Dois problemas democráticos da política identitária
Mesmo o cidadão mais distraído já deve ter-se dado conta de como tem aumentado na discussão pública a militância que faz de identidades sociais específicas, como raça, gênero, orientação sexual, religião e etnia, o centro da disputa política. Assim como das controvérsias em torno desse assunto.
Mas o que são os tais identitários?
Os militantes identitários são pessoas que decidiram, ao longo das últimas três décadas, trocar a razão principal do engajamento na disputa política típica da esquerda marxista, a luta de classes, pela ideia de um conflito fundamental entre elites opressoras e privilegiadas e minorias historicamente oprimidas. O militante da esquerda tradicional está na política por acreditar que a luta de classes – o conflito estrutural inconciliável no capitalismo, que separa os que possuem os meios de produção e os que só têm a força de trabalho – perpetuará a “exploração do homem pelo homem” se não houver quem entre na disputa do lado dos explorados. Um militante identitário, por sua vez, está na política por que há uma opressão histórica contra uma determinada minoria, que tem que ser enfrentada politicamente por quem está do lado do oprimido a fim de se restabelecer alguma justiça ou impedir que a iniquidade se perpetue.
Até aqui, tudo certo. A chamada “política identitária”, a luta política cujo motor central consiste em enfrentar a opressão sofrida por uma determinada identidade social, tem frequentemente conseguido avanços em direitos, reconhecimento e inclusão no processo político para os seus representados. Além disso tem sido bem-sucedida em aumentar a percepção social das diversas formas de opressão, em incrementar a consciência da própria identidade (o análogo à “consciência de classe”) em suas bases sociais de referência e em mobilizar uma formidável força política em defesa de pautas do interesse dos seus representados.
Mas nem tudo são flores. Os problemas aqui são, principalmente, dois.
Primeiro, como as identidades não são entes da natureza, mas socialmente construídas, e como o identitarismo é apenas um conjunto de premissas e táticas, há tanto identitários de esquerda quanto de direita, como se pode imaginar, assim como há identitários para lutar contra a opressão quanto para oprimir. Aliás, todos se acham lutadores contra a opressão mesmo quando oprimem.
Claro, a esquerda se acostumou a pensar que os movimentos baseados em política de identidade são só ou principalmente as novas versões do feminismo, dos grupos antirracistas e a luta dos LGBTs. Mas mesmos os pesquisadores simpáticos à política identitária reconhecem que são igualmente identitários os movimentos anti-imigrantes europeus como o Pegida (acrônimo alemão para Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente), muitos dos movimentos nacionalistas e separatistas em toda parte do mundo, ou, para não dizer que não falamos do Brasil, as forças dos ultraconservadores evangélicas organizadas e mobilizadas para lutar contra o que consideram o cerco e a opressão dos progressistas e esquerdistas. Sim, o “malafaismo” é um identitarismo sob todos os aspectos.
Afinal, também eles entendem que a luta política é basicamente travada em nome de identidades sociais e pelos que são parte dela, também eles entendem que os militantes são guerreiros da justiça atuando em nome de uma minoria oprimida. Eles tampouco têm qualquer dúvida de que não há opressão reversa, posto que a estrutura social é desenhada para perpetuar a opressão de que são vítimas e não o contrário. Todos alimentam narrativas mestras sobre a opressão exercida contra eles pelos liberais e secularistas, nas sociedades modernas que crescentemente desrespeitam os seus valores e o seu estilo de vida.
São assim também os obscurantistas com suas histórias sobre doutrinação ideológica e infiltração esquerdista, liberal e globalista de todas as instituições do Estado e da sociedade. E usam a gramática identitária até, pasmem, a “minoria sexual” (sic) dos heterossexuais, numa representação cada vez mais popular, cercados pela ditadura gayzista e feminazi por todos os lados. Sim, há grupos identitários que se consideram oprimidos por outros grupos identitários, do outro lado do segmento ideológico.
Claro, estou assumindo o valor de face das reivindicações dos identitários de direita, do mesmo modo como se faz com as reivindicações dos grupos minoritários de esquerda que se expressam na gramática e nas táticas identitárias.
O fato, porém, é que todo identitarismo, de esquerda ou de direita, é um vitimismo, todos os membros da identidade estão sitiados, todos precisam denunciar a opressão estrutural, todos sentem que o seu grupo precisa se tornar autoconsciente da opressão sofrida e precisa reagir. De forma que, neste caso, reivindicar superioridade moral faz parte da gramática identitária, mas não significa automaticamente que essa superioridade se verifique sempre.
