Dossiê – Perversão
Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos; definir a perversão é um paradoxo ético.
Christian Ingo Lenz Dunker
A perversão é uma das três grandes estruturas da psicopatologia psicanalítica. Ao lado da psicose e da neurose, ela representa um tipo específico de subjetividade, desejo e fantasia. Comparativamente, seu diagnóstico é mais difícil e controverso: consideram-se a extensão e variedade de seus sintomas, bem como sua alta suscetibilidade à dimensão política. Nas perversões podemos incluir aproximativamente três subgrupos: as perversões sexuais, as personalidades antissociais e os tipos impulsivos. Essa subdivisão é problemática e apenas descritiva, pois cruza categorias originadas em diferentes tradições clínicas.
Devemos distinguir uma perversão ordinária de uma perversão extraordinária, representada pelos “tipos concentrados” com os quais a perversão foi historicamente associada, para, em seguida, ser excluída, silenciada e expulsa da condição humana. Aquela que seria a forma mais forte de perversão, como confronto e desafio à lei, é, na verdade, expressão de um tipo coletivo de exagero da lei, baseado na atração pela forma, desligada e deslocada de seu conteúdo.
“Perversão”, assim, seria o nome para o que nos desperta indignação. Mas, porque o estado social “normal” não representa necessariamente o bem ético, torna-se difícil pensar a perversão de modo simples. A anomalia que nega a norma pode ser um desvio progressivo, útil ou benéfico. Além disso, mesmo a dissociação entre a norma e seu oposto, entre real e ideal, entre o bem e o mal, é justamente uma das características da perversão.
Tipologia da perversão
Isso posto, há três famílias principais da perversão. A primeira refere-se ao exagero ou à diminuição de algo, que, sob justa medida, seria tolerável e até mesmo desejável. O perverso, assim, estereotipa um comportamento, fixa-se em um modo de estar com o outro e de orientar sua satisfação. Tome-se o exemplo de um sujeito que, para encontrar satisfação sexual, deve empregar adereços como calcinhas, vestir-se com roupas do sexo oposto, admirar partes específicas do corpo do parceiro ou manipulá-las de modo bizarro. Tudo isso, sem “exagero”, seria parte admissível de um encontro sexual, mas, quando sua presença torna-se coercitiva, necessária e condicional, percebemos que há uma espécie de excesso. A parte toma conta do todo.
A segunda família de perversões decorre da idéia de desvio. Trata-se aqui da metáfora da vida como um caminho, no qual o perverso “toma um atalho” ou elege para si “outra via”. Ele se desgarra dos outros, torna-se alguém fora da ordem, fora do lugar adequado. Curiosamente, essa negação da “norma” funciona como reafirmação de sua força. Se a primeira perversão é definida pelo traço de exagero, a ideia central do segundo tipo é a de deslocamento, inversão e dissociação.
A terceira classe de perversão é formada pelos que marcam seu compromisso com a transgressão, com a violação da lei, da moral ou dos costumes. Essa transgressão não é efeito secundário, mas decorre da identificação do sujeito com a lei. Alude-se aqui à lei materna (em oposição à lei paterna) para designar essa relação de passividade radical e de disposição soberana sobre o corpo do outro. Apesar da extrema variedade histórica e antropológica, há duas maneiras básicas de perversão da lei: afirmá-la por meio de uma negação ou negá-la por meio de uma afirmação.
Perversão e lei
No primeiro caso, a lei está escrita em alguma parte, intérpretes confiáveis e executores fiéis. Dessa perspectiva, exagera-se o caráter formal da lei, de maneira que sua execução deixe de aparecer como efeito de agentes empíricos dotados de sensibilidade. Ou seja, cria-se uma exceção à lei dentro da lei. Não importa se o modo de relação com o objeto é contrário à lei social instituída (como a pedofilia ou o assassinato do parceiro sexual); se ele é indiferente a essa lei (como o sujeito que obrigatoriamente deve “tatuar” sua parceira com uma caneta Bic durante o intercurso sexual para encontrar orgasmo); ou se ele é parasitário da lei socialmente instituída (como no filme O Cheiro do Ralo, no qual o fetiche do cheiro se especifica como traço adicional nas relações de compra e venda de objetos). O importante é que, do ponto de vista do sujeito, afirma-se a lei para negá-la.
A segunda forma de perversão da lei aparece quando o sujeito nega a lei para afirmá-la em outro nível. A satisfação não decorre de uma “falsa submissão a uma falsa lei”, mas da elevação do sujeito à condição de autor da lei.Esse é o caso dos que se identificam com o objeto para causar angústia no outro, ou seja, para dividir o outro e assim fugir à sua própria divisão. São as chamadas personalidades psicopáticas, hoje personalidades antissociais, nas quais predomina o sadismo: nego a lei socialmente compartilhada para afirmar uma lei maior, cuja enunciação está em minhas mãos.
