Desprezo à democracia é cicatriz que não se esconde
O desprezo pela democracia gera cicatrizes que não são fáceis de esconder (Foto Agência Brasil / José Cruz)
Poucos dias depois que o resultado da eleição presidencial havia sido anunciado pelo TSE, centenas de pessoas cobriam a avenida Paulista com pedidos de impeachment ou, se não, o de uma enigmática e até então incompreensível intervenção militar. Os líderes derrotados foram um pouco mais prudentes, mas nem tanto. Insinuaram fraude e pela primeira vez na história de nossas tão bem-sucedidas urnas eletrônicas subscreveram um quase estudantil pedido de recontagem. Em uma semana já era possível compreender bem as dificuldades que Dilma Rousseff teria para iniciar seu segundo mandato. As eleições de 2014 simplesmente não haviam acabado.
A desconfiança imputada ao processo eleitoral – seletiva, pois para outros cargos a urna teria funcionado a contento – não era mesmo mais do que uma demonstração simbólica de irresignação. Mas foi se recheando com toda sorte de fake news, o combustível adulterado do amplo processo de deslegitimação da democracia – esta epidemia que se alastraria pelo país.
A ânsia de interromper um governo que nem havia começado, por fatos que orbitavam entre os deslizes do passado ou os temores do futuro, impediam que o presente se iniciasse. Ao final, os interesses imediatos se colocaram à frente das instituições: era preferível chegar mais cedo ao poder do que preservar a regra do jogo em busca de uma alternância que os sucessivos fracassos eleitorais vinham impedindo.
Nesse frenesi, houve de tudo um pouco. Liberais que reclamavam da excessiva presença do Estado deram as mãos àqueles que pretendiam pura e simplesmente o retorno aos anos de chumbo, onde até o pensar podia ser objeto de uma, digamos, intervenção militar. Houve pareceres por encomenda, deputados com preços e jornalistas imbuídos de uma missão.
O mercado apostou todos os seus cifrões na queda do governo – ainda que Dilma tivesse, no desespero, recrutado, também de forma incompreensível, um dos mais confiáveis porta-estandartes do sistema financeiro. Não era suficiente. A janela de oportunidades que estava prestes a se abrir não tinha termo de comparação. Um saco de maldades que só um presidente não-eleito teria condições de proporcionar, o programa prêt-à-porter para um governo de patrões: privatizações, internacionalizações, desmontagem da legislação trabalhista. E uma forma de precificar os derivados de petróleo da qual iríamos nos arrepender em pouco tempo.
Os perigos de uma economia mal gerida; a corrupção em escala ou a perda de sustentação política. Um anticomunismo redivivo, uma mistura explosiva de ódio e ressentimento, um quê não desprezível de machismo. Tudo, enfim, se juntou para justificar a inusitada aliança que reuniu a fina flor do mercado, o bizarro grupo de jovens mais fascistas que liberais, a república messiânica e midiática dos bacharéis e os políticos até então poupados pela mídia camarada. Tudo envolto em argumentações jurídicas de baixa densidade, mas que foram mais do que suficientes para um Supremo que se mostrava pouco disposto a exercer sua função contramajoritária e zelar pela Constituição.
Abriu-se a temível porta da desinstitucionalização. E quem diz que é fácil fechá-la?
O pânico moral de que se revestiu a chamada luta contra a corrupção encontra seu limite quando as denúncias batem às portas daqueles que tão fortemente a empunharam, levando a uma encruzilhada que estanca a persecução ou, ao menos, diminui sua rapidez e intensidade. Nem todos os processos correm; nem todos os réus vão presos. O paradoxo se instaura: ou a lei não é para todos ou é para todos e não sobra ninguém.
A economia continua com seus percalços e perspectivas sombrias, ainda que a imprensa tenha começado a elogiar docilmente a metade cheia de um copo sobre o qual cansou de avisar o quanto estava vazio.
O desemprego em altas proporções é sempre um condimento perigoso para movimentos de massa. Mas o pior nem está no posto sem gasolina ou no mercado desabastecido: está na desilusão para com a democracia e nas portas laterais que os interesses poderosos ensinaram a forçar.
A desesperança cultivada segue florescendo vivamente. Dois anos depois, voltamos bem mais do que vinte, para aquela época dos livros em que não tínhamos sequer a certeza da próxima eleição. Mas se a tivermos, quem garante que dessa vez ela termina?
Outubro vai marcar também o trigésimo aniversário de uma Constituição ameaçada de extinção ou apenas prestes a se recolher à sua própria insignificância. Normas que tutelam direitos fundamentais vem sendo desprezadas a olho nu; o arcabouço social de que se revestiu a Carta cidadã foi suspenso por uma lei que dura vinte anos; o populismo tomou conta do espírito daqueles que juraram defender os seus princípios.
A democracia está longe de ser um objeto descartável. Seu desprezo gera cicatrizes que não são fáceis de esconder.
Mas o pior dessa bagunça toda é o fato de que aqueles que tanto se esforçaram para tirar as coisas do lugar são justamente os primeiros que se apresentam com credenciais para arrumar a casa.
MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
(2) Comentários
Quando não se tem história, ocorre o que está acontecendo no Brasil, infelizmente estamos nas mais de um mercado vil e predatório, realmente não estamos numa democracia , estamos sim vivendo um faz de conta, em tempo, adorei o artigo, retrata com maestria esses tempos sombrios.
Excepcional.