Dossiê | Psicanálise entre femininos e feminismos

Dossiê | Psicanálise entre femininos e feminismos
Bertha Pappenheim, 1882. O caso princeps da psicanálise: Anna O. (Arte Andreia Freire/Arquivo Sanatório Bellevue, Alemanha)

 

“Quero fazer xixi”, diz a filha de cinco anos, para o embaraço do pai, que almoça com ela num restaurante tradicional, desses que só têm dois banheiros, o masculino e o feminino. “Então vamos no feminino”, diz o pai, torcendo para não ter ninguém lá. “Não! No feminino não pode!”, responde ela, para espanto do pai. Didática, ela explica: “Paiêêê, quero ir no feminina! O feminino é só para os meninos!” – retruca a filha, para o deleite do pai, lacaniano. Ela descobriu que a segregação urinária (não exatamente sexual), embora apoiada em diferenças corporais, se inscreve na língua. Sim, toda norma é construção social. Aliás, Roland Barthes nos ensinou, há meio século, que a língua tem algo de fascista: não por aquilo que ela nos interdita, mas por aquilo que nos obriga a falar. Contudo, não podemos prever como normas sociais, que são sempre contingentes, vão ecoar em cada ser falante. As ressonâncias subjetivas dos corpos recortados pela língua são infinitas. O fe-menino é pouco para ela, que quer habitar o fe-menina. O contingente da norma – e suas cicatrizes necessárias – se reduplica no infinito de suas ressonâncias.

Psicanálise e feminismo são discursos mais ou menos contemporâneos um do outro, correm como ondas paralelas: às vezes se cruzam, às vezes se distanciam, se confundem, se interpenetram, se separam, se chocam. Como duas línguas diferentes, há aquilo que se traduz, mas há também os intraduzíveis. Numa tradução, há restos e excessos, ganhos e perdas. Traduzir é também renunciar à tradução, como nos ensinou Walter Benjamin. O dossiê que segue pretende oferecer uma espécie de mapa dessas convergências e divergências, concordâncias e discordâncias.

Um dos objetivos deste dossiê é aproximar duas teorias – psicanalítica e feminista – que parecem ter mais em comum do que alguns e algumas gostariam de admitir, e que se desenvolveram ao longo do século 20 entre diálogos e tensões que buscamos exemplificar nos textos aqui reunidos. A questão das diferenças sexuais e suas implicações ético-políticas é um dos temas centrais no debate sobre subjetividades masculinas e femininas, no qual reivindicações de igualdade de direitos se encontram com a demanda por expressão de sujeitos e sujeitas singulares. Aqui, não ceder sobre o seu desejo, máxima da ética na psicanálise, se encontra com não ceder às estruturas de opressão, máxima das políticas feministas.

Ainda em 1926, a psicanalista Karen Horney foi provavelmente a primeira a sugerir – no mesmo periódico em que Freud havia acabado de publicar seu artigo Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925) – que o fato de a psicanálise ser um produto da especulação masculina implicaria impasses incontornáveis: a teoria freudiana da feminilidade seria um prolongamento de teorias sexuais infantis masculinas. Assim, haveria uma posição política – ou pré-teórica – subjacente, que contaminaria inapelavelmente a perspectiva masculina. Essa crítica, com suas variantes, constituiu um dos tropos fundamentais da crítica feminista a Freud, não deixando de ecoar, modernamente, na ideia de lugar de fala. Contudo, paradoxalmente, Horney acabou endossando a ideia de um princípio biológico de atração heterossexual, inexistente em Freud. O acalorado debate acerca da diferença sexual e da feminilidade ocorrido nos anos 1920 foi reaberto nas décadas de 1960-1970, no que se convencionou chamar de “segunda onda feminista”, quando a discussão acerca das compatibilidades e incompatibilidades entre psicanálise e feminismo passou para o primeiro plano. Por um lado, diversas feministas criticaram aspectos centrais da psicanálise – muitas delas condenando-a inapelavelmente –, mas, por outro lado, muitas outras se valeram de conceitos psicanalíticos como instrumentos de crítica feminista à sociedade. Suas ressalvas girariam em torno da centralidade da inveja do pênis na constituição da subjetividade da mulher: o argumento da inveja estaria carregado de uma suposição de superioridade masculina. No que se convencionou chamar de “terceira onda feminista”, a psicanálise esteve igualmente presente, como uma espécie de inimiga íntima, gerando efeitos cujas ressonâncias é cedo para medir, por estarmos ainda embarcados nela.

Desde bastante cedo, aliás, os caminhos da psicanálise e do feminismo se cruzaram, como mostra com precisão o artigo de Pedro Ambra, que apresenta um panorama imprescindível para entendermos o desenvolvimento histórico ondular da psicanálise e dos feminismos, concluindo com a proposição de um elemento queer na disposição perversa e poliforma das pulsões. Em seguida, Gilson Iannini aborda algumas questões historiográficas, ressaltando como o singular modelo de formação profissional da psicanálise impactou na emancipação de mulheres, realizando bastante precocemente – na prática – alguns ideais feministas que, naquela altura, pareciam longínquos. Conclui propondo que, se há uma teoria do falo em psicanálise, isso não implica uma espécie qualquer de falocentrismo, mas, no máximo, uma espécie de falo-excentrismo. Por sua vez, Ana Lucia Lutterbach enfatiza que o ser falante, homem ou mulher, independentemente do corpo biológico, deve encontrar seu jeito próprio e único de se virar com o sexo, sendo impossível coletivizar o gozo. Há algo do feminino irredutível ao feminismo. O problema do corpo continua em debate no texto de Suely Aires. Desde os corpos paralisados das histéricas do século 19 até hoje, ela discute como os corpos femininos se perfazem em relação à cultura, à linguagem e às normas sociais. Interroga, assim, os enquadramentos que permitem um corpo ser reconhecido como feminino, o que implica discutir a definição de corpo e de feminino, assim como o que pode haver de normatizador nesses conceitos.

Rafael Cossi retoma tensões e debates entre a psicanálise de Lacan e as feministas francesas do século 20, muitas das quais frequentavam seus seminários e exerceram influência nem sempre explicitada ou reconhecida pela história da teoria psicanalítica. Resultado de uma pesquisa de doutorado defendida na USP e ora publicada em livro, seu artigo elucida a proximidade das transformações teóricas de Lacan em relação aos movimentos de mulheres de seu tempo. Por fim, o artigo de Carla Rodrigues toma como caminho alguns sintagmas e significantes que produziram ruídos entre o dizer psicanalítico e o escutado pelas feministas, onde ainda ecoam desentendimentos. Tomando como ponto de partida que as duas teorias – psicanalítica e feministas – estão engajadas em práticas, seu artigo percorre significantes e sintagmas que já produziram ruídos a fim de atualizar as possibilidades transgressoras que ambas as abordagens podem compartilhar.


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