Corrupção política, corrupção judicial e a dupla moral na vida pública
(Arte Andreia Freire/Revista CULT)
Os brasileiros, como sempre, estão divididos. Desta vez, a respeito dos efeitos dos vazamentos das escabrosas conversas reservadas envolvendo Moro e os promotores de Curitiba que protagonizaram a operação Lava Jato. Não é para menos. O teor das conversas é realmente muito constrangedor e seria suficiente, em qualquer lugar do mundo, para um escândalo político e jurídico de enormes proporções. Além disso, os personagens que desta vez aparecem com as mãos sujas não são os tradicionais políticos que nos acostumamos a ver correndo com malas de dinheiro ou surpreendidos com dólares nas cuecas, mas os atores fundamentais da mais vistosa ação contra a corrupção do sistema político empreendida no país.
Não é fácil assimilar que os guerreiros dourados da Lava Jato, que por quase uma década construíram para si uma reputação sem precedentes de exibir e punir exemplarmente os podres da política e as relações pornográficas da política com mundo do dinheiro, tenham sido flagrados, por sua vez, corrompendo o próprio sistema de nacional de Justiça, entregando-se a uma parcialidade vulgar e grosseira que rebaixa e desonra o próprio estado de direito. As conversas reveladas produzem em qualquer observador neutro e honesto a sensação de que, para os até ontem Arautos da Moralidade Pública e Palmatória do Mundo, corromper o sistema jurídico era considerado um preço pequeno a pagar ante a missão sublime de combater a corrupção do sistema político. Uma conclusão que é tudo, menos banal.
Historicamente, a sensação de que a corrupção é algo repugnante tem a ver com a sensibilidade presente em determinada sociedade em um exato momento. Nos últimos quinze anos, inclusive por causa dos escândalos políticos do Mensalão e do Petrolão, e do modo como eles foram tratados na esfera da Justiça, foi se intensificando no Brasil a convicção de que a corrupção política é uma praga antirrepublicana que precisava ser erradicada. Crescentemente, foi-se formando a certeza coletiva de que os tempos em que os políticos brasileiros não eram investigados, condenados e punidos precisavam urgentemente acabar. A ideia de que o sistema político, ou pelo menos a elite deste sistema, se protegia do alcance da lei e da moralidade pública por uma redoma de imputabilidade e de impunidade deu origem a um clima de indignação ética e a um sentimento generalizado de ultraje. Era preciso dar fim a este estado de coisas. O Brasil quis, como nunca, o fim da impunidade dos políticos e dos poderosos de colarinho branco que deles se servem.
De modo que quando a palavra “corrupção” se transformou no conceito-chave para expressar a revolta moral contra a impunidade dos políticos e dos donos do poder e do dinheiro, a Nação saltou em fúria e indignação para exigir o fim da corrupção e para apoiar quem demonstrasse poder colocar os corruptos na cadeia. As duas grandes rodadas de distribuição de punições ao sistema político, a do Mensalão, condensada na figura de Joaquim Barbosa, e a da Lava Jato, sintetizada em Moro, foram vividas pelo país como momentos de catarse nacional, depois de tanta indignação acumulada por anos.
Curiosamente, mesmo nesses contextos de ímpeto generalizado há sempre uma parte da sociedade que reluta. Durante anos em que o objeto da indignação moral contra a corrupção da política pelo dinheiro privado era o PT, muitos petistas recorriam ao argumento de que intenções muito elevadas não podiam ser sacrificadas apenas porque foram usados alguns expedientes para consegui-los. Na fase do Mensalão, por exemplo, prosperou a ideia de que a corrupção do sistema político, na forma da compra de apoio parlamentar de partidos da base governamental, era um mal necessário para um fim maior, a aprovação das necessárias políticas sociais. Na fase inicial do escândalo da Petrobrás, por sua vez, muitos ainda se valiam da ideia de que para conseguir o apoio de um sistema político viciado em conluios com o Setor Privado não havia outro caminho senão fechar os olhos para as inevitáveis falcatruas, que já eram parte da paisagem política.
Quando, enfim, com a Lava Jato, consolida-se a ideia de que a era da impunidade política e da impressionante tolerância política dos brasileiros ante a corrupção podia ser encerrada, eis que tudo se encaminha para uma nova dupla moral de parte da sociedade brasileira. Antes é preciso admitir, claro, que no escândalo a que assistimos, envolvendo o pessoal da Lava Jato, trata-se igualmente de corrupção, isto é, de deturpação proposital, de degradação conduzida com consciência e propósito, do sistema de produção de Justiça. Principalmente por parte do juiz do processo. Assim, a mesma mão que pune a corrupção política foi apanhada promovendo desavergonhadamente a corrupção judicial. E o curioso é que flagrado com a boca na botija, marca de batom no corpo e dinheiro na cueca, Moro e o MP recorrem ao mesmíssimo argumento que condenaram impavidamente quando usado pela política por anos, isto é, usam a qualidade moral dos fins para justificar o uso corrompido dos meios. Dizem, então, que os excelsos fins da luta contra a corrupção justificam sobejamente o uso de, digamos assim, algumas práticas pouco ortodoxas na condução daquilo que deveria ser o devido processo legal.
Assim como há petistas até hoje passam pano para os malfeitos antirrepublicanos do partido, argumentando que um sistema político projetado para o mal não lhes teria permitido fazer as políticas públicas essenciais para o país, seu grande legado, vemos hoje multidões de moristas que se comportam exatamente da mesma forma, esforçando-se desesperadamente para livrar a cara do juiz que corrompeu o sistema e para fazer vista grossa para as vergonhosas atitudes do seu líder. Afirmando, por exemplo, que um sistema judicial projetado para a impunidade não teria permitido a Moro fazer a maior devassa e a maior limpeza que já se fez no sistema político, o legado por eles reivindicado. Cada um brandindo o próprio legado e o usando para justificar a corrupção dos processos por meio do quais eles foram obtidos.
Ainda inebriada por um enorme sentimento de ódio à política e ojeriza ao PT, uma parte da sociedade não quer ver nada demais nos abusos e adulterações protagonizadas por Moro e Dallagnol. O que significa que no que concerne à indignação moral ante a corrupção da Justiça motivada por intenções políticas e ambições pessoais, uma parte da sociedade encontra-se na mesma fase em que estávamos com relação à corrupção política há 20 anos: achando tudo normal e tolerável, desde que, afinal, se entregue algum resultado importante no final do mandato. O “roubou na política, mas fez” ganhou um irmão gêmeo, o “roubou no julgamento, mas condenou o político”.
Na vida pública, contudo, não há corrupção do bem e corrupção do mal, toda corrupção é um atentado contra o bem comum e a democracia. Assim como não é aceitável a corrupção do sistema jurídico e do Estado de direito em nome do combate à corrupção da política pela economia. Toda a corrupção é uma lástima antidemocrática, não importa a grandeza do legado que dela decorre nem o julgamento que possamos fazer das intenções pessoais que a motivaram. No caso da Lava Jato, o sistema judicial foi vergonhosamente corrompido. Ponto. E isso é escandaloso e inaceitável sob qualquer ponto de vista. Ponto final.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)
(1) Comentário
Atualmente juízes, políticos e metade da sociedade de direita estão aceitando tudo (tipo vale-tudo), desde que esse tudo vá contra a política de esquerda. Isso é que podemos chamar de opção idiota.