos somente serão completos e plenamente preparados para a vida se frequentarem as universidades. Enquadrar as pessoas em regimes educacionais não faz delas agentes de sua própria existência. Vários países já aprenderam isso. O século 20, infelizmente, testemunha que educar não significa trazer bem-estar; pode mesmo trazer destruições e holocaustos. Muitas das propostas de educação que se apresentam nas feiras ideológicas contemporâneas não passam de estratégias de manipulação e controle, por um lado, ou de ressentimento e revanchismo, por outro. Pouco se fala de colaboração; prefere-se apostar na concorrência.
Seja como for, educação sem vida cultural é apenas hominização. O sistema educacional brasileiro merece ser fecundado com cultura, garantindo-se o direito de as crianças, jovens e adultos acederem não apenas ao patrimônio multifacetado que a humanidade construiu, mas sobretudo ao exercício de perguntar pelo porquê da existência individual e grupal. Nesse contexto, é preocupante a redução das aulas de filosofia e ciências humanas no Ensino Médio, seja ele profissionalizante ou não. Enquanto algumas escolas privadas oferecem práticas filosófico-lógicas já para as crianças (embora também haja prestigiados colégios paulistanos que vergonhosamente reservam duas aulas semestrais para Filosofia!), o sistema público reduz as humanidades ao mínimo necessário para cumprir as exigências do MEC. É também desalentador ver a falta de interesse pela vivência cultural da parte de professores e estudantes (seja por causa da escassez de oportunidades, como bons cinemas, bons teatros, livros com preços acessíveis etc., seja da mera falta de hábito, devida ao divórcio entre educação e bens de cultura e à redução desses bens a simples meios de entretenimento).
Tampouco a condição humana ocidental contemporânea facilita equacionar educação e cultura. Além dos conhecidos problemas estruturais de desigualdade, diferentes sociedades têm lamentado o aumento de práticas identitárias que enfraquecem sentimentos cosmopolitas e, contraditoriamente, relativizam o respeito incondicional pelas diferenças. Isso não vale apenas para países do Oriente Médio ou os Estados Unidos, mas também para a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, com a perseguição de mães de santo por traficantes evangélicos, ou para os programas de televisão brasileiro que incitam o ódio entre grupos sociais, políticos, religiosos, torcidas de times de futebol etc. A crer nas estatísticas, outros fenômenos inquietantes têm aumentado assustadoramente mesmo em países com “bons índices” educacionais: o sofrimento pessoal, o consumo como forma de autorrealização, a alienação política, o fanatismo, a violência, a rarefação das amizades, o individualismo, a recusa da ciência, a insensibilidade com o sofrimento alheio etc. O mundo vive uma estupenda facilidade na circulação de ideias, teorias, opiniões; o intercâmbio de dados aumentou de maneira considerável; entretanto, paradoxalmente, as pessoas têm perdido densidade de pensamento e de formas de comunicação. O ritmo alucinado das solicitações e informações, o nível raso das relações interpessoais e o tédio da vida cotidiana têm feito a existência humana pesar sobremaneira, com resultados assustadores em termos de dissociação psíquica. Não se deve acreditar que a humanidade conheceu, algum dia, uma fase áurea quando a dor pessoal era menor. Cada tempo tem o seu fardo. Porém, um enriquecimento cultural permitiria, não há dúvida, evitar muitos desses sofrimentos, mesmo sem extirpar o desassossego típico do ato de existir.
O Brasil, justamente por ainda estar “em construção”, pode explorar certas vantagens e reverter dificuldades em seu benefício. A aposta na cultura pode ser uma de suas alavancas. Se a regulação das violências sociais foi inaugurada com o reino da educação e da cultura, a educação brasileira tem o papel histórico de varrer do país a violência das estruturas de privilégio e de instrumentalização do outro. Mas essa varredura somente terá sucesso se for aberto o caminho para o humano. O acesso à educação não faz crescer proporcionalmente a cultura do espírito; mas é dessa cultura que pode provir alguma luz humanizadora e não apenas hominizadora.
JUVENAL SAVIAN FILHO é filósofo e teólogo, doutor pela USP e docente da Unifesp