A questão se complica se observamos que a lei considerada como fato positivo para a definição de perversão não é apenas a lei como ordenamento jurídico, nem a lei como conjunto de costumes, mas a lei que, a cada momento, é a pré-condição que orienta nossa escolhas, juízos e desejos. Mesmo que ela não esteja escrita nem encontre corpo em um código formal ou informal, essa lei está pressuposta a cada vez que agimos. O problema da perversão torna-se mais interessante se observarmos que a lei que orienta a vida desejante do sujeito, a partir de seu inconsciente, não é outra que uma versão da lei social corrente, institutiva das relações de autoridade e pertinência, de ordem e de poder, de família e de Estado. Uma é versão da outra, uma père-version (versão do pai) como diria Lacan (psicanalista francês, 1901-1981).
A matriz das perversões
A psicanálise chama de supereu essa lei interna ou essa voz que interdita certos tipos de satisfação, obrigando a outros. O supereu é a matriz ordinária de nossas perversões particulares e, ao mesmo tempo, a língua na qual expressamos e somos expressos pela lei social. Segundo essa tese, nossa consciência crítica, tida por muitos como a maior realização da razão humana, é ao mesmo tempo um olhar no qual nos aprisionamos, a voz do exagero e engrandecimento (das exigências, dos ideais e das expectativas normativas) e o núcleo de nossa satisfação e de nossa culpa em transgredir.
Por exemplo, vibrar em êxtase vendo um formigueiro pegar fogo não é um ato ilegal, mas sugere um tipo de gozo associado com a perversão. Qualquer criança explora esse tipo de satisfação, até que seus pais a convidem à seguinte “inversão de perspectiva”: “Imagine se você fosse uma formiga? Iria gostar de ver a casa pegar fogo?”. Esse tipo de inversão faz com que abandonemos uma gramática da satisfação – nesse caso o sadomasoquismo – em prol de outra. Cada um de nós possui uma história composta de gramáticas como estas: exibicionismo e voyeurismo, heterossexualidade e homossexualidade, feminilidade e masculinidade. Há gramáticas pulsionais mais simples, tais como ingerir e expelir, dar e receber, bater e apanhar, e há gramáticas mais complexas e mais abrangentes tais como ser e ter ou aceitar ou recusar.
Contudo, a tese psicanalítica é a de que a sexualidade infantil possui a característica de ser perversa, por explorar, exagerar e transgredir os diferentes modos de satisfação, e de ser polimorfa, por admitir muitas formas, plásticas e mutáveis. A perversão no adulto diferencia-se disso por seu caráter de fixidez (uniforme) e pela função subjetiva de desautorização da lei. Assim, a perversão não é só uma questão de infração procedimental da lei, mas refere-se ao tipo de intenção (ou de desejo), ao modo como nos colocamos, e situamos o outro, diante do que fazemos.
É nesse ponto que a definição popular de perversão argumentará que ela ocorre justamente por falta de sentimentos morais como a culpa, a vergonha e o nojo. Daí a ausência de arrependimento, de reparação e de consideração pelo outro que historicamente fez dos perversos os ícones da maldade. Eles não apenas praticam o mal, mas, principalmente, gostam de fazer mal aos outros, especialmente quando se comprazem em causar angústia, terror e tortura. Ora, o que acontece aqui não é a ausência de supereu, que poderia ser curada com a administração massiva da lei, mas a construção de uma espécie de supereu ampliado, como se algumas de suas funções fossem experienciadas, de modo deslocado, fora do sujeito, ou seja, no seu infeliz e circunstancial parceiro.
Perversão e experiência comum
Os mais diferentes e insólitos tipos de satisfação estão presentes em todos nós, de forma atenuada, disfarçada ou restrita. Não é pela ausência ou presença dessas tendências que podemos definir a perversão. Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos. O problema para definir a perversão, nesse sentido, é que temos de resolver o chamado paradoxo ético do ato. Não basta saber se ele é conforme ou contrário à lei, mas saber qual tipo de experiência ele produz em quem o realiza e o tipo de posição que ele confere ao outro.
