Dossiê | Graciliano Ramos e o mundo coberto de penas
Primeira versão da folha de rosto de Vidas secas, com marcas de revisão do autor (Editora Record / Divulgação)
Por alguma razão gostamos de efemérides. Talvez por sermos tão impressionáveis quando se trata de tempo. Desde que nascemos acostumamo-nos a acompanhar o passar das horas, acúmulo delas em anos. Observamos os acontecimentos considerando seu aniversário, e existe certa aura nos mágicos números redondos. Foi pensando nisso, e no fato de que a obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, publicada em 1938, está completando 80 anos de existência, que a Revista CULT oferece aqui um dossiê homenageando o autor alagoano.
Muita gente me pergunta, ante a atual conjuntura, conturbado momento político em que vivemos, qual seria o posicionamento de Graciliano, como ele veria o cenário triste em que estamos mergulhados. Recuso-me a responder, o velho Graça não deixou procuração para falarem por ele depois de morto. Mas nada me impede de imaginar, não seria difícil supor com quais palavras, sempre tão precisas no caso dele, descreveria nosso golpeado país. Quem lhe conhece a obra, leu seus livros, tem certa condição de avaliar como ele se colocaria.
Em artigo escrito pelo professor Benjamin Abdala Junior e por Luzia Barros, “Linguagem literária e vida sociocultural”, há passagem em que os pesquisadores nos mostram que “formam-se então nos campos de atividades humanas dos romances de Graciliano Ramos inter-relações hegemônicas que envolvem os objetos, uma rede opressiva que reproduz as convenções dominantes, que procura subordinar a si as demais, que vêm da experiência sociocultural”. A solução para Luís da Silva, em Angústia, foi o assassinato de Julião Tavares, símbolo do agente da opressão. Talvez considerasse que aqueles que costumam gritar muito alto muitas vezes procuram encobrir os seus próprios escrúpulos. Em um novo romance “graciliânico”, caso escrito hoje, a referida rede opressiva – que não se modificou, está presente em todo canto e continua oprimindo – seria exibida com o sombrio olhar costumeiro. Mudariam apenas a época, cenário, personagens.
Lendo também neste número “Graciliano e o cinema”, de Randal Johnson, não preciso me esforçar para considerar que provavelmente teríamos um escritor satisfeito com a transposição fílmica que fizeram de alguns de seus trabalhos. Hoje, quando me procuram pedindo autorização para remakes, sempre me pergunto se conseguirão ser tão felizes como Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirszman foram em suas realizações. Muito difícil algum novo diretor conseguir aproximar-se do nível de excelência já exibido.
Em “Heróis subestimados”, Lilliân Alves Borges e Edmar Monteiro Filho nos mostram que Graciliano, em sua literatura para crianças e jovens – tão pouco conhecida e considerada, como sempre são os livros para tal público; infelizmente desconsideramos, tratamos mal o que se escreve para a garotada –, “aproveita-se desse espaço (o do texto infantil e juvenil) para inserir uma dura crítica às condições de penúria do Nordeste brasileiro, às voltas com a decadência e a miséria promovidas pela seca e pelo descaso governamental”. Depois, tomando como exemplo o livro Pequena história da República, trazem o autor alagoano imaginando o ditador Getúlio Vargas, ainda criança, cavalgando cabos de vassoura. Não digo nada. Mas não estranharia ver o velho Graça, com seu humor tão peculiar, associando ao Temer alguma brincadeira também divertida, e tecendo as mesmas duras críticas à ligeireza irresponsável com a qual o governo trata a coisa pública.
Encontraremos também o artigo “Vida, literatura e engajamento”, de Jean Pierre Chauvin e Rodrigo Jorge Ribeiro Neves. Nele, Graciliano afirma que nunca pôde sair de si mesmo. Em entrevista dada a Homero Senna em 1948, afirma: “só posso escrever o que sou”. Chauvin e Neves mostram que “em Graciliano vida e obra se entrelaçam nas asperezas que constituem a dura realidade, mas também são recobertas pela palavra, feito nuvem, a reorganizar e fortalecer o nosso íntimo. Como será que o autor de Vidas secas enxergaria a horrível enormidade cotidiana que nos atinge? Seria possível arranjar-se em seu coração? Precisaria. O arranjo se faria de algum duro modo.
Finalmente chegamos ao texto “80 anos de Vidas secas”, de Adilma Secundo Alencar e Luciana Araujo Marques. O motivo da celebração, o livro que teria sido no começo “Cardinheiras”, referindo-se às aves de arribação que bebem a pouca água que há para o gado durante a seca, e mais tarde “O mundo coberto de penas”, antes de tornar-se famoso com o título com que foi publicado. O campeão de “audiência” da obra de Graciliano, seu livro mais lido e vendido. Nosso mundo ainda hoje coberto de penas, e de vidas cada vez mais secas.
Concluímos com “A arte pede misericórdia”, que traz carta de Graciliano Ramos inédita em livro, descoberta pelos pesquisadores Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla, enviada a Oscar Mendes, em 1935. Nos deparamos com a seguinte afirmação feita pelo autor nordestino: “creio que a revolução social me levaria à fome e ao suicídio”. Há bons indícios, quando insistimos na leitura de seus textos, de que acompanhando a atual tragédia brasileira, e vendo persistir tanto desatino, ele mantivesse a fé em uma revolução social. A fome dele sempre foi de justiça.
Ao fazer o convite para que leiam o extraordinário material aqui exposto, tenho a impressão de que, caso vivo fosse, o velhinho Graciliano, do alto de seus 125 anos, se mostraria ainda mais ranzinza do que era. Seu pessimismo teria crescido, atingido imensas dimensões. Conversas azedas, frases cortantes, tudo emoldurado por sarcasmo difícil de suportar. Caminhando curvo, de braço dado comigo, depois de puxar a fumaça de seu inseparável cigarro (outro que não mais Selma), faria uso das palavras tão presentes em seu repertório, digitais de seu texto, como: canalhice, insinceros, ordinários, indignado, encrencas, medonho, esfiapado, beiços, alambicado, incautos, amolação, malucos, doidos, e elas sairiam misturadas aos palavrões escritos e falados tão de sua predileção. Mas não me arrisco a reproduzir quais seriam suas impressões. Como disse, não tenho procuração.
Ricardo Ramos Filho é doutor em Letras pela USP e escritor