A democracia explicada aos bolsonaristas
Os bolsonaristas juram que amam a democracia. Tanto a amam que num desses domingos de verão foram invadir e destruir os prédios que abrigam e representam os Três Poderes para, segundo eles, defender o Brasil da ditadura do Judiciário.
Literalmente, saíram de casa para implantar uma ditadura por amor à democracia. Tanto a veneram que estão em luta renhida contra todos os impedimentos às liberdades. À liberdade de expressão, mas só dos que pregam golpes de Estado e propõem que venham abaixo todos os Poderes da República. À liberdade de não se vacinar, de não respeitar isolamento social, de não prescrever remédio de piolho para quem tinha covid-19.
E se sentem ultrajados quando todos chamam de antidemocráticos os atos de ataque à soberania popular manifestada nas urnas, as investidas contra o Poder Judiciário e, depois da demissão de Bolsonaro, contra o Poder Executivo.
Isso tudo parece muito ao contrário do que seria um regime democrático, mas os bolsonaristas insistem em afirmar que são eles, e não os outros, os defensores da verdadeira democracia. E que a vontade dos assim chamados “patriotas nas ruas”, imposta aos berros, a ferro e a fogo, deve prevalecer sobre a vontade popular consignada na urna eletrônica. Mesmo que para arrebentar palácios tenham comparecido apenas 4 mil e, para votar, tenham vindo 125 milhões de eleitores.
Como os que foram “consertar o Brasil” em 2013, os que se sentiram na obrigação de “dar um corretivo” nos Três Poderes acham que democracia é quando o povo, entendido como uma multidão reunida fisicamente para reivindicar alguma coisa, obtém o que quer. E quem se opõe a isso – instituições, o Estado, a opinião pública – é que não gosta do regime democrático.
O problema dos incendiários de 2022, de forma semelhante aos de 2013, é que eles operam com base em um conceito bem peculiar de democracia, montado de forma conveniente para justificar moralmente a sua vontade de poder.
Pensando nisso, fiz uma listinha com sete componentes do conceito de democracia dos quais essa gente normalmente esquece, e que mostram que o que eles desejam pode ser tudo, menos um regime democrático.
1. A democracia é um regime de governo civil. Há muitas formas de autocracias que funcionam com governos militares, a democracia não. É o governo dos civis, pelos civis e para os civis.
Quando Roma era ainda uma democracia, os Exércitos sequer podiam entrar na cidade. Quando Júlio César atravessou o riacho Rubicão e trouxe suas tropas para a urbe romana, imediatamente o regime de governo mudou, inaugurava-se literalmente a palavra ditadura e o regime correspondente.
Um militar pode eventualmente tornar-se chefe de governo em um regime democrático, sim, mas desde que abandone a força militar e se submeta a todas as regras do jogo do governo civil: eleição popular por vontade da maioria, obrigação de prestação de contas, transparência, deliberação pública, submissão à supervisão dos outros Poderes, escrutínio pela opinião pública.
Na democracia, militares não governam, não supervisionam governos, não são um poder moderador, mas tão somente uma força a serviço dos civis.
2. Em uma democracia, o poder político é compartilhado, supervisionado, transparente, revisável e se obriga permanentemente a prestar contas e a dar explicações. Na falta de algum desses requisitos, não há democracia. Não há poderes ou vontade absolutos nesse regime, não há mitos infalíveis, não há dogmas, não há o privilégio dos segredos, não se governa pelo carisma.
3. O Judiciário não é um poder menor do que o Executivo apenas porque os juízes não são eleitos por voto popular direto. O Legislativo não é um poder secundário porque não é eleito por voto majoritário. É da natureza da democracia liberal que o exercício do poder político seja reciprocamente limitado, controlado por sistemas de pesos e contrapesos, justamente para evitar uma regressão autocrática.
4. Na democracia, mesmo quem ganha eleições não ganha o direito de governar fora dos limites da Constituição, nem se exime de curvar-se ao império das Leis. Não se ganha em uma eleição o direito de substituir o contrato fundamental que constitui aquele Estado, tampouco o direito de suprimir direitos. O presidente eleito não ganhou uma autorização para moldar a sociedade e o Estado ao seu gosto, mas a obrigação de governar para todos.
5. Em uma democracia, o Estado não é propriedade de quem governa, continua sendo propriedade do conjunto dos cidadãos. Por isso os romanos chamavam o Estado que funciona sob esse regime de res publica, república. O governo é um curador de uma coisa que não é sua. A Fazenda Pública não é de quem governa para que dela se aproveite como se fosse sua propriedade, as funções do Estado não são dele para que as desfrutem em benefício próprio.
6. Em uma democracia, a pluralidade e a diversidades de interesses, perspectivas, valores e pessoas não são apenas algo a ser tolerado, mas a condição mesma de sua possibilidade e algo a ser preservado. Essa foi a escolha civilizacional da democracia: ser um regime aberto, em perpétua correção de rumos e que acredita que o progresso advém de uma diversidade e uma pluralidade produtivas, pelo atrito civilizado e livre de ideias.
7. A democracia morde, ela precisa morder quem a agride ou tenta destruí-la. Desculpem-me os que acham que a democracia só pode dar colinho e tolerar a quem a pretende solapar. Não há regime política que não tenha criados os anticorpos e os sistemas de defesa que garantam a sua sobrevivência. Não há qualquer contradição nisso.
A democracia é um regime de tolerância e de pluralismo, sim, mas uma sociedade não perde em teor democrático porque as instituições enfrentam com a Lei os que decidem que não seguirão mais as regras do jogo e que podem juntar músculos, fanatismo e brutalidade para impor a sua vontade sobre os demais.
A democracia, por mais pluralista que seja, precisa ter instrumentos de defesa contra os intolerantes e os brutos. Não, não foi Xandão quem inventou uma democracia que mostra os dentes. Aprendemos a duras penas que uma democracia que não morde não sobrevive. Foi assim na democracia antiga, quando inventaram o ostracismo, é assim na democracia moderna.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)