Darcy, 100
Darcy no Rio de Janeiro, ao chegar do exílio, em 1976 (Foto: Fundação Darcy Ribeiro)
Darcy Ribeiro orgulhava-se de seus fracassos – e, na sua própria conta, não foram poucos. Não salvou os indígenas, não escolarizou as crianças pobres, não fez a reforma agrária. Os fracassos de sua vida inteira eram, ele dizia, seus únicos orgulhos. Afinal, ele detestaria estar no lugar de quem o derrotou.
A utopia darcyniana projetou um Brasil em que os povos originários teriam direito à terra e à preservação de seus modos de existência, em que todos os brasileiros teriam acesso à escola e à civilização letrada. O intelectual expansivo vestiu muitas peles nos 74 anos de uma vida inquieta: jovem revolucionário, acadêmico indisciplinado, etnólogo, educador, ministro, vice-governador, senador. Em comum a todas, um brasileiro que pensou o Brasil como a “nova Roma”, uma civilização única erigida nos trópicos, dona de um potencial desperdiçado na indigência de sua exploração.
Em outubro, completam-se 100 anos de seu nascimento. Seu legado – seus fazimentos e sua produção teórica – continua como exemplo arquetípico de quem pensa e insiste em fazer do Brasil um país possível.
Da cidade à mata
Darcy saiu de Montes Claros, em Minas Gerais, querendo fazer-se médico em Belo Horizonte. Aborrecido com as aulas, largou o curso e foi aportar na Escola de Sociologia e Política da Universidade de São Paulo (USP), que se projetava como o mais importante centro de ciências sociais da América Latina. Sem apreço pelo elogio protocolar, era dado a críticas furiosas contra intelectuais que pareciam alheios à realidade nacional, fechados em seus próprios problemas teóricos – no mais das vezes, puras veleidades.
Darcy dizia equilibrar-se, naqueles anos, entre o estudante atento e o ativista tarefeiro. Grandiloquente, sonhava em fazer a “antropologia dos brasileiros” e almejava o martírio revolucionário de um Robespierre. Repleta de notáveis, a escola convertia-se, para Darcy, em máquina de domesticação acadêmica. “A soma de ativismo político com a herança brasilianista e o interesse pela literatura impediram que eu me convertesse num acadêmico completo, perfeitamente idiota”, escreveria em suas memórias.
Para o espanto dos colegas, aceitou o cargo de etnólogo do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e foi meter-se na mata. O espanto logo arrefeceu quando Darcy, em 1950, ganhou notoriedade com o premiado Religião e mitologia kadiwéu. “Um estudante que se debruça sobre temática indígena e que não leu Darcy Ribeiro está completamente fora da realidade brasileira”, diz a escritora e ativista indígena Eliane Potiguara. “Os feitos históricos estão gravados na mentalidade dos indígenas do Xingu.” Indígena do povo potiguara, Eliane pôde conhecer pessoalmente Darcy, que a ajudou na criação do Grupo Mulher Educação Indígena, em 1987.
À frente da Seção de Estudos do SPI, ele planejou o pioneiro Museu do Índio, inaugurado em 1953. Ao lado do colega Eduardo Galvão, concebeu a criação do Parque Indígena do Xingu. Exaurido, desencantou-se com “os velhos burocratas do SPI” e com o esvaziamento do órgão no governo de Juscelino Kubitschek.
Para Eliane Potiguara, o cenário para os povos originários é ainda desolador. “Com o projeto de lei sobre o Marco Temporal do atual governo, indígenas de todo o país estão ameaçados de perderem suas terras originárias”, diz. “Jogar povos indígenas no contexto da urbanização é acabar com a identidade desses povos e transformá-los em pedintes sem nenhuma dignidade.”
Fazimentos
Um intelectual na Inglaterra pode, se quiser, passar o tempo resolvendo palavras cruzadas – mas não no Brasil. A comparação anedótica feita durante entrevista ao programa Roda Viva, em 1995, resumia a relação intrínseca entre o pensador e o político na figura de Darcy Ribeiro. Uma produção intelectual ensimesmada não fazia sentido em um país faminto.
Para Helena Bomeny, professora de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o interesse pela diversidade cultural e pela leitura continuada dos intérpretes do Brasil produziram, no espírito de Darcy, os argumentos que ele mobilizaria em seus projetos. “Seria um esforço artificial tentar separar, em Darcy Ribeiro, a política da construção intelectual que o alimentava. Cobrava de si e dos intelectuais esta combinação, a seu juízo, indispensável aos atores imbuídos da missão intelectual de pensar o país”, afirma Bomeny, autora de Darcy Ribeiro: sociologia de um indisciplinado (2001).
Se o marechal Rondon – o santo-herói – foi a referência sobre a qual se forma o Darcy etnólogo, Anísio Teixeira – o santo-sábio – é quem faz Darcy educador e político. De início, foram mutuamente hostis. Uma conferência de Darcy sobre os povos indígenas, assistida por Anísio, desfez as animosidades e deu início a uma amizade com ressonância na história da educação no Brasil.
