Gramsci: Cultura e revolução
Montagem sobre cadernos do cárcere de Gramsci (Arte: Andreia Freire)
Em 1911, Antonio Gramsci, jovem sardo pobre de meios econômicos, mas de grande inteligência, foi estudar na Universidade de Turim, a melhor universidade italiana da época, graças a uma bolsa de estudos. Em meio a muitas dificuldades materiais, estudou filologia moderna na Faculdade de Letras e Filosofia. Premido tanto pela falta de dinheiro quanto pela paixão política, Gramsci torna-se jornalista na imprensa socialista da capital do Piemonte, a cidade mais industrializada e proletarizada da época, com um forte e organizado movimento operário. Diria mais tarde que, em Turim, frequentara “a escola da classe trabalhadora”. A Primeira Guerra Mundial e, depois, a da eclosão da Revolução Russa farão o resto: dirigente primeiro do Partido Socialista e, depois, do Partido Comunista Italiano, o “desterrado” Antonio Gramsci nunca terminaria seus estudos universitários.
Se a “escolha de vida” de combatente socialista levou Gramsci a um caminho diferente daquele de professor de escola ou pesquisador universitário, sua paixão pela cultura e estudo não diminuiria, pois esta era pensada sempre em unidade com a luta pelo socialismo. Lutar pelo socialismo significava para Gramsci não apenas lutar na “frente política” ou na “frente cultural” como diziam então os socialistas, mas abrir uma terceira frente de combate: de luta pela cultura socialista, por uma visão de mundo autônoma que conquistasse as mentes das mulheres e dos homens e preparasse o socialismo com a consciência de que efetivamente “um outro mundo é possível”.
Em Turim, a cultura de Gramsci se nutriu de muitas e diversas influências, em muitos casos distantes do marxismo que prevalecia na época, fortemente influenciado pelo positivismo e contra o qual se erguia, nos primeiros lustros do século, um forte movimento filosófico e cultural antiobjetivista. O marxismo de Gramsci era, portanto, subjetivista, antideterminista, antieconomicista, influenciado pelo neoidealismo, mas também pelo pragmatismo estadunidense, pelo pensamento do filósofo francês Henri Bergson, pelas ideias do anarcossindicalista Georges Sorel e de Gaetano Salvemini, estudioso e defensor do Mezzogiorno na Itália.
Um marxismo original, portanto articulado sobre o primado absoluto e idealista da vontade. Mas a grandeza de Gramsci naqueles anos estava em outro lugar: no olhar atento, de cientista social mais do que de militante apaixonado, com o qual observava a sociedade turinense e italiana e colocava a nu os mecanismos de classe, a baixeza daquela definiria como “pequena política” e os limites históricos das classes dirigentes.
Revolução Russa
Quando a Revolução Russa de fevereiro de 1917 eclodiu, Gramsci interpretou seus acontecimentos usando as categorias culturais que tinha à disposição, exaltando o primado do sujeito e a dimensão ética do evento, com tons que poderíamos definir como kantianos e fichteanos. Meses depois, diante da Revolução de Outubro, a leitura gramsciana apenas parcialmente foi além dos limites desse marxismo idealista e voluntarista. A Revolução Russa era, nas célebres palavras de Gramsci em dezembro de 1917, “a revolução contra O Capital”, referindo-se ao livro de Karl Marx que estava, segundo o juízo do revolucionário sardo, associado a uma interpretação burguesa, economicista e determinista da realidade social. Lênin, por sua vez, teria demonstrado aquilo que a vontade revolucionária poderia fazer ao não aceitar as correntes do marxismo reformista da época, profundamente incrustrado de positivismo; ao não aceitar a concepção da história para a qual a política e as superestruturas são rigidamente determinadas pela estrutura econômica.
Com a Revolução Russa tem início uma nova fase para Gramsci, a fase da descoberta e da leitura de Lênin e, por meio dele, da conquista de um marxismo mais maduro e realista que redimensionou, pouco a pouco, o hipersubjetivismo inicial e começou a dar o justo relevo ao tema das condições objetivas e das relações de forças, tema que estará presente depois, em seus Cadernos do cárcere.
Gramsci passará por experiências difíceis e cruciais nos anos seguintes. Em primeiro lugar o biênio vermelho de 1919-1920, quando se torna um dos mais importantes e originais representantes do pensamento conselhista europeu, assumindo concretamente a direção do movimento dos conselhos de fábrica turinenses e desenvolvendo uma concepção do autogoverno da classe trabalhadora original e diversa mesmo com relação ao modelo soviético russo. Os conselhos de fábrica, para Gramsci, muito mais do que os sovietes, aprofundariam suas próprias raízes diretamente no mundo produtivo, na fábrica, e dali se espalhariam para o restante da sociedade, sempre seguindo a organização e a articulação do trabalho.
A derrota do movimento operário turinense o fez abrir os olhos, principalmente para a complexidade e variedade da situação italiana, para o fato de que nem toda Itália é Turim, e também para os limites do Partido Socialista Italiano. Desta consciência nascerá o impulso para formar rápida – e talvez apressadamente – um partido comunista na Itália. Da derrota do movimento das fábricas nasce a dramática fase da reação fascista e a derrota histórica que atinge também o movimento operário italiano. Uma situação que levou Gramsci a repensar profundamente e o predispôs a aceitar as lições do último Lênin, aquele da Nova Política Econômica (NEP) e da reflexão sobre as condições para a possibilidade de uma revolução imediata no Ocidente.
