O incomensurável que cabe numa vida e em muitas canções

O incomensurável que cabe numa vida e em muitas canções
Caetano Veloso em live transmitida pela Globoplay na última sexta (7) (Foto: Reprodução/Globoplay)

 

Nos momentos que antecedem a esperada live de Caetano Veloso, o noticiário mostra as imagens chocantes de um garoto negro que, com seu primeiro salário, queria apenas presentear o pai com um relógio e é brutalmente agredido por seguranças de um shopping.

Com esse simbolismo absurdamente escravocrata no ar, desejando recobrar alguma fé na humanidade, reconhecer algum lastro de país e resgatar a certeza de que o Brasil é maior do que qualquer miséria afetiva, fui lembrada pelo aniversariante do dia: sim, há vida antes da morte.

Já no início da apresentação, o mundo se ilumina com “Milagres do povo”: a forma imediata de resistir aos discursos de morte, a maneira tão única de caminhar da impotência à possibilidade de narrar uma existência nos arremessa novamente para a faísca da vida. É a existência de Caetano que comemoramos: o que não recua e não cede ao horrores, que inventa uma dança na queda com aquilo que “não cabe na escravidão, não cabe no seu não”.

Disse o poeta Manuel António Pina: “já não é possível dizer mais nada / mas também não é possível ficar calado / eis o verdadeiro rosto do poema”. As canções, a voz, a presença ao lado dos filhos, tudo que em Caetano acolhe a fenda e a fissura por onde se pode reinventar o mundo, carrega também um renascer qualquer da esperança. Mesmo sabendo que se trata de narrar o inenarrável, escreveu-se uma obra que reinventa uma ideia de país.

A função do íntimo, da casa, uma intimidade que salvaguarda seu estatuto político, o respeito pela incomunicabilidade do trauma que vivemos e a busca delicada e certeira pelo incomensurável de todas as vidas. As canções e a música: uma beleza que faz brilhar a coisa, acender o dom, a dádiva. A presença receptiva ao imenso mistério da vida e que sabe encontrar pulsação, ainda que com toda a miséria que nos concerne na crueldade das relações postas e nas necessidades impostas por nossa condição.

Somos visitados, em cada música, por aquilo que não cabe: uma inscrição no mundo que é vertigem e, também, ancoragem, alguma coisa partilhada através da palavra que convoca novamente para a política do desejo. E o tempo que, para Caetano, se mistura: a existência com os filhos sustentando a força da transmissão, momento epifânico e da mais rara iluminação, testemunho de nosso tempo, uma aula de Brasil, a reconstrução tão bonita de algo que possa ser chamado de nação. Histórias de família, ali condensadas em parcerias que reinventam também a vida num campo inundado antes pela dor. Se a morte aniquila o poder de representação das palavras e revela sua insuficiência e impotência, a música de Caetano nos coloca de novo em contato com a língua como uma convocação ética que captura a um só tempo o detalhe e o absurdo, a brutalidade e a delicadeza. Suas mãos sabem do tremor do mundo e transmitem a experiência de uma vida que está sempre articulando novas inscrições do vivido.

Abismado diante de Alberto Giacometti, Jean Genet ressalta uma espécie de glória ou realeza secreta, uma majestade nua e preciosa com a qual o artista produz e inventa mundos novos. Também é com espantosa alegria que reconhecemos Caetano, que trata de todas as dimensões da vida: da beleza à ferida, ou da beleza como ferida.

O amor pela vida e pela língua, transmitido aos filhos na fragilidade ou na vertigem da queda mas, sobretudo na intensa alegria de sua presença e seu sorriso, abriga a multiplicidade de todos nós, na espessura de cada invenção: a possibilidade de cada um de tomar posse de algo do mundo frente ao impossível que nos assola.

E é possível pensar de forma insurgente o enigma que aparece em sua fulgurância, pois sua intimidade é a própria manifestação do diverso, do próprio material heteróclito de que é feita a existência: cada filho é um mundo cultivado, cada um com marcas e luz próprias.

A força de sua presença subverte a lógica perversa de poder que se instalou no país, pois estraçalha os lugares dos enunciados fálicos, convocando a potência da enunciação. Sua música é um território movediço que abriga o inquietante de todas as vidas. “Existirmos, a que será que se destina?”

Com Caetano escuto vozes que acolhem a fenda e a fissura, vozes de quem ama e reconhece a grandeza de um lugar num mundo tão árido e devastado. Escutamos o esplendor da vida de um artista aberto e poroso, que acredita nos mistérios para além de si. No seu aniversário saudamos o que sua presença faz por nós: é um caminho para a vida no inominável de uma pandemia, no absurdo de uma política predatória da alteridade, uma aposta efetiva em tantas vozes e maneiras de se inscrever no mundo.

Este ensaio é, também, uma carta endereçada ao maior artista brasileiro que, com sua cintilância, nos ajuda a encontrar lugar, voz e potência de acontecimento através dos ritmos, sons e de uma aparição que subverte o sentido de tudo para que possamos ouvir um certo burburinho, um rumor de esperança.

Da paisagem desolada de um menino negro violentamente agredido, justamente quando buscava um pai, encontramos o afeto que ensina sobre o essencial de uma vida, o grão de luz que promove uma topada no extraordinário. À música aliou-se a outra experiência, tomada em sua radicalidade: o amor. E é por ele que se dança, é nele que se move, pela graça do amor compartilhado generosamente com o mundo todo.

Suas canções nos lembram da ruína mas são, antes de mais nada, salto para a invenção, um colo e uma possibilidade de filiação. A voz invade a sala, Moreno flutua a seu lado, Tom e Zeca são acontecimentos de amor e música. As palavras se abrem e se debruçam sobre o silêncio interior das imagens, no encontro limite com a impossibilidade de dizer. E é isso a sua música: a possibilidade de sustentação da vertigem, da poesia, de um mundo heterogêneo que nos retira da repetição maquinal. Sua voz é uma ruptura do cotidiano e dos sentidos prontos: sagrado momento de poder fazer da existência um constante rasgo no totalitarismo, rompendo com o previsível, o explicável, com a ordem estabelecida.

A poesia está aí, tomando posição a partir de um pequeno espaço de onde o universo se expande: seus livros, seus discos, Tom Jobim, Bethânia, Gil, Oxóssi, a bandeira esburacada de Raul Mourão. Os signos revelam a dimensão política em seu sentido agudo, resgatam a espessura da palavra lidando, com coragem e fulgor, com o intolerável. Desse ponto mínimo – e, no entanto, grandioso – um sentido de resistência pode fazer vicejar um gesto subversivo: o ponto luminoso que preserva a possibilidade, sempre em aberto, de que um sujeito possa se contar fazendo do íntimo força política em direção ao comum. Toda a geografia de um país é delineada em suas saudações: uma ética que cabe na coragem de dizer sim e que floresce no gesto que mora na canção: “abrirmos a cabeça para que afinal floresça o mais que humano em nós”.

Bianca Dias é psicanalista, crítica de arte e escritora


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