Direita, esquerda e a incompetência política contemporânea
(Foto: Harold Edgerton / Divulgação)
As semânticas políticas contemporâneas, à esquerda e à direita, aprofundam o uso daquilo que Armin Nassehi (no livro Die letzte Stunde der Wahrheit. Kritik der komplexitätsvergessenen Vernunft) chamou de “razão que esquece a complexidade” (komplexitätsvergessene Vernunft). Esta “razão” consiste basicamente na crença de que a sociedade possui um ponto central a partir do qual se pode conduzir e controlar a mudança social, oscilando entre a moral, a política, o direito ou a educação, mas nunca considerando a complexa situação de concorrência e incongruência simultânea entre estas esferas diferenciadas.
Tradicionalmente, cética de que a política pudesse realizar este papel, a direita via este ponto central de condução na reforma e na seleção moral de pessoas, no cultivo das virtudes, enquanto a esquerda tomava exatamente a política como o centro de condução e controle das mudanças na sociedade e em suas esferas. Frustradas com suas respectivas apostas, direita e esquerda tendem a inflacionar suas expectativas sobre a educação, como se esta pudesse direcionar a mudança das estruturas da ação social por meio da formação e da integração moral e cultural dos indivíduos e da sociedade. A dificuldade é entender e falar da mudança como algo que ocorre no plural, de modo simultâneo e não integrado em diferentes esferas da sociedade, sem um centro que conduza os diferentes processos de transformação, embora seja necessário para a política a produção de narrativas unificadoras. Não se trata de abrir mão destas narrativas, mas de entender que elas não resolvem todos os problemas da política e da arte de governar.
Em seu novo livro sobre o assunto (Gab es 1968?), Nassehi avança a tese de que 1968 se tornou uma “fonte de narrativas simplificadoras” sobre a transformação social, nutrindo uma moralização duradoura e amplificada da política e tornando a nova direita (nacionalista) e nova esquerda (identitária) cada vez mais parecidas em sua forma de fazer política: ambas tendem a propor a transformação da sociedade a partir da promoção das boas intenções, da pureza de princípios e da condenação ou conversão dos moralmente indesejáveis como âncora para a ação coletiva. Esta fusão semântico-discursiva entre moral e política aprofunda a “razão que esquece a complexidade”, pois, enquanto a sociedade se torna mais complexa e mais difícil de ser transformada a partir de um único ponto de condução, mais se cultiva a fixação por “histórias simples” do “bem” contra o “mal”.
Um dos sintomas mais fortes deste aprofundamento da “razão que esquece a complexidade” é o desprezo crescente pela “técnica” tanto na nova direita como na nova esquerda. Na direita, basta observar o “governo” Bolsonaro (um aborto, um feto que não nasceu e já parece morto) para perceber como a crença na fusão entre política e moral (“guerra cultural” contra a esquerda) leva a se desconsiderar a complexidade de uma sociedade diferenciada em esferas e lógicas que reagem a todo esforço de transformação externa pela moral e/ou pela política. Para ação prática, o maior problema é que isto implica em não perceber que os setores de políticas públicas precisam levar em conta a “tecnologia social”, ou seja, o modo como intervenções produzem efeitos pretendidos e não pretendidos, de acordo com as lógicas diferenciadas da economia, da educação, da segurança.
A ideologia neoliberal de Paulo Guedes não é exceção que confirma a regra. É a regra: não se trata, como é vendido pelo banqueiro e seus seguidores, de uma visão “técnica” da economia, comprometida em considerar a complexidade interna deste subsistema da sociedade, mas sim de mais uma “história simples”, igualmente moralista (como sabemos desde Reagan e Thatcher), sobre como gerar riqueza e prosperidade. A crença de Guedes de que as virtudes do livre mercado vão resolver os problemas da economia é tão subcomplexa como a crença de que o estado pode conduzir este subsistema. Guedes e os neoliberais não tem nada a ver com ciência econômica. Geram vergonha em liberais como Andre Lara Resende e Monica de Bolle, atentos à complexidade real do mundo econômico.
Na esquerda, o desprezo pela “técnica” se dá, por exemplo, na hiperinflação do discurso de que “tudo é política”, especialmente como escapismo para a abstinência econômica que tomou conta com a “virada pós-estruturalista” que ensinou que tudo é poder. Falta um discurso econômico capaz de levar em conta a complexidade e a autonomia operativa da economia, com relações de causalidade, expectativas e processos construídos internamente que ressignificam e redirecionam as tentativas de intervenção pela política.
Em vez de estudar e levar em conta os desafios e os meios mais efetivos para que a intervenção estatal não seja neutralizada, mas sim potencializada pela economia, a esquerda se fixa no bordão do “tudo é poder” e joga a culpa do fracasso na ganância dos empresários, oscilando entre moral e política, sem passar pela inteligência. Ora, a ganância dos empresários, assim como desejo de poder dos políticos, são as razões sociais criadas pela sociedade complexa com suas esferas diferenciadas, com suas lógicas autônomas e simultâneas, e quando estas razões são desconsideradas, qualquer esforço de mudança social torna-se cego e inconsequente.