Realismo e utopia
Passando por todos esses acontecimentos históricos dramáticos, nos anos que vão de 1917 a 1926, quando é preso, Gramsci passa a repensar de modo abrangente sua bagagem teórica juvenil. Alguns fios desse pensamento anterior, e não secundário, serão reencontrados ainda nos escritos do cárcere, mas inseridos agora em um quadro diverso em muitos aspectos.
Pode-se dizer que no Gramsci maduro confluem dois grandes componentes, não apenas do marxismo, mas do pensamento político italiano: o realismo, por um lado, e a utopia, por outro. Entendendo por utopia a vontade e a esperança de mudar a situação dada, que rapidamente torna-se o impulso ao fazer política, ou a convicção de que haverá sempre espaço para a ação de um sujeito que deseje mudar uma situação dada, mas que só conseguirá fazê-lo a partir de uma atenta análise das relações de forças existentes.
O “excessivo (e, portanto, superficial e mecânico) realismo político” – segundo Gramsci – leva a renunciar à convicção de que seja possível trabalhar para mudar as relações de forças desfavoráveis. Mas a ação política que não parta de um atento reconhecimento das relações de forças conduz a derrotas catastróficas. Agora, ao lado da vontade, no Gramsci maduro está a consciência mais objetiva possível da situação, a análise minuciosa, histórica e social do terreno – principalmente nacional – sobre o qual tem lugar a luta. A luta pela revolução será possível apenas a partir – para usar palavras de Lênin – da “análise concreta da situação concreta”. E esta análise, aplicada primeiro à realidade italiana e depois ao Ocidente capitalista, leva Gramsci a concluir que uma revolução de tipo soviético não se repetiria.
Oriente e Ocidente
No cárcere, Gramsci coloca em foco a diferença entre “Oriente” e “Ocidente”, entre países atrasados e avançados e, consequentemente, entre “guerra de movimento” e “guerra de posição”, como descreve usando o léxico de seu tempo e profundamente influenciado pela experiência decisiva da Grande Guerra. Nos Cadernos, chega a afirmar que a Revolução Russa é a última revolução de características oitocentistas, a última “revolução insurrecional”, pelo menos na Europa ou no mundo avançado. Nesses países, a moderna estrutura da sociedade de massas, a nova interpenetração entre Estado e sociedade civil, o peso e a importância dos aparelhos de formação do consenso são fatores que levam o sardo a transformar profundamente o conceito de revolução, não apenas com relação à visão que ele próprio havia tido em seu período juvenil, subjetivista e idealista, mas também com relação à concepção clássica, e muitas vezes estereotipada, da tradição marxista e leninista.
Não se trata, aqui, de um afastamento de Gramsci do marxismo ou da tradição revolucionária e desembarque em uma tradição classicamente reformista, como muitas vezes se afirmou. A vontade (revolucionária) não é deixada de lado, mas ela agora parte da consciência do novo terreno em que é chamada a operar e se faz porta-voz do que Gramsci chama de reforma intelectual e moral. A vontade de mudança não deixa de estar ancorada nas classes, seu coração está no mundo econômico e das relações sociais, mas Gramsci vê toda a complexidade da ação política moderna, refuta as concepções economicistas fundadas sobre o binômio crise econômica-revolução e considera fundamentais os aparatos públicos e privados que formam o senso comum difuso. Por este motivo, ainda, considera decisivo lançar o desafio da conquista do consenso por meio de uma elaboração cultural capaz de oferecer uma alternativa abrangente, não apenas econômica, à sociedade capitalista. Desse modo, o revolucionário sardo sublinha a importância decisiva do consenso, da elaboração cultural que saiba oferecer uma nova concepção de mundo, que saiba formar um novo senso comum de massa, sempre a partir daquela leitura da sociedade dividida em classes que toma de Marx, bem como da necessidade da política de alianças que aprende com Lênin.
Trata-se de uma concepção que coloca em relevo a importância decisiva do consenso, da elaboração cultural, do senso comum difuso. Esta é a estratégia da conquista da hegemonia.
Toda a reflexão de Gramsci, seja em seus aspectos filosóficos e pedagógicos, seja em seus aspectos políticos, não esquece jamais que o objetivo, o fim da revolução (uma revolução não insurrecional, mas concebida como processo e de longa duração) é o autogoverno das mulheres e dos homens, dos produtores associados. Gramsci revoluciona o conceito de revolução e o leva à altura da época presente, em consonância com uma elaboração original de muitas das categorias mais importantes do pensamento político contemporâneo. Em primeiro lugar, elabora a categoria do Estado como Estado integral, de interpenetração dialética entre Estado e sociedade civil.
Na prisão, Gramsci compõe um novo “léxico político”. Para estudar esse novo léxico da política moderna, muitos estudiosos e estudiosas de Gramsci escreveram conjuntamente um Dicionário gramsciano (Boitempo, 2017) que ajuda a compreender a linguagem de Gramsci e o que pretendia verdadeiramente dizer com a palavra revolução: uma mudança profunda da sociedade e do mundo que partisse da cultura, do senso comum, da ideologia, capaz de evitar a revolução passiva e de conduzir os subalternos a uma nova hegemonia. Todas estas “palavras de Gramsci” que devemos conhecer e usar ainda hoje. TRADUÇÃO Alvaro Bianchi
Guido Luguori é professor de História do Pensamento Político na Università dela Calabria, na Itália, e presidente da International Gramsci Society – Itália
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Viva o pensamento de Gramsci