Depressão cívica: o pesadelo da realidade política
I- Percepção perturbada
No tumulto político dos últimos anos, é frequente a impressão de se viver num mundo irreal. Quem é ciente do que deveria ser normal no Estado de direito tem verificado a permanência de uma realidade absurda.
A pandemia introduziu a confusa ideia de um “novo normal”. Desde 2013, no entanto, a realidade política brasileira já apresentava uma ruptura decisiva com toda noção de normalidade. O avanço da extrema-direita, a arquitetura do impeachment e o crescimento da candidatura de Bolsonaro instauraram um “novo normal” normalopático.
Em 2018, estava claro para o eleitorado minimamente educado nos fundamentos da república que não se deveria permitir a candidatura de um presidenciável que se manifesta a favor da tortura, do autoritarismo e da opressão de adversários políticos, em cuja imensa gama se incluem professores, cientistas e intelectuais, bem como militantes sindicais, ambientais, feministas, negros e LGBTQIA+, isto é, praticamente todos os profissionais pensantes e politizados.
A postura bélica se revelou de alto potencial populista, tornou-se majoritária e venceu. Da eleição de 2018 até hoje, estamos tragando o veneno amargo a cada dia. Se a tendência das pesquisas em favor de Lula se mantiver e ele puder assumir, encontraremos o alívio tão ansiado. Porém, antes disso, ainda faltam alguns meses de padecimento sempre agravado com ataques ao TSE, STF, inflação, corte de gastos, aumento da criminalidade e armamento da população. A questão aqui é: o que se passa na percepção de quem sabe que tudo o que não deveria ter ocorrido ocorre incessantemente?
A sensação de irrealidade, de se viver em uma distopia, acometeu boa parte da população e, cada vez mais, experimentamos um verdadeiro pesadelo objetivo. Como as pessoas cientes suportam que o abominável tome conta da realidade? Como lidam com sua depressão cívica?
II- Estabilidade da contradição
A equipe propagandística do governo investe numa imagem voluntariamente grosseira, bronca, desajustada e mesmo suja de Bolsonaro, basta lembrar dos comentários escatológicos sobre o golden shower no carnaval de 2019, dos palavrões, da obsessão anal e da dispersão de farofa durante a refeição. Para uma parcela da população que odeia a distinção estética e intelectual progressista, que aos olhos dela certamente contém ares aristocráticos excludentes, o mito bolsonarista ostenta uma brutalidade orgulhosa de sua aspereza, empoderada. Contra a elegância dos bem nascidos, os reacionários se jactanciam do espetáculo da barbárie, do grotesco, da bufonaria.
Esse é primeiro dos fatores que atormentam as vítimas da depressão cívica: a dimensão estética, sempre inseparável da política. Ela atesta o modo de vida do líder popular que se deleita em ser mais machista que os machistas: é hipermachista, hiperviolento, hiper-rude. A heroicização do macho torna possível a aceitação de uma figura de fundo, muito pouco disfarçada, que é a do torturador; inclusive, nada distante, aos olhos das mulheres, do estuprador.
Se se perguntar de onde essa perversão sádica surgiu, é preciso pensar não só na prática da tortura na ditadura militar, exemplo mais evidente. Há um conluio de longa data entre a mídia e os perpetradores de desgraças. Como a massa é atraída por atrocidades, seja por instinto de preservação de manter-se informado do perigo, seja por gosto perverso, o comprovado êxito de notícias assustadoras se torna uma máquina de sensacionalismo do mal.
Bolsonaro deu a César o que é de César: deu à mídia – a marqueteira da perversão de massa – o que ela sempre demanda: escândalos políticos. A mídia vive da fissura por desgraças, fornecendo esse crack requentado para o entorpecimento do espectador comum; depois que ele goza de sua própria degradação, seus analistas de conjuntura rejeitam, no palavrório racionalizado, aquilo que ofereceram no ato inconfesso. Na verdade, há um triplo conluio entre mídia, carrascos da política e sadomasoquismo da massa.
Já o cidadão deprimido olha para esse circo de horrores com desânimo. Sabe que a litania de alertas, acusações e desagravos dos especialistas na mídia é completamente contraditória. Ela alardeia a aptidão de denunciar mas mantém a impotência da impunidade. A estabilidade inamovível dessa contradição é especialmente torturante. Ela se evidenciou no período em que a possibilidade de impeachment do atual presidente foi facilmente descartada.
O que interessa, nesse caso, não é tanto se bolsonaristas apoiam ou não a tortura física, é como, na guerra híbrida civil em vigor, há uma sorte de tortura mental, símbólica, em jogo, na solidez institucional do ataque às instituições.
O que causa angústia é a permissão desabrida para destruir, enquanto o protesto verbal midiático é inoperante. Essa mistura de sinais, que oscila entre o pavor e o consolo insosso, o impronunciável e a verbalização monótona do alerta, revela o estágio avançado da normalização da catástrofe.