Não se trata de defender o “livre mercado” e desaconselhar a intervenção do Estado, mas sim de entender que a intervenção do Estado precisa levar em conta que a lógica e os motivos próprios da ação econômica são um fato da realidade, e que o sistema econômico vai observar e interferir na interferência do estado, com uma resultando que pode fazer os efeitos não pretendidos predominar sobre os pretendidos. A construção e a reconstrução das estruturais sociais da economia não podem ser diretamente conduzidas pelo estado, mas podem ser induzidas ou irritadas por ele. A impossibilidade de condução direta resulta da diferenciação de “tecnologias sociais”, entre as quais está a formação de relações mais ou menos seguras entre “causas” e “efeitos” específicos da lógica econômica.
A “razão que esquece a complexidade” prefere ignorar tudo isso e apostar na justificação moral de seu próprio fracasso: o que explica o fracasso das boas intenções são os “corruptos”, para a direita, e os “gananciosos e opressores”, para a esquerda. Que se tratam de “histórias simples” é fácil de ver na mudança dos personagens, mas nunca da estrutura narrativa: num momento é a “elite de rapina”, noutro o “lixo branco”; num os “corruptos”, noutro os “comunistas”.
Quando mais a política ignora a “complexidade” e a “técnica”, mais ela se torna incapaz de entregar o que promete. A necessidade de simplificar o discurso no momento eleitoral não pode significar a necessidade de simplificar o discurso sempre. Na construção e implementação das políticas públicas ignorar a “complexidade” e as “tecnologias sociais” é ignorar as condições de sucesso e fracasso das ações do estado, é praticamente amputar a política para entregar resultados (output) e assim se legitimar na sociedade (input). A aceleração e a fragmentação da esfera pública que orienta a ação política e governamental, com oscilações quase diárias entre as “histórias simples” relevantes para a opinião pública, tendem a aprofundar ainda mais a “razão que esquece da complexidade”: a necessidade de “lacrar” todo dia torna ainda mais difícil a busca de alternativas institucionais e organizacionais capazes de viabilizar mudanças sociais em uma sociedade complexa, ou seja, de “tecnologias sociais” adequadas. Atentar para a complexidade e a técnica como elementos indispensáveis para a mudança social não é defender governos fracos. Não se trata de ser contra as mudanças produzidas a partir da política, mas sim de entender sua complexidade. É defender, de modo consequente e realista, governos fortes e capazes de produzir mudanças, pois o que temos hoje, com o uso da “razão que esquece a complexidade” dominando a política, é um desaprendizado da arte de governar, compensada pelo cultivo da arte de contar “histórias simples” (lacrar) e atribuir a destruição do final feliz à maldade do outro lado.
As reflexões de Nassehi sobre a “razão que esquece a complexidade” na política alemã chegam a conclusões parecidas com as de Mark Lilla (O progressista de ontem e o do amanhã) sobre a política identitária nos Estados Unidos. A moralização excessiva da política, que Lilla identifica e critica na política progressista de viés identitário, torna a esquerda incompetente politicamente, tanto para ganhar legitimidade e formar maiorias, como para administrar o estado. A política identitária tende a reduzir a conduta política a discursos concorrentes de grupos com suas moralidades sectárias e “histórias simples” sobre como transformar a realidade – a mesma aposta na conversão ou reconversão moral e no ativismo inconsequente que Nassehi identifica na geração de 1968, com seus segmentos pró e contra, mas compartilhando o mesmo quadro de referência hiper-simplificador da realidade e de suas possibilidades de transformação. No momento político recente, as “histórias simples” da direita parecem ter mais sucesso que as da esquerda. Mas a disputa entre elas tende a agravar a incompetência, partilhada não tão secretamente por ambas, de governar e entregar resultados. A amplificação das disputas morais, ao substituir as habilidades de abertura ao outro, à realidade empírica e à dimensão “tecnológica” da vida social, cria o que Lilla chama de “pseudo-política”. Pseudo, aqui, não porque seja de esquerda ou de direita, mas sim porque é incapaz de realizar a função específica da política, seja com programas de direita ou de esquerda: produzir decisões coletivamente vinculantes para formar maiorias e para produzir e implementar transformações como resultado da ação do estado na sociedade.
A ingovernabilidade e o colapso da função política só interessam a quem deseja a manutenção do status quo, ainda que seja em rumo à catástrofe civilizatória, e à neutralização das decisões coletivas e das maiorias sociais e políticas no rumo da história. Só interessa à direita, não à esquerda.
O que é ser de esquerda? Dominar a arte de governar em um mundo complexo ou “contar histórias simples” que só servem para marcar uma identidade política cheia de moral e vazia de programa e inteligência?
Roberto Dutra é doutor em sociologia pela Humboldt Universitaet zu Berlin/Alemanha e professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)