E o ídolo, afinal, tinha pés de barro: as conversas de Moro

E o ídolo, afinal, tinha pés de barro: as conversas de Moro
O ministro Sérgio Moro, anteriormente juiz encarregado da Lava Jato (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

 

O fato político da semana começou no domingo à tarde, quando o site jornalístico The Intercept Brasil iniciou a publicação de um vasto material contendo o registro de conversas, pelo aplicativo de mensagens instantâneas Telegram, envolvendo Deltan Dallagnol, o mais ativo na esfera pública dentre os procuradores que lideram a Operação Lava Jato, e o ministro Sérgio Moro, então juiz encarregado dos casos da mesma operação. O teor das conversas revelou basicamente, nas palavras do jornalista Reinaldo Azevedo, que o juiz era efetivamente o chefe da força-tarefa de procuradores que preparavam as peças de acusação da Lava Jato. Isso quer dizer que ele aparentemente cumpria duas funções incompatíveis em um Estado de Direito: processava e condenava ao mesmo tempo.

Ora, direis, que exagero, as conversas se resumem a dizer que Moro interagiu com os procuradores, para que se fizesse Justiça. O problema é que “interagiu” aqui significa nada menos que orientou os promotores nas estratégias e táticas de acusação, sugeriu procedimentos a serem adotados ou evitados, passou-lhes indicações de pessoas a ser intimadas e dicas  de depoimentos a serem colhidos, corrigiu táticas, selecionou os membros do MP que deveriam ir às audiências, vetando os menos hábeis, incentivou comportamentos, compartilhou preocupações com os revezes, deu esporro quando necessário e, por fim, deixou claro que juiz e promotores eram um só time e um só coração. Rá! Se alguém acha isso tudo um detalhe desimportante, que só incomoda, como sugeriu o jornalista Carlos Alberto Sardenberg, quem está “em campanha aberta contra a Lava Jato”, sugiro que se faça seriamente uma pergunta: sendo você réu em algum processo, gostaria de ser julgado por um juiz que fala cotidianamente com a acusação, a instrui, sugere-lhe táticas, corrige estratégias, tudo isso porque já decidiu previamente que você é culpado e não quer que erros processuais atrapalhe a sua decisão pela condenação? Não, creio.

Pois assim estamos depois deste vazamento, que é apenas 10% do iceberg ainda submerso. Se alguém queria saber o que juízes de primeira instância, promotores, desembargadores e juízes do STF fizeram na Lava Jato quando a gente não estava olhando, eis uma boa ocasião para descobrir. Continuaram republicanos? Não parece. O seu apego ao devido processo legal era amor sincero ou só fachada para conluios embaraçosos? Era fachada sim, dizem as conversas. Devido processo legal e isenção do juiz são coisas para os amigos; já para condenar os inimigos até o juiz veste a camisa, entra em campo e dá uma força ao time do bem. Quando a gente não está vendo, os envolvidos no sistema nacional de Justiça conspiram descaradamente? Mantêm-se íntegros? Gostam mais de Justiça ou de justiçamento? Descubra tudo isso no próximo vazamento do Intercept, breve, em uma telinha de celular perto de você.

Não seria preciso dizer, mas se alguém queria alguma evidência de que a Lava Jato e o consórcio Moro-Dallagnol-TRF4 teriam sido uma arapuca bem montada e cuidadosamente ajustada e retroajustada para pegar Lula, acho que não precisa procurar mais. O vazamento do Intercept expôs os intestinos da Operação Lava Jato (que a este ponto poderia ser justamente chamada Operação Moro) e o cheiro não é bom. É verdade que, até aqui pelo menos, o material resultante do vazamento não diz que Lula não tem culpa. Nem é este o argumento aqui. Por outro lado, as conversas praticamente gritam que Sérgio Moro é culpado, sim, de não ter agido como um juiz independente e justo. Assim como o vazamento do Intercept mostra também que Dallagnol e o seu time de procuradores foram apostadores contumazes no cassino político partidário, com uma ajudinha considerável do juiz do caso. E constituíram o mais importante partido político dos últimos 4 anos, vez que foi o mais efetivo para o resultado da eleição presidencial de 2018.

Os moristas de carteirinha (e olha que