Eles lutaram por uma escola pública e laica capaz de abrir o acesso universal à civilização letrada. “Não nos opusemos jamais à liberdade de ensino no sentido do direito, de quem quer que seja, a criar qualquer tipo de escola a suas expensas, para dar educação do colorido ideológico que deseja”, escreveu Darcy em suas memórias. “Nos opúnhamos, isso sim, em nome dessa liberdade, a que o privatismo se apropriasse, como se apropriou, dos recursos públicos para subsidiar escolas confessionais ou meramente lucrativas.”
Em 1956, conheceu Brasília, ainda uma terra coberta de máquinas e poeira. Ali projetou uma universidade necessária, que deveria, a um só tempo, diagnosticar os problemas brasileiros e propor soluções. Em abril de 1962, seria aberta a Universidade de Brasília (UnB), seu projeto de uma instituição imbricada na vida concreta brasileira.
Para Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Darcy temperou com novos ingredientes seu aprendizado com Anísio Teixeira. “A educação pública precisaria contar com as lutas populares, estar comprometida com a superação da ‘modernização reflexa’ que realimenta a dependência, o subdesenvolvimento e enraíza, entre nós, o imperialismo cultural e científico”, explica Leher.
Ainda em 1962, a convite de João Goulart, Darcy assumiu o Ministério da Educação. No ano seguinte, chegaria à Casa Civil do governo Jango, em meio à crise que levaria ao golpe civil-militar em março de 1964. Com a companheira, a também antropóloga Berta Ribeiro, peregrina em exílio pela América, colaborando com os governos socialistas de Salvador Allende, no Chile, e de Velasco Alvarado, no Peru.
“Darcy Ribeiro realizou um balanço corajoso e profundo sobre os motivos da derrota das reformas de base em virtude do golpe empresarial-militar de 1964”, afirma Leher. “Conclui, dolorosamente, que as reformas estruturais somente são possíveis no escopo da revolução brasileira. O bloco no poder, a grande burguesia no Brasil, é autocrática e avessa a qualquer concessão substantiva em termos de direitos sociais.” Mas esperar pela revolução não era uma saída possível. “Darcy sempre enfatizou o papel construtivo dos estudantes, dos professores e das próprias instituições educacionais. Essa é uma mensagem atualíssima.”
Haveria, talvez, dois Darcys? Um sonhador da Revolução Brasileira e outro, pós-golpe, mais pragmático? Darcy nunca chegou a ser um pessimista, avalia o professor de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Fabricio Pereira da Silva. Ele fez, é verdade, autocríticas: dizia, por exemplo, que tinha passado da “revolução necessária” para a “pequena utopia”. “Essa é a chave da mudança. Darcy reduziu sua crença na inevitabilidade de uma revolução socialista, ficou menos evolucionista, menos crente das benesses das revoluções tecnológicas, bem mais cético em relação à civilização ocidental, ao eurocentrismo”, diz Fabricio, autor de Os futuros de Darcy Ribeiro (2022), com André Kozel.
De volta do exílio, Darcy retoma as utopias. Eleito em 1982 vice-governador do Rio de Janeiro na chapa de Leonel Brizola, ele põe em curso um de seus mais ambiciosos planos – os Centros Integrados de Educação Pública, os Cieps, planejados para comportar até mil alunos em tempo integral, com assistência alimentar e médico-odontológica. Foram mais de 500 Cieps erguidos e, após o fim do governo Brizola, gradualmente abandonados.
Segundo Bomeny, Darcy dizia se espantar com a reação ao programa: argumentava que seu projeto não passava do sonho de uma escola pública norte-americana e tentava, assim, desfazer as acusações que pesavam sobre os Cieps. Em suas memórias, escreveria: “Creio que o maior golpe que sofri na vida foi ver esse programa ser abandonado em plena realização, por puro sectarismo político do governo que nos sucedeu.”
Darcy, presente
A lista de fracassos que abre este texto foi feita quando Darcy recebia o título de doutor honoris causa pela Universidade de Sorbonne, em 1978. O jornalista e escritor Eric Nepomuceno lembra o comentário que o escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu quando topou com o discurso: “Essas são suas derrotas, essas são suas dignidades”.
“Neste Brasil de hoje, de 2022, vivendo sob o jugo do pior presidente da história da República, as derrotas mencionadas especificamente por Darcy se fazem mais presentes, mais gritantes que nunca”, diz Nepomuceno.
Como Darcy pensaria esse país hoje? É um exercício especulativo, mas o professor Fabricio Pereira da Silva imagina que Darcy assumiria posições mais “pós-coloniais” e “decoloniais”. “Estaria mais profundamente crítico do eurocentrismo, das ciências sociais e da academia de hoje. Estaria certamente ao lado dos indígenas, negros e mestiços brasileiros, ao lado desse ‘povo novo’, e, de algum modo (mesmo que ilógico), acreditando que este será o povo do futuro”, afirma.
Eric Nepomuceno se esquiva de imaginar o amigo no Brasil de 2022. “Nem penso nisso. Serei sincero: às vezes me alivia a dor da sua ausência pensar o quanto ele estaria sofrendo neste país destroçado.”