Duas vozes femininas na filosofia contemporânea
Edith Stein, uma das primeiras mulheres a obter o título de doutorado em filosofia na Alemanha (Reprodução)
Se a premiação de um ensaio filosófico em um concurso universitário já é digna de reconhecimento por si mesma, o fato de o ensaio ter sido escrito por uma mulher o torna duplamente digno de nota, dada a predominância masculina e as dificuldades encontradas pelas mulheres nos ambientes filosóficos pelo mundo todo. Ainda, tendo sido escrito no início do século 20, quando pouquíssimas mulheres conseguiam desenvolver estudos universitários, tal trabalho se reveste de uma importância histórica fora do comum. Foi esse o caso do ensaio escrito por Hedwig Conrad-Martius em 1912 (trabalho que lhe rendeu o título de doutorado em filosofia em Munique), quando a aluna de Edmund Husserl tinha 24 anos e o filósofo começava a ficar conhecido por seu projeto de uma filosofia centrada na descrição rigorosa dos fenômenos.
Na cidade de Breslávia, na Polônia, outra estudante lê a notícia da premiação de Conrad-Martius e, constatando seus vínculos com Husserl – cujo pensamento despertava o seu interesse havia algum tempo –, ela decide se mudar para Gotinga, na Alemanha, a fim de frequentar o círculo dos estudiosos reunidos em torno do fenomenólogo. Essa estudante era Edith Stein, que, com Conrad-Martius, será uma das primeiras mulheres a obter o título de doutorado em filosofia na Alemanha.
Apesar da premiação e dos títulos, ambas as pensadoras serão impedidas de progredir na carreira acadêmica pelo simples fato de serem mulheres. Edith Stein, malgrado a inteligência fora do comum e a excelência científica que lhe renderam o posto de assistente de Husserl, não obterá sucesso após várias tentativas de alcançar uma cátedra de filosofia durante as décadas de 1920 e 1930. Conrad-Martius conseguirá tornar-se docente na Universidade de Munique apenas em 1949.
As duas filósofas procuraram fazer oposição ao pensamento cientificista-positivista: compreender o ser humano segundo categorias abstratas, concebendo o indivíduo como resultado da mera combinação de fatores gerais e sem considerar a sua singularidade, consistiria num equívoco perigoso que poderia levar a consequências desastrosas. Conrad-Martius concentra-se no diálogo com as ciências positivas, enquanto Edith Stein ocupa-se mais com a investigação da consciência e da interioridade, o que se explica talvez pelo fato de ela ter iniciado sua formação pela Psicologia e pela História, ao passo que Conrad-Martius, pela Biologia. Esforçando-se por seguir o método fenomenológico – que, antes de entrar em interpretações, procura descrever o modo como tudo aparece para a consciência –, as pensadoras se dão conta de que o que se chama de “indivíduo humano” se trata de uma realidade determinada por dois fatores: um físico e um não físico, ou, como talvez se possa dizer também, um natural e um cultural (embora para as duas não fizesse muito sentido opor natureza e cultura). Em outras palavras, os indivíduos humanos mostram-se constituídos por uma dimensão material determinada por leis naturais, mas também por uma dimensão na qual se encontra a consciência de si, relacionada ao pensamento e à liberdade. Começam a se delinear, então, quais dimensões do ser humano seriam concernentes às ciências da natureza e quais às ciências do espírito: as ciências da natureza operam com a análise de dados quantitativos entendidos conforme esquemas baseados em relações causais; as ciências do espírito, por sua vez, consideram aspectos qualitativos cuja articulação entre si, embora evoquem certa ideia de causalidade, não são inteiramente determinados e implicam, portanto, liberdade (conexões motivacionais). Assim, é na investigação dos aspectos qualitativos que Edith Stein e Conrad-Martius se concentrarão para identificar o que precisamente distingue os indivíduos humanos dos demais seres (e entre si), permitindo, de um lado, entendê-los como livres e autoconscientes e, de outro, como indivíduos que apresentam um modo único de ser e de realizar o que é típico de sua espécie.
O indivíduo humano e seu modo único de ser
Compreender o que distingue um indivíduo do outro envolve a questão filosófica de identificar o princípio de individuação, quer dizer, o fator que faz surgir singularidades no interior de uma espécie. Conrad-Martius e Stein se dão conta de que, no caso de coisas estritamente físicas, o aspecto quantitativo (o conjunto de elementos materiais que as compõem) é suficiente para identificar um indivíduo; e mesmo se houver dois seres absolutamente idênticos, o que os distinguirá é a posição no espaço e no tempo. Já para o caso dos seres humanos – seres capazes de dizer “eu” e que desejam ser reconhecidos como tais levando em conta a sua singularidade (aspecto qualitativo) – a questão se torna mais complexa.
