Criolo: ‘Você tem que estar pronto para o samba, e não o contrário’
O rapper Criolo (Foto: Caroline Bittencourt/Divulgação)
Gênero era o mais comum na periferia durante a infância do rapper, que acaba de lançar Espiral de ilusão; hoje, ao contrário, é no samba que seus fãs veem o novo
“Delação premiada, jogo de poder/ E se for pra rua tentam me deter/ Se mozinho tá longe/ Eu vivo a sofrer/ Me aposentar só depois de morrer”. Os versos, duros e críticos, são um trecho de uma das faixas do novo disco de Criolo, Espiral de ilusão. Mas não se engane: embora essas palavras possam facilmente ser encaixadas numa batida seca de rap, elas fazem parte da nova criação do músico, um álbum inteiro de samba.
Lançado em plataforma digital no último dia 28 de abril, o novo disco traz dez sambas inéditos (nove de autoria de Criolo, um de Ricardo Rabelo e Dito Silva), compostos ao longo de seus 20 anos de carreira na música e dedicados “à quebrada”, segundo o músico. A dedicatória não é leviana: a maior parte das canções têm o mesmo teor crítico e combativo de seus raps: “Menino mimado”, por exemplo, diz que “Meninos mimados não podem reger a nação”; já “Hora da decisão” canta “O tempo fechou na favela/ É fera engolindo fera/ Quem não procedê já era”. “Esse disco é uma singela homenagem ao samba”, diz Criolo à CULT.
Espiral de ilusão é o quarto álbum de estúdio de Criolo, depois de um hiato de três anos que seguiu Convoque seu buda (2014), cortado apenas por uma breve parceria com Ivete Sangalo (2015) e pelo relançamento de seu primeiro disco, Ainda há tempo, em 2016, com alterações de algumas letras machistas e transfóbicas – trabalho que Criolo dedicou à luta secundarista. “Depois de Convoque seu buda, comecei a me perceber como alguém que está envelhecendo. Algo mudou em mim”, explica. E, ainda que o artista já tenha gravado alguns sambas – como “Linha de frente”, “Fermento pra massa” e “Casa de mãe”-, de fato algo novo estava por vir depois de 2014: seu primeiro disco só de samba.
E por que escolher o gênero nessa nova fase? Para o artista, as coisas são um pouco diferentes: foi o samba quem escolheu agraciá-lo. “Você tem que estar pronto para o samba, e não o contrário. Tem que estar pronto para ter essa coragem de dividir o samba com o mundo”, explica. Criolo já escreve samba há muito tempo, pelo menos desde 2006 (quando gravou a primeira versão de Ainda há tempo) e com mais intensidade, segundo ele, entre 2008 e 2012: “O próprio Nó na orelha (2011) era para ser um disco de samba”, revela. Gravar um disco inteiro só de samba, como Espiral de ilusão, é o que Criolo chama de “sonho de menino”: algo que só aconteceu porque ele está, enfim, maduro o suficiente para isso.
Nascido e criado no Grajaú, na zona sul de São Paulo, Criolo já está na indústria da música há pelo menos 20 anos, rimando e cantando: “Esse desaguar de música que veio em forma de rap poderia muito bem ter vindo em forma de samba”. Durante a infância do músico, nos anos 1980, o samba era o ritmo mais comum na periferia, e o rap era a novidade; hoje, ao contrário, é no samba que os fãs de Criolo veem o novo: “Aconteceu uma inversão aí”, brinca.
O gênero sempre esteve presente na vida do rapper, tanto nos grupos de amigos quanto na relação com os pais e com os vizinhos do Grajaú. “O samba que descrevia o nosso cotidiano, a nossa malandragem. E eu, aos poucos, fui me aproximando, do meu jeito”, lembra. Foi da boca da mãe, Maria Vilani, e do fanatismo do pai, Cleon Gomes, por Moreira da Silva, que Criolo tirou as primeiras notas de samba. Mais tarde, entrou no Pagode da 27, grupo de pagode do Grajaú que, para o artista, reúne os grandes compositores de samba do Brasil. A partir daí, o gênero foi fazendo cada vez mais parte da vida do músico: “Você tem o Samba da Vela, o Samba na Laje, o samba na Cidade Adhemar, o Samba da Kombi. De uns tempos pra cá, eu fui me permitindo esse flerte mais íntimo”, conta, no encarte do disco.
Apesar do salto entre estilos, Criolo não considera que “abandonou” o rap, já que ambos são gêneros “irmãos”, com capacidades de resistência e criados em contextos de luta contra o racismo e a opressão de classe. Tanto é que o primeiro single lançado do disco, “Menino mimado”, é uma crítica a Michel Temer, João Dória e Geraldo Alckmin -, que, nas palavras de Criolo, “não podem reger a nação”.
Para ele, quem deve dar à arte o status de resistência não é tanto o artista, mas o ouvinte – e, por isso, não importa se o artista está fazendo samba ou rap: “A resistência pode vir de qualquer coisa, de uma ilustração, de uma fotografia, de um rap e, claro, de um samba também. Isso vai da pessoa. Resistência é algo espontâneo, natural. E se estamos precisando disso neste momento, é isso que Espiral de ilusão vai trazer”.