Do sublime capitalista e das ruínas

Do sublime capitalista e das ruínas

Vladimir Safatle

Dentre os perigos que a arte moderna corre, o pior é a ausência de perigo.
Theodor Adorno

Uma sociedade marcada pelo paradigma da segurança não pode mais se sentir insegura diante da arte que ela produz. Até porque, assim, ela perde as condições para lidar com o sentimento aterrador de desmoronamento produzido por toda verdadeira obra de arte.

É cada vez mais consensual que as técnicas de governo e de administração da vida na sociedade capitalista são pautadas pela realização de exigências securitárias incessantemente marteladas. A elevação do terrorismo e da insegurança urbana a problemas políticos maiores serviu para “entificar” o medo como afeto político central no interior da economia libidinal das nossas sociedades. A erosão dos dispositivos jurídicos que visavam garantir o funcionamento mínimo do “estado de direito” parece cada vez mais um processo inelutável, a ponto de filósofos como Giorgio Agamben se perguntarem se não estaríamos entrando em um regime de estado de exceção universal. Mesmo alguém “insuspeito” como Richard Rorty chegou a se perguntar, um pouco antes de morrer, se não estaria na hora de pensarmos em nossas democracias liberais como uma invenção que será vista em um futuro próximo como parte das “belas idéias utópicas do passado”. De qualquer forma, não deixa de ser irônico como esta que já foi chamada de “sociedade de risco” por sociólogos que queriam insistir na criatividade promissora da pretensa ausência de padrões reguladores de conduta em nossas sociedades acabe por encontrar sua verdade sob a forma de uma vida obcecada pela segurança infinita. Como se a insegurança brutal no domínio das relações econômicas fosse compensada pelo bloqueio da indeterminação e do conflito próprio ao político por meio da implementação do paradigma securitário.

Se quisermos mais um exemplo da maneira com que nossa forma de vida é cada vez mais obcecada pela segurança infinita, lembremos do modo como tendemos a tratar disposições subjetivas como a depressão, a angústia e a ansiedade. Talvez sejamos a primeira época histórica a tratar disposições ligadas ao desejo (como são a depressão, a angústia e a ansiedade), que são fundamentais para a formação de individualidades capazes de relativizar e criticar as formas de vida nas quais estão inseridas, em doença mental a ser medicalizada de maneira brutal. Como se a imunidade em relação a toda “negatividade”, a tudo aquilo que impõe o sentimento de insegurança e de indeterminação em relação a nosso fazer social fosse o real objetivo de práticas clínicas de saúde mental.

De fato, uma sociedade como essa só pode suportar uma arte que não a aterrorize, que não desestabilize suas imagens de mundo. Uma arte simples (já que a complexidade demonstra como o pensar ligado ao senso comum e ao bom senso é incapaz de dar conta da integralidade do campo da experiência), divertida (como um jogo para adultos cada vez mais infantilizados, adultos para os quais não faz mais sentido distinguir cultura e entretenimento), sexy (já que não se saberia o que fazer com uma arte “para além do princípio do prazer”) e glamourosa (pois, afinal, o glamour é a melhor maneira de dobrar as expectativas disruptivas da modernidade estética às exigências de rentabilidade mercantil).

Andreas Gurski ou A versão capitalista do sublime

No entanto, há um dado que complexifica o problema. Grosso modo, não seria totalmente errado dizer que a experiência moderna conhece dois regimes de sentimento estético: o belo, enquanto livre acordo entre as faculdades, e o sublime. No entanto, vários foram aqueles que indicaram que um dos poucos conceitos da estética clássica conservados pela experiência estética do século 20 só poderia ser o sublime, e não exatamente o belo, já que o sublime parecia, de uma certa forma, articular-se a certas expectativas disruptivas do modernismo estético.

Lembremos, por exemplo, o que Kant diz sobre o sublime: “É sublime o que, do simples fato que podemos pensá-lo, demonstra um poder do espírito que ultrapassa toda medida de sentido”. Ou seja, o sublime, enquanto conceito indeterminado da razão, está ligado a experiências que produzem uma certa “violência contra a imaginação”. Experiências que fazem a imaginação confrontar-se com seu limite, já que excedem sua capacidade de esquematização. Daí porque Kant fala do sublime como o que é informe, como o que é “absolutamente” grande (isto no sentido de que não é grande apenas relativamente a um padrão, mas que ultrapassa toda capacidade de apreensão pela imaginação) ou, ainda, do que demonstra uma potência colossal em relação a obstáculos e resistências. Em todos esses casos há uma formalização do que não se submete à forma da representação, formalização do que só pode ser posto por meio de uma inadequação em relação à representação.

Aparentemente, uma arte pautada pelo sublime não teria lugar no regime securitário de nossas formas de vida no capitalismo avançado. No entanto, não deixa de ser desprovida de interesse a maneira com que setores avançados da arte contemporânea foram capazes de sintetizar algo que poderíamos chamar de “sublime capitalista”.