Os indivíduos humanos compartilham diversos atributos: um pode ser tão inteligente, magro, perspicaz, alto e tímido quanto inúmeros outros. Mas não seria a “combinação” desses atributos que constituiria o caráter pessoal de alguém, e sim uma qualidade específica que consiste precisamente no modo peculiar de cada indivíduo ser/realizar a humanidade ou a natureza humana. Ainda que fosse possível encontrar dois indivíduos idênticos fisicamente, cada um deles teria um modo próprio e único de se desenvolver e de viver suas experiências. A formação do caráter seria determinada por essa qualidade (ou esse modo pessoal), em conjunto com outros fatores, como os relativos à constituição orgânica, biológica etc., além dos culturais: é possível imaginar Einstein vivendo em meio à civilização maia, transportado para a América do Sul no início da era cristã; certamente, em consequência disso, a sua personalidade historicamente determinada não seria a mesma, mas é indubitável que ele permaneceria Einstein. O que garante que ele continue sendo Einstein é a sua singularidade: sua qualidade ou modo pessoal de ser humano, qualidade esta que brota do “núcleo” ou da “alma da alma” de cada pessoa.
Edith Stein e Conrad-Martius identificam esse “núcleo” com o “lugar” no qual o indivíduo se encontra consigo mesmo e “onde” se encontra verdadeiramente em casa. Sendo consciente de si, o indivíduo humano é o único ser capaz de apreender a própria singularidade (ou a “alma de sua alma”) por meio de uma ação muito particular: sentindo o próprio eu que atua em todas as vivências. Numa palavra, dizendo justamente “eu”.
O respeito à diferença
Essa concepção de ser humano – que reconhece a singularidade e o valor pessoal do indivíduo – contribui inequivocamente para a elaboração de um feminismo peculiar. As mesmas bases (natural e cultural) que constituem o sentido de “ser humano” se estendem para a constituição dos sentidos de “ser homem” e de “ser mulher”. Se, de um lado, é impossível negar as diferenças biológicas/psicofísicas entre homens e mulheres – por exemplo, a capacidade da gestação no caso da mulher e a correspondente incapacidade do homem –, de outro lado, o sentido de “ser homem” ou de “ser mulher” também dependerá fortemente de fatores culturais. Assim, Edith Stein conceberá o masculino e o feminino como duas “subespécies” do ser humano a partir da identificação do que é característico a cada uma.
No entanto, ainda que essas concepções conduzam a um tipo de “essencialismo” dos gêneros, as peculiaridades de cada subespécie não seriam “estanques”: a experiência mostra como evidente que fortes componentes da especificidade feminina podem ser encontrados em um homem, assim como fortes componentes da especificidade masculina podem ser encontrados em uma mulher. Cabe, aliás, a cada indivíduo desenvolver tais componentes, a fim de obter sua integração e harmonia pessoais. Em se tratando de identificar o fundamento da dignidade e do valor inquestionável de cada pessoa, é justamente a singularidade ou o modo próprio de ser do indivíduo que deve ser considerado em primeiro lugar, independentemente de seu gênero, pois, para além da identidade genérica, é a qualidade própria de cada indivíduo que explica o sentido do seu existir na grande comunidade dos seres humanos. Desse modo, o sentido de “ser homem” e de “ser mulher” parece ter um caráter paradoxal. De um lado, é proposto um tipo de essencialismo e, de outro, são destacados o caráter singular e a primazia do indivíduo. De certa maneira, e guardadas as devidas proporções, o pensamento steiniano parece abrigar em germe algo semelhante ao que defende hoje Judith Butler, precisamente quando se opõe às instâncias que enquadram o indivíduo em uma identidade de gênero, desconsiderando a sua singularidade performática.
No campo profissional, Edith Stein sustentou a importância de garantir espaço para a atuação da mulher, levando em conta a sua peculiaridade: atividades “masculinas” poderiam ser assumidas por mulheres, que as exerceriam de modo feminino (a recíproca, claro, também seria verdadeira). Se a distinção entre atividades “masculinas” e “femininas” parece ir contra a liberdade de escolha ou a igualdade de direitos, convém lembrar que o pensamento steiniano transcende essa contraposição, pois enfatiza o respeito à diferença última, quer dizer, a singularidade do indivíduo. Aliás, Edith Stein – que se converteu à fé cristã – chegou a escrever que mesmo no caso do sacerdócio católico não haveria nenhum impedimento de natureza a que ele fosse exercido pelas mulheres.
Da perspectiva dessa visão ousada para o início do século 20, percebe-se a inadequação da nota emitida por Ives Gandra da Silva Martins Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e divulgada pela mídia em janeiro. O juiz se enredou em uma situação delicada após justificar afirmações polêmicas com base na obra de Edith Stein, o que levou a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia a registrar uma nota de repúdio à instrumentalização do pensamento steiniano por parte do ministro. Independentemente das intenções de Ives Gandra e do seu grau de conhecimento do conjunto dos textos da filósofa, é radicalmente equivocado pretender que algum tipo de submissão da mulher ao homem tenha sido defendido com base na fé cristã ou na análise fenomenológica por Edith Stein, ela que, com sua amiga Hedwig Conrad-Martius, lutou para fazer as mulheres serem respeitadas e entrarem em um novo tempo, um tempo de liberdade e de criatividade.
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