Pixinguinha um a zero

Pixinguinha um a zero
O flautista, saxofonista, arranjador e compositor Pixinguinha (Reprodução)

 

O saudoso Ari Vasconcelos, jornalista e pesquisador pioneiro da música brasileira, escreveu nos anos 1960 uma frase que ficou famosa: “Se você dispõe de 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas se dispõe de apenas uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha”.

A frase – citada no livro de Virgínia de Almeida Bessa A escuta singular de Pixinguinha – História e música popular no Brasil dos anos 1920 e 1930 – expressa o lugar canônico que Alfredo da Rocha Vianna Filho então ocupava, e talvez ainda ocupe, no imaginário da tradição musical brasileira.

O trabalho de Bessa usa esse lugar consagrado de Pixinguinha (1897-1973) como pano de fundo para sua pesquisa e argumentação. Sem a menor iconoclastia, ele nos leva a observar sob novos ângulos a trajetória do flautista, saxofonista, arranjador e compositor, trazendo ao mesmo tempo ricas análises sobre as relações entre música e a profissionalização do entretenimento no país, no início do século 20.

Na primeira parte do livro, a autora apresenta aspectos da “paisagem sonora” em meio à qual Pixinguinha, ainda adolescente, começou a atuar como músico profissional. Rio de Janeiro, anos 1910: bandas de música, teatro de revista, comércio de partituras para piano, os pequenos grupos de música instrumental para dançar chamados de “choros” e, em menor medida, os recém-chegados discos e vitrolas, comercializados pela recém-fundada Casa Edison, eram agentes de uma música popular diversificada, internacional, ruidosa.

Composições de Pixinguinha desse período, como a famosa “Um a Zero”, inspirada por uma partida da seleção brasileira, inserem-se nesse vibrante ambiente urbano.

Na segunda parte do livro, a autora detém-se sobre a trajetória do grupo musical Os Oito Batutas (1919-1928), cujas figuras centrais foram Pixinguinha e Donga. O interesse da autora aqui é mostrar a atuação desse grupo sendo pautada pela inserção no mercado de trabalho que se criava em torno da música popular, com todas as suas injunções ligadas ao gosto volátil do público urbano e aos modismos internacionais (foxtrote, one step, jazz…).

Mais ainda, ela mostra como a imagem de fidelidade às raízes autênticas da brasilidade musical que acompanhou o grupo parcialmente durante sua existência – e cada vez mais na leitura que dele fizeram pesquisadores pioneiros como o próprio Ari Vasconcelos – se situa no mesmo quadro de profissionalização.

Constituído exclusivamente de citadinos e cariocas (com a exceção passageira de João Pernambuco, que integrou brevemente o conjunto), os Oito Batutas apresentaram-se em diversas ocasiões em versão “sertaneja”, efeito produzido por uma combinação de elementos vistos como “típicos”, que iam de figurinos a imitações de variantes dialetais do português, passando, é claro, por estilos musicais dos quais os Batutas faziam brilhantes e criativas releituras (embolada, toada, coco etc.).

Na terceira e última parte do livro, a autora detém-se no papel de Pixinguinha como arranjador para o rádio e para o disco nos anos 1930.

Aqui, é esclarecedor o contraste estabelecido com Radamés Gnattali, que viria, no final da década, a “substituir” Pixinguinha naquele papel. Até 1937, aproximadamente, este teve constante e bem-sucedida atuação como arranjador, acompanhando, à frente de grupos como os Diabos do Céu e a Orquestra Típica Pixinguinha-Donga, cantores de sucesso no momento, como Francisco Alves e Carmen Miranda.

Já no início dos anos 1940, essa atividade se reduziu drasticamente, o que se relaciona com mudanças de padrões profissionais, ideológicos e musicais na indústria do entretenimento. Apoiando-se em sólida pesquisa documental, a autora mostra que, praticamente ao mesmo tempo em que tais mudanças ocorriam, Pixinguinha passava a ser visto publicamente não mais como o músico criativo e profissional de sucesso que também era, mas sobretudo como representante das “raízes” e da tradicional “velha guarda” da música brasileira.

Radamés Gnattali, por sua vez, aliava a seu interesse pela música popular uma formação de concertista e o fascínio pelas sonoridades do jazz. Esse perfil ajudou a constituir sua reputação como exemplo mais acabado do arranjador “moderno”, o que lhe renderia ampla atuação na Rádio Nacional e na indústria do disco ao longo dos anos 1940 e depois.

O trabalho de Bessa contribuiu também para dissolver as fronteiras entre “história” e “musicologia”. Afinal, as fontes musicais que ela emprega amplamente – partituras, transcrições, arranjos, melodias – merecem constar, cada vez mais, entre fontes históricas das mais sugestivas. Pelos azares – aliás, históricos também – das divisões e regulamentações disciplinares, essas fontes pareciam até recentemente ser caça reservada de musicólogos ou etnomusicólogos. O livro aqui resenhado prova sobejamente que temos todos a ganhar com a relativização dessas divisões.

A escuta singular de Pixinguinha
Virgínia de Almeida Bessa
Alameda Editorial
344 págs.– R$ 69


CARLOS SANDRONI é professor de etnomusicologia na Universidade Federal de Pernambuco

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