O foro privilegiado dos assassinos e torturadores

O foro privilegiado dos assassinos e torturadores
Grupo de extermínio, 1993 (Autores Marcos Alves, João Antônio Barros, Paulo Oliveira, Stela Guedes / Divulgação)

 

Na vida real, enquanto o STF debatia se parlamentares teriam ou não direito à prerrogativa de foro e a grande mídia pautava o tema como solução para a “impunidade”, assassinos e torturadores, caso fossem militares, podem ter seus processos remetidos da justiça comum para uma justiça particular e interna.

É que desde 13 de outubro de 2017, o foro privilegiado no Brasil tem sido concedido a militares das Forças Armadas que praticam crimes dolosos contra a vida de civis, embora a Constituição de 1988 confira competência exclusiva ao Tribunal do Júri nestes casos.

Ronniely Medeiros de Sousa, pessoa em situação de rua nas entrequadras da asa sul de Brasília, foi torturado em 2 de janeiro de 2013 por três policiais militares para que não denunciasse o envolvimento de policiais no tráfico de drogas. Segundo a denúncia do Ministério Público, Ronniely foi algemado, colocado numa viatura e levado até um matagal. Lá sofreu inúmeras agressões, choques com pistolas a laser no pescoço e no braço e teve o pé perfurado por uma barra de ferro.

Passados cinco anos dos fatos, o processo por crime de tortura contra os policiais estava pronto para ser sentenciado pelo judiciário do Distrito Federal, não fosse um pedido do Ministério Público, com base na lei 13.491 de 2017, para que a Justiça Militar julgasse os policiais.

Agora, a justiça corporativa da PM pode mandar refazer toda a instrução do processo. Assim como neste caso, outras mil ações penais tiveram o mesmo destino migratório. Somente no Estado de Goiás, o Tribunal de Justiça prevê o deslocamento de três mil processos.

O texto enviado pelo Congresso para sanção por Michel Temer delimitava um tempo preciso de duração para a lei até 31 de dezembro de 2016, apenas para atender à “segurança” dos jogos olímpicos. No entanto, por pressão da bancada da bala e das Forças Armadas, Temer vetou este dispositivo da proposta tornando a lei atemporal. O veto, somado ao fato de evidente inconstitucionalidade da proposta, foi questionado no STF que até agora não teve nenhuma pressa para resolver a questão.

No ano de 2017, 5.012 pessoas foram mortas por policiais no Brasil – 790 a mais que em 2016 . A Anistia Internacional analisou o perfil dos homicídios decorrentes de intervenção policial no Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013, e conclui que 99,5% das vítimas são homens, 79,1% são negros e pardos e 75% são jovens (entre 15 e 29 anos). A letalidade da polícia brasileira tem um destinatário preciso e identificável, portanto: jovem, pobre e negro.

O foro mais que privilegiado concedido por Temer já foi objeto de decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (caso Rosendo Radilla, no México), que se manifestou contra a ampliação da jurisdição penal militar no Estado Democrático de Direito por evidente risco ao juiz natural, a um julgamento justo e imparcial, ofensa ao princípio da igualdade perante a lei e relativização das garantias do devido processo legal e também as normas internacionais de direitos humanos.

Mas, nada disso parece sensibilizar o STF ou pautar o debate político no Brasil. A letalidade policial é parte da racionalidade do capital para aniquilar, reprimir e sufocar iniquidades sociais. Infelizmente, os crimes contra a vida praticados por agentes do Estado não são meros erros de procedimento ou pontos fora da curva, sua constância e o absurdo quantitativo dos seus números, revelam-se mais como uma deliberada política estatal, daí sua proteção pelo aparato normativo.

Assim, o foro privilegiado que interessa é apenas aquele dos parlamentares – veja que o Supremo manteve intacto o de magistrados e membros do ministério público – e não o de torturadores de pessoas em situação de rua. Aliás, a retirada do foro privilegiado foi comemorada por políticos que, agora, junto à maior influência no sistema de justiça nos seus estados, certamente escaparão de serem responsabilizados.

Se a letalidade policial é parte indissociável da racionalidade do capital em sociedades extremamente desiguais, sua sustentação política e ideológica é o desprezo e a dessacralização da vida de alguns. Ronniely Medeiros de Sousa agora deverá buscar justiça junto aos colegas de farda daqueles que o torturaram. No Brasil, a polícia tortura e mata. Depois, julga.


PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP


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