Dossiê | O feminino de ninguém
O feminino em desconstruções teóricas sobre libido, gozo, amor, gênero e maternidade (Foto: WIN Initiative / Getty Images)
Em suas fórmulas da sexuação, Lacan separa dois polos sexuais diferenciados. Em um deles, o gozo fálico, que se refere ao gozo limitado pela fantasia perversa, dita masculina, é o gozo do Um sem o outro, autista, masturbatório, que Lacan vai chamar de “todo”. No outro polo, o gozo feminino ou Outro gozo, um gozo aberto que tende à infinitização, sem limite, chamado “nãotodo”. Os dois não são complementares, o gozo feminino é suplementar ao gozo fálico, ou seja, um gozo a mais. Não há correspondência entre um e Outro, por isso Lacan fez a enigmática afirmação: “Não há relação sexual.” Rompendo com qualquer regularização ideal entre os sexos, não há dois fazendo Um, nem há, como diz Lacan no seminário sobre ética, possessão de todas as mulheres para um homem, tampouco um homem ideal para uma mulher. Por não haver a relação, é preciso inventar a cada vez. O amor seria uma das maneiras de fazer essa invenção.
Além disso, a escolha de um polo ou outro é disjunto do sexo anatômico e, portanto, uma mulher pode se orientar só pelo falo e não experimentar o dito gozo feminino, assim como um homem pode experimentar o gozo feminino, e ter uma identificação viril. O feminino não é da mulher, trata-se de um “feminino de ninguém”, expressão extraída da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, em seu livro Lisboaleipezeig 2.
Para Lacan, o ser falante, independente do corpo biológico, deve encontrar seu jeito próprio e único de se virar com o sexo de acordo com as marcas deixadas no corpo pela linguagem, criando ilhas de erotismo. Seria impossível coletivizar essas marcas, não há uma identidade sexual real, não há um significante que permita dizer “eu sou isto ou aquilo”, mas sim uma identificação absolutamente singular ao modo de gozo, isto é, um “eu sou como eu gozo”.
Propomos enfatizar quatro aspectos do feminino e/ou das mulheres em psicanálise: a libido neutra em Freud; o feminino, uma mulher e uma mãe; a sexualidade traumática mas não abusiva; e a presença do feminino em Diadorim de Guimarães Rosa.
Em “Libido não tem gênero”, Gilson Iannini enfatiza e demonstra a separação entre a anatomia e a identificação sexual, num cuidadoso percurso da sexualidade desde os primeiros balbucios da criança, lembrando as inquietações que levaram Freud a situar o sexo longe de uma “harmonia natural de atração heterossexual pré-estabelecida”, mas como “algo intrinsecamente errático e opaco”. Ressalto, nesse texto, um aspecto que Gilson nos traz a partir de sua experiência de tradução da obra freudiana, ou seja, depois de insistir três décadas acerca do caráter masculino da libido, em 1933 Freud fala em libido neutra: “Só existe uma libido, que está a serviço tanto da função sexual masculina quanto da feminina. A ela própria não podemos atribuir nenhum sexo.” Uma libido de ninguém?
Com a interrogação – “Instinto materno?” –, Maricia Ciscato toca em um delicado assunto, eternamente evitado em diversos campos, isto é, a naturalidade do amor materno. Mas, para chegar aí, ela aborda a não coincidência entre a mulher e a mãe, deixando a mulher sem o significante “mãe” para dizer de seu ser, e, ao fazê-lo, coloca o feminino ao lado da mulher e não da mãe. Aqui ressalto outro aspecto original: a mãe como objeto. Há uma tendência de enfatizar o que há de fálico na maternidade, os cuidados e afagos, mas Maricia lembra que isso não é tudo. Uma mãe é também um objeto para seu bebê e, nesse sentido, como “alçar o bebê ao lugar de objeto fálico” se, na sua relação com o filho, pode se sentir engolfada e devastada por um gozo enigmático?
Márcia Rosa trata, em “Sexualidade: enigmática! Até mesmo traumática! Mas, abusiva não!”, de um tema muito atual, controverso e difícil: o abuso sexual e sua relação com a prática sexual consentida por ambos. Discorre sobre a importância política dos movimentos de repúdio contra o abuso e, “nas relações sociais entre os sexos, o jogo de poder que um pode exercer sobre o outro”. Porém, ao acentuar o caráter sempre traumático da sexualidade, ela adverte sobre os riscos de se generalizar a violência para toda sexualidade e identificar a mulher sempre como vítima e o homem sempre como algoz. Além disso, o risco de, ao expor os excessos do gozo masculino e a desordem do mundo, fazer surgir uma regulação dos encontros sexuais. E, ainda, faz sua a pergunta do filosófo francês Milner: chegaremos a uma proibição do ato sexual?
Antônio Teixeira, em “O feminino na travessia do Grande Sertão”, começa com uma escrita próxima da acadêmica que, aos poucos, vai se tornando pura poesia, como se ele próprio estivesse atravessando algo. Sua hipótese é que, para ir de um universo a outro, é preciso passar pelo fora-do-universo, expor-se ao perigo de um espaço fora do limite: “Diadorim é quem rompe o limite do universo em que Riobaldo se localiza, ao mesmo tempo que orienta sua travessia pelo fora do limite.” Diadorim seria a própria incidência do feminino, cuja inumanidade tira Riobaldo da “ruminação cogitativa”, “rasga o semblante do discurso e faz da justiça algo mais que uma abstração verbal”. O feminino rompe o sentido habitual, a tradição, o bem-estar e o bom senso.
Com esses textos esperamos ampliar nosso debate em torno das questões políticas sobre as mulheres e as incidências do gozo feminino na cama, no discurso, na luta e em todo movimento dos corpos. Boa leitura!
Ana Lucia Lutterbach é psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, autora de Patu, uma mulher abismada (Subversos) e La erótica y lo feminino (Grama)