Enquanto a esquerda iniciou os alertas de ameaça da democracia nos primeiros momentos da corrida eleitoral de 2018, havia na mídia uma patente falta de discussão séria do perigo, um trabalho sistemático de criminalização de Lula e uma manutenção de aparência de normalidade democrática quando tudo já indicava sua fragilidade. A coisa grotesca (na gíria corrente, “o coiso”), que não devia nunca ser tolerada, ganhou as eleições e produziu a miríade de ataques ao Estado de direito.
Logo, a antecipação desconsiderada da esquerda e a cínica repetição tardia de suas palavras pela mídia e pelos órgãos ameaçados (em especial os ministros do STF) colocam o conjunto da obra sob suspeita. Quando a reação retardada se deu, se prometia alguma validade, comprovou-se ser inócua, bem ao contrário do impeachment de Dilma. Esse atraso duvidoso carrega somente um sentido não dito: a suspeita do cidadão deprimido de certa cumplicidade mal explicada de instâncias oficiais com o inaceitável.
A depressão ocorre justamente quando o sujeito se sente cercado de ameaças explícitas e implícitas, sinais confusos e suspeitos. Em todo lugar pode se pisar em minas, nada nem ninguém é confiável.
III- Potencial da impotência
Agora está configurada a soma dos fatores que constitui o pesadelo da realidade política. Enquanto o sonho aflitivo é curto, intenso, provisório, tende ao clímax e termina no alívio contrastante de acordar no mundo habitual, o pesadelo real, diferentemente, é contínuo, ininterrupto, estável e permanente. A tortura é homeopática: cada notícia é uma gota de veneno diluída no tecido do cotidiano. No tormento da agressão à democracia, não se acorda nunca. Tudo converge para o gozo dos carrascos e o suplício das vítimas.
Quando os analistas comemoram uma “derrota” do presidente na influência sobre a população, na votação do STF ou num outro julgamento fora dele, alimentam o imaginário gamificado dos bolsonaristas e aumentam a desconfiança do cidadão de que tudo é um teatro de horrores, pois não é possível “torcer”, muito menos comemorar “vitórias” enquanto mil outras “derrotas” estão se passando a pleno vapor.
A infantilização da persona do presidente, feita pela mídia, é o equivalente da heroicização de sua mídia alternativa: ambas simplificam o ator político para que ele não seja compreendido. A somatória das duas resulta na estupidificação da complexidade. Nela, a tela do noticiário faz o papel da sala de tortura.
Não é de dor física que se trata. Afetiva? Certamente, mas ela incide na própria lucidez do cidadão deprimido. Trata-se de uma tortura cognitiva, que atinge em cheio quem vê com clareza os perigos da tragicomédia pública e não afeta o descaso incólume dos indiferentes e dos cúmplices.
Muitos se queixam de que as ruas estão vazias, mas, além do medo, do empobrecimento e do cansaço, o efeito da tortura mental constante não deve ser subestimado. O pesadelo onírico surge da irrupção de pulsões inconscientes, que só encontram espaço no relaxamento da consciência reprimida. O pesadelo real, por outro lado, bombardeia o núcleo da razão cívica. Depois, ferido pelo ataque, o cidadão deprimido se ocupa somente do esforço de permanecer lúcido, isto é, não cair na paranoia, nem na esquizofrenia.
Não é fácil delimitar a dor cognitiva. O teatro das meias verdades encenado pelas instâncias midiáticas e institucionais fazem o cidadão tentar entender o labirinto dos sinais trocados, enquanto o carrasco político ataca os alicerces da proteção do Estado de direito. O deprimido reage ao ataque tentando entender, mas o entendimento mesmo foi prejudicado pelo lixo de informações da guerra híbrida.
Pode parecer a um pressuposto teórico incauto que não há confusão entre afeto e racionalidade. Evidentemente, não é o que ocorre na prática, muito pelo contrário. É justamente a ciência do mal que faz o deprimido sentir a “facada”, que Guedes disse desejar dar no sistema S, acertar seu sistema nervoso, assim como também sente a “granada no bolso” que Guedes quis colocar no servidor. A facada e a granada do autoritarismo neoliberal acertam a razão e, por conseguinte, afetam o coração. Quando dói pensar, dói entender o alcance da violência contra o Estado social e as implicações disso para a segurança mais objetiva do cidadão.
A razão precisa meditar não só sobre seus limites, mas sobre suas fraquezas. O instrumento principal do pensamento – a reflexão – é também o melhor medicamento para sua cura. Quando o sujeito ciente reflete sobre a própria dor da lucidez, ele trata de suas feridas e toma novo fôlego. É possível despertar do pesadelo da racionalidade neoliberal autoritária e retomar o sonho de uma razão emancipatória, pois a força está na fraqueza, especialmente no caso da inteligência pessoal, que é tão perspicaz em alguns casos e tão obtusa em outros.
Como dizia Adorno, nossa tarefa fundamental é “não se deixar imbecilizar nem pelo poder dos outros nem pela impotência de si mesmo”.
Eduardo Guerreiro Losso é professor associado do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, bolsista produtividade do CNPQ e editor da Revista Terceira Margem.