Tomemos, por exemplo, a obra de um dos fotógrafos mais importante da atualidade (ou, ao menos, o mais caro): o alemão Andréas Gurski. Nascido em 1955, Gurski é representante da dita Escola de Dusseldorf, grupo de jovens fotógrafos (como Thomas Ruff e Thomas Struth) que se formou em torno do casal Bernd e Hilla Becher. Trata-se certamente de um dos grupos mais relevantes da fotografia pós-1945 devido à capacidade que tiveram de constituir novos paradigmas de visibilidade marcados pela anulação de toda uma certa gramática da expressividade subjetiva da qual a fotografia sempre pareceu dependente.

O trabalho de Bernd e Hilla Becher é exemplar nesse sentido. Baseado exclusivamente na constituição de séries de imagens do aparato industrial da sociedade de produção (silos, caixas d’água, fornos industriais, máquinas de extração de minérios, casas pré-fabricadas de operários), suas fotos em preto e branco compõem grandes tipologias de imagens que parecem não procurar mais a singularidade, o evento fortuito e efêmero, a espontaneidade, a autenticidade. Um pouco como se eles seguissem o dito de Adorno: “A verdadeira arte conhece a expressão do inexpressivo, o choro ao qual faltam lágrimas”, maneira de criticar o caráter reificado e estereotipado da noção de expressividade que guia a produção fotográfica. Neste sentido, o ascetismo extremo do trabalho do casal Becher é figura da astúcia de uma subjetividade que prefere se reconhecer no caráter “maquínico” do aparato industrial a deixar-se levar pela falsidade de uma expressão fascinada pelo mito da espontaneidade da vida interior. Como se mimetizar a máquina fosse modo de mostrar que a subjetividade encontra sua essência lá onde ela procura se confundir com o impessoal, com o que é despersonalizado, isto por querer levar ao extremo a recusa em assumir figuras da expressão que nada mais podem dizer.

De fato, essa procura de uma nova gramática da visualidade foi compartilhada por alunos dos Becher, como Gurski e Ruff. Enquanto o segundo começou constituindo séries de retratos com fundos monocromáticos onde os rostos parecem procurar a expressividade de um retrato 3×4, o primeiro parecia querer seguir seu professor na tentativa de constituir uma tipologia do aparato de reprodução materialista da sociedade capitalista. No entanto, de Becher a Gurski uma mudança fundamental ocorre.

Bernd e Hilla Becher expõem o ocaso da sociedade de produção. Não é por outra razão que suas imagens fazem com que os grandes aparatos industriais apareçam como ruínas marcadas por um certo sinal de obsolescência. Como se eles fossem ­testemunhas de um tempo que porta as marcas do passado. Eles são peças de um progresso que deixou atrás de si ruínas, que transformou o mundo do trabalho em algo de irredutivelmente arruinado. Investir libidinalmente naquilo que adquiriu a forma de ruína é uma estratégia maior para que a arte exponha o que já não encontra lugar nas imagens que parecem mobilizar nosso desejo.

Nada disso ocorre quando voltamos os olhos para as imagens de Andreas Gurski.  Se os Becher estetizam o ocaso da sociedade de produção, Gurski é o arauto da passagem do paradigma da produção para o paradigma dos serviços, do consumo e do entretenimento. Os objetos principais de suas fotografias são os grandes conglomerados financeiros (bancos, bolsa de valores), de entretenimento (mega-hotéis, massas à procura de turismo, mega-shows, raves) e do consumo (hipermercados, lojas de consumo de luxo). Não só os objetos mudam, mas muda também a forma de exposição. Enquanto os Becher privilegiam a série com seu poder de quebrar o encantamento por conta da repetição modular do mesmo, Gurski prefere as fotos monumentais que nos colocam diante da desmesura fascinante dos aparatos do capitalismo pós-industrial em seu momento de “funcionamento perfeito”.

Essa desmesura, esse “poder do espírito que ultrapassa toda medida de sentido” não se dá apenas pelo caráter monumental das fotos, mas também pela insistência de mostrar pessoas sempre em uma escala reduzida em relação aos processos figurados nas imagens. Como se fosse questão de insistir no caráter “absolutamente grande” do universo do capital, com sua força de impessoalidade e despersonalização. Ou seja, se no início dos anos 70 Sigmar Polke e Gerhard Richter cunharam o realismo capitalista a fim de indicar aquele momento em os domínios hiper-fetichizados da cultura (publicidade, mídias, moda, consumo, quadrinhos) apareciam como matéria inelutável da arte, aparição que produziria questões maiores a respeito do destino da relação crítica entre arte e fetichismo, Gurski parece representar um estágio suplementar do mesmo problema. Estágio no qual o fetichismo das sociedades pós-industriais já não é simplesmente a realidade com a qual a arte deve se defrontar, mas o que parece querer colonizar inclusive nossa idéia de sublime. Mas agora encontramos um sublime que se deixa facilmente formalizar pelas cores de alta definição, pelo ambiente “limpado” com Photoshop e pelo apelo sensual de uma estética publicitária. Uma arte segura, que pode trazer um sublime que não nos desorienta mais. Figura maior de um tempo que quer a todo custo esquecer que a arte fiel a seu conteúdo de verdade é necessariamente terrorista.

Vladimir Safatle
é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo

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