O segundo problema é que, para além do que os próprios militantes identitários pensam de si mesmos, e levam os outros a pensar que são, há um sistema de consequências das suas premissas e de características das suas táticas que encerram problemas sérios para a vida democrática. Boas intenções e discursos de autojustificação nunca deveriam ser aceitos ao pé da letra e, apesar da enorme complacência dos progressistas e dos conservadores com os seus próprios identitários, as fissuras são cada vez mais claras.
Aliás, o fato de que existam identitários do outro lado do espectro ideológico nos ajuda a investigar, de modo menos benevolente, o que esses movimentos realmente produzem e o valor democrático de seus métodos e premissas.
As dificuldades sob este aspecto aqui são muitas, mas uma questão muito evidente nos dias que correm é a capacidade que esses movimentos têm de silenciar os críticos e de se blindar contra qualquer objeção ou dissenso, seja a crítica apresentada sobre uma tática ou ação específica, seja esta formulada com relação a intenções e premissas gerais dos movimentos. Nessas circunstâncias, percebe-se como são movimentos de um autoritarismo desconcertante, alérgico a opiniões e a fatos dissonantes, intolerantes ao menor desafio intelectual.
Temos vários exemplos disto, pois praticamente toda semana há uma expedição punitiva patrocinada pelos identitários para calar um crítico ou um dissonante. “O cala a boca, divergente” é simplesmente a versão oferecida pelo autoritarismo identitário ao “cala a boca, subversivo” ou “cala a boca, herético” de outros tempos, e ele é cada vez mais constante.
Para quem os sofre, são processos dolorosos, com julgamentos automáticos em ambiente digital, sem chance de defesa, seguido de ataques pesados à reputação e de assédio coletivo acusados e condenados. Para quem os pratica, são uma chance de mobilizar as tropas para a guerra cultural e de reforçar os valores e os afetos tribais. O resultado, contudo, é o envenenamento da esfera pública, o silenciamento da opinião divergente e da crítica, a intimidação do atrito de pensamento, todas condições fundamentais de uma vida pública democrática
Resumi em cinco passos o que considero serem os protocolos para se calar os críticos e invalidar o dissenso sobre as táticas e as premissas identitárias mormente adotadas neste momento. Eu os chamo de Manual para Calar os Críticos e Proibir o Dissenso, e funcionam mais ou menos assim.
- Faça com que a opinião pública confunda o movimento identitário com a minoria que ele reivindica representar e use esta minoria como escudo. Assim, toda crítica a uma tática ou premissa dos identitários negros será considerada um insulto e uma ofensa aos negros, do mesmo modo que uma crítica ao malafaismo será recebida como um ataque contra o cristianismo.
- Mobilize a simpatia pública pela minoria representada e a use para o contra-ataque contra o crítico. Grite que os negros ou os cristãos estão sendo atacados que sairão guerreiros da justiça de todos os lados para proteger os negros e os cristãos – quando na verdade estão só calando os críticos dos identitários que usam as minorias como escudo.
- Desqualifique o crítico acusando-o de algum crime. Faça a opinião pública pensar que ninguém criticaria uma tática ou um dogma dos identitários negros ou dos malafaistas se não fosse por racismo ou cristofobia. Impeça assim que o teor da crítica seja considerado e vire o jogo. A acusação não precisa ser baseada em fatos, mas deve ser feita pelas autoridades tribais identitárias (duas ou três @ que se apropriaram da Autoridade Epistêmica sobre o tema ou o Baronato Identitário) e reiterada inúmeras vezes até que vire uma verdade indiscutível. Quando muita gente estiver gritando “supremacista” ou “cristofóbico”, não haverá mais ninguém lendo o texto criticado. Como vi por aí, “não preciso ler um texto racista para saber que ele é racista”. Não precisa mesmo, a voz do rebanho é quem diz o que você precisa saber.
- Desqualifique o crítico retirando dele a autoridade para opinar sobre o tema. Reivindique o monopólio moral e intelectual sobre a fala baseado na premissa da identificação existencial (só quem sente a dor é que pode gemer) e moral (por tempo demais os outros tiveram o monopólio das nossas questões). Não abra mão do lugar de fala. Não reconheça autoridade à razão, à lógica, ao conhecimento, à ciência, à condição humana, o lugar de fala deve ser só seu.
- Desqualifique o crítico acusando-o de estar lutando por interesses e privilégios e não pela verdade ou por valores como a democracia e a justiça. Se a crítica for, digamos, a uma ação, premissa ou tática dos identitários negros é bastante fazer notar que o crítico é branco, se for a uma minoria religiosa ultraconservadora é suficiente apontar que o crítico é esquerdista, pertence à elite intelectual ou é liberal.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes
(1) Comentário
Wilson Gomes sempre nos brinda com textos que nos fazem repensar aquilo que a sociedade tenta nos mostrar como um quase consenso!