Há vários exemplos de como o gozo, ou seja, o tipo de satisfação ordenado pelo supereu constitui uma perversão particular e ao mesmo tempo um fator político incontornável. Há, por exemplo, um fascínio espontâneo por aquele que se coloca no lugar de supereu. A atração exercida por líderes e “celebridades”, assim como pelos sistemas totalitários, sejam eles nações, instituições, corporações ou mesmo empresas e grupos, baseia-se neste sentimento de que eles expressam em exterioridade nossa própria relação perversa com a lei. Diante disso, estaremos voluntariamente dispostos a servir como instrumento do gozo do outro, posto que ele é o meio pelo qual posso ter acesso deslocado à minha própria fantasia, exagerada pelo fato de ser vivida em massa. Isso tudo sem o ônus da culpa e do risco que estariam em jogo se eu me dispusesse a realizá-la por meios próprios.
A chave para entender esse tipo de perversão ordinária está na dissociação e na simplificação produzidas pela montagem da fantasia. Dissociação e simplificação encontradas na principal expressão sintomática da perversão, a saber, o fetiche, ou seja, esta propriedade ou esta função que permite transformar outro em objeto inanimado (meio de gozo para meus fins) e reversamente o objeto em outro animado (fim para o qual todos os meios se justificam). Em acordo com a regra perversa da inversão, o fetiche é a condição básica a que todo objeto deve atender para tonar-se viável no universo de consumo. Para funcionar como tal, ele deve conseguir dissociar seu potencial de ilusão, por um lado, de seu efeito de decepção, por outro. Não é um acaso que Karl Marx (1818-1883) tenha descrito a economia capitalista baseando-se no fetiche da mercadoria.
Outro exemplo de montagem perversa são os sistemas e dispositivos burocráticos responsáveis pela judicialização da vida cotidiana. A burocracia é uma forma regrada e metódica de produzir anonimato e álibi para nosso desejo e, portanto, para confirmar a máxima perversa de que “o outro deseja, mas segundo a lei que eu determino”. Nessa medida, há tanta perversão nos excessos alimentares – no bulímico e no anoréxico – quanto no discurso de vigilância sanitária sobre nossa alimentação, para não falar do exibicionismo de uma infância sexualizada pela moda, o voyeurismo de nossos reality shows, a estética pornográfica de nossas produções culturais, o sadismo de nossos programas de violência ao vivo, o masoquismo do trabalho e da “vida corporativa”, o descompromisso “líquido” de nossa vida amorosa, a cultura da drogadição (legal e ilegal), e tantos fenômenos que costumam ser reunidos sob a hipótese da perversão generalizada. Ao contrário da perversão clássica, a perversão ordinária de nossos tempos é uma perversão flexível, silenciosa e pragmática. Ela não se mostra como experiência “fora da lei”, que convidaria a ajustar as contas com os limites de nossa própria liberdade, mas, ao contrário, é mais perniciosa, pois reafirma nossa realidade assim como ela é.
As articulações que constituem a perversão, tais como a transgressão, a exageração e a dissociação, tornaram-se aspectos decisivos de nosso laço social ordinário. Bem-vindos à perversão nossa de cada dia.
(18) Comentários
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excelente matéria
Sem as perversões, um “admirável mundo novo”.
Por quase – falta bem pouquinho – para o mundo perder todo sentido.
Ao contrário, o perverso, entre perversos, seu mundo ganhando mais sentido “a cada dia”, está a mercê da lei que está a mercê de uma parte do Mundo que escolhe quem e como não se tornar, ou se tornar aberração. O privilégio daquela parte do Mundo, classe social ou pessoa “capacitada” ou “ilustre” – aspas pela relatividade – para o resto do mundo, é considerado um perversão da… Paz?
peversão não existe tudo é humano
e as classificações dão dinheiro para psiquiatras.
O perverso constata o erro mas não sente culpa. Também transgride na medida em que propicia novos argumentos e dá margem a novas interpretações. Se refugia na diferença, ou unidade narcísica grupal. Sem querer deixa um rastro viscoso, isca para novos adeptos. Parabéns!
É o imperativo do goze, do gozar mais e além! Só que transgredir não é o mesmo que ser perverso. Como transgredir essa lei perversa nossa de cada dia, que nos institui como sujeito do desejo para comprar, ser mais e ter prazer custe o que custar?
Tema por demais de interessante e oportuno, como se toda perversão não existise(vide 2ºcomentário acima), e, então, o que não é perversão existisse “tanto”, a ponto de ofuscar a visão; esbarrar-se no que não existe e não ver, caso sim de psquiatria.
Um pouco mais sério é crer num suposto condicionamento da perversão (vide 3º comentário)onde já estaria também desculpado, ou, na origem da perversão houvesse uma lógica “razoável”, que fosse aceita por um número ilimitado de fieis.
E, numa visão mais ampla, a perversão como limitada ao princípio do prazer (vide 4º comentário), e o que viesse além, seria então uma transgressão deste, como também de todos os princípios anteriores que, podendo ser chamado de realidade, ou “lei perversa de cada dia”, originaram a perversão enquanto termo do mal estar da civilização.
Temos variações de linguagem para um mesmo conceito, este também por si varia também conforme o tempo histórico.
No meu comentário anterior (vide o 1º comentário), procurei desvencilhar tal conceito das conseqüentes cargas morais de quem o expressa. Obviamente, isso tanto pode ser nomeado como perversão ou transgressão, porque a depender da liberdade de escolha do interlocutor, todas as considerações do bem ou do mal estar, estarão sujeitas.
Outros sinônimos existem, “a transgressão, a exageração e a dissociação”, mas ainda o problema, creio, se divide entre a inoperância da manutenção dos direitos iguais para todos e dos preconceitos seculares, como se fosse heranças dos tempos das cavernas.
Errei no portuga! Todos nos temos perversão em escalas diferentes, a questão e quando os sintomas se manifestam de forma exagerada.
Parabéns, Christian.
Muito bom seu artigo.
Rodney
Terrível o que as idéias incorporadas ao substantivo homem podem criar, quando assim se acha o mais mais da espécie. Voltei aqui atraves de ‘pesquisa Google’, insidiram o comentário da Rose em meu nome; vai vendo quanto há de perversão na sombra do mandante.
Estes e outros muitos sinais-gugle (grobo, soca cola,…, monopólios discretos) abrem espaços sinuosos para jogar uns contra os outros, e vici e versa; “política, precisa ter olhos para ver.” (Vide matéria Masoquismo, e comentários, aqui na Revista Cult.
Onde posso ver as referencias utilizadas para essa matéria? Obrigada.
Uma perversão não exagerada não faz mal !!! é preciso ter fantasias para se viver esta vida ,neste mundo tão pervertido que já é….tenha a sua e seja feliz..
Qual o problema em explorar minha perversão? Afinal nem toda prevenção é má. Qual o problema em transgredir a regra? Regra muitas vezes imposta por falsos moralistas que na verdade são sadistas tarados por controle. E daí que ultrapasso a barreira do socialmente “correto”, se me traz prazer e não ferem outros?
A propósito ótima material. Infelizmente a falta de vontade de se debater temas como perversão fazem com que fiquemos no senso comum, de que pervertido é pedofilo ou sadomasoquista.
Interessantíssimo! A capacidade com que o autor relaciona conceitos e noções psicanalíticas com nossa “perversa” realidade é mesmo esclarecedora.
perversão?
ladina palavra,
vem da contrariedade
ligada é a desordem
(des+ordem)
e é prolífica enquanto pensada causa
idéia desenvolvida
perversão?
latina palavra,
vem do mal
e esse mal, de verdade
ligado é a nós também
(nós-outrem)
e é perigosa quando não tem pausa
idéia de toda uma vida
Quando falo de perversão, falo da determinação da perversão transmitida pelo pai que instrumenta o filho para torturar os irmãos, com a intenção de roubar a vida e destituir os outros de sua dignidade humana e depois tornam-se surdos e cínicos, mostram que é intencional não dando escuta nem reparação. Quem está fora da linguagem?
Não entendi pq demasiado humano (Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos)
Demasiadamente Humano…fui vitima de um…uma pessoa com cara de normal, que chega a ser encantadoramente humana a ponto de vc se apaixonar, pela preocupaçao, proteçao, cuidados, atençao com o outro ( normalmente com o parceiro ou algum membro da familia). TUDO FALSO…depois que vc se encontra envolvida, e ele percebe que esta tudo dominado…o terror começa, agressoes, bullyings, de todas as maneiras…Mas fui desconfiando que ele nao era normal, nas pequenas atitudes do dia a dia, nao conseguia criar laços de amor com os filhos, irmao, e pais…maltratava muito o cachorro que tinha, dava chute, amassav com o pe a cara do cachorro no chao, dava gritos horrorosos…ficava louca pedindo para parar…A Personalidade PERVERSA se alimenta da loucura do outro, sao extremamente encantadores, a ponto de vc nao querer viver sem ele pelo lado bom do relacionamento…mas tem o lado do terror que vc tbm convive…e o conflito da pessoa eh se sai daquele inferno, ou se convive para nao perder o lado bom que eh maravilhos…eh muita loucura, nao desejo a ninguem, mas somente vivendo isso pra entender!! DEMOREI MAIS SAI!!!
DEMOREI, MAS SAI !!