Das cinzas

Das cinzas

Vladimir Safatle 

Um dos mantras preferidos dos últimos anos diz respeito ao pretenso esgotamento do pensamento de esquerda. Seus sacerdotes são de dois tipos. Os primeiros gostariam de ser vistos como os vitoriosos de uma época terminada de conflito ideológico. Eles não cansam de afirmar que a esquerda nunca passou de um arremedo de autoritarismo mal disfarçado, demandas infantis de proteção, ingenuidade a respeito das violências animadas pelo mal radical e incompetência gerencial. Durante décadas, seus intelectuais não tinham coragem de dizer claramente o que pensavam. Mas, animados pelo fim do socialismo real com o conseqüente colapso dos partidos comunistas no Ocidente, pelo embaralhamento sistemático das políticas de social-democratas e conservadores e por doses reforçadas de fundamentalismo cristão, eles podem agora afirmar todo seu conservadorismo e sua crença nas virtudes curativas do porrete da polícia.

O segundo tipo é composto de um séqüito heteróclito de viúvas da esquerda. Com um olhar entristecido, elas afirmam que a esquerda está sem rumo desde a queda do muro de Berlim e que chegou a hora de doses amargas de realismo. Não dá mais para sonhar com estado de bem-estar social e coisas do tipo, nem ter explicações angelicais a respeito da violência. Falar em novas configurações do político é conversa de gente que não entendeu que a democracia parlamentar é, como costumava dizer um líder conservador, o pior governo, mas o único possível. As velhas agendas da crítica do poder, da identificação dos conflitos de classe e das práticas disciplinares presentes em nossas instituições podem muito bem ser trocadas por uma boa ação social em ONGs, de preferência aquelas financiadas por bancos e grande corporações. Várias dessas viúvas, principalmente em países europeus, não temeram flertar com o pior do nacionalismo e do culto da identidade travestindo tudo isso de luta do Ocidente liberal contra o Oriente amedrontado pelo inelutável processo de modernização.

De fato, esse mantra do esgotamento do pensamento de esquerda encontrou no Brasil um terreno profícuo. Desde o governo Fernando Henrique tínhamos de conviver com o cinismo de intelectuais que utilizavam Karl Marx para justificar o caráter inelutável da globalização e a necessidade de um choque de realidade visando a acabar de vez com o fantasma do “Estado getulista” com seus tentáculos ineficientes. Com o governo Lula, somos agora obrigados a conviver com o bloqueio reiterado da reconstrução dos fundamentos gerais do campo do político, como se a imersão na “pior política” fosse uma fatalidade intransponível. Nos dois casos, esmera-se em utilizar um palavreado de esquerda para justificar business as usual. O que apenas reforça nossa impressão de que o político na contemporaneidade seria apenas a dimensão da ausência de criatividade e das limitações de nossas aspirações de mudança.

Contra tudo isso, valeria a pena lembrar como, nos últimos anos, o pensamento de esquerda não se esgotou. Ele criou uma outra agenda, animada por problematizações renovadas a respeito das sociedades capitalistas contemporâneas. Há vários nomes que poderiam ser lembrados, mas este dossiê acabou privilegiando um pequeno número que tem em comum a capacidade de constituir uma cena de debate através de reenvios recíprocos.

Por outro lado, estes autores foram capazes de desenvolver uma produção conceitual que, aos poucos, mostra sua força em iluminar de outra forma problemas que não cessam de nos confrontar. Giorgio Agamben, com seus conceitos de estado de exceção universal e vida nua; Slavoj Zizek e a renovação da articulação entre psicanálise e marxismo na compreensão da sociedade contemporânea, assim como sua insistência da necessidade de uma suspensão política da ética; Alain Badiou e sua filosofia da história do século 20 animada pela noção de “paixão pelo real” e seu conceito renovado de universalismo; Toni Negri e a idéia de multitude; Judith Butler e sua teoria performativa de gênero; Chantal Mouffe, Ernesto Laclau e a democracia radical. Embora esses sejam conceitos que nos remetem a campos teóricos distintos e que, muitas vezes, tecem entre si relações de conflitos profundos, é bem provável que as discussões sobre a política de esquerda nos próximos anos passem por eles. Compreendê-los é, pois, uma tarefa urgente.

No entanto, poderíamos nos perguntar sobre quanto vale perder tempo com teoria se as urgências práticas da política parecem tão prementes. A esse respeito, talvez seja bem-vindo lembrar uma entrevista de Gilles Deleuze feita por Michel Foucault na qual Foucault começa colocando a questão: “Um maoísta me dizia: ´Sartre, eu compreendo bem porque ele está conosco, porque ele faz política e de que forma ele faz; você, em última instância, eu compreendo um pouco, você sempre colocou o problema do encarceramento. Mas Deleuze, este aí eu realmente não compreendo nada.”

A resposta de Deleuze não deixa de ser surpreendente. Ele afirma “estarmos vivendo de uma outra maneira as relações entre teoria e prática”. Até então, ou concebíamos a prática como uma aplicação da teoria, como a exposição de um processo que já havia sido descrito e conceitualizado pela teoria, ou fazíamos a operação inversa e concebíamos a prática como a força criadora de uma forma de teoria a vir, ou seja, uma prática soberana que despediria a teoria ou, no máximo, que a obrigaria a se curvar diante de seu peso. Nos dois casos, concebemos as relações entre teoria e prática como a subsunção de um pólo pelo outro. Pensamos a aplicação como uma operação guiada por relações de semelhança ou analogia. Onde a prática é análoga à teoria? Onde a teoria se assemelha ao que vemos na prática?

No entanto, deveríamos pensar a relação entre teoria e prática de outra forma, de uma forma “horizontal”. A esse respeito, poderíamos dizer que, quando a teoria se concentra em seu próprio domínio, ela começa a se confrontar com obstáculos, com muros que a impedem de avançar. Isso nos obriga a substitui-la por um outro tipo de discurso, uma prática que nos permita passar a um domínio diferente. Graças a essa passagem, poderemos resolver um problema na teoria, retornar a teoria em outro ponto, a partir de outro lugar. Da mesma forma, quando a prática se confronta com seu limite e parece não conseguir andar para a frente, é porque se faz necessário mudar de estrutura de discurso, ou seja, fazer teoria. Maneira de operar no ponto onde as diferenças entre teoria e prática se anulam para constituir uma estrutura horizontal de contínua imbricação e de passagens incessantes de um pólo a outro. Assim, poderíamos dizer com Deleuze: “a prática é um conjunto de passagens (relais) de um ponto teórico a um outro, e a teoria, uma passagem de uma prática a outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é necessário a prática para perfurar este muro”. O mesmo vale para a prática.

Os melhores momentos da filosofia contemporânea, em suas tradições mais variadas, não fizeram outra coisa que implementar tais passagens. E talvez seja uma passagem dessa natureza que está a nossa espera.

Vladimir Safatle
é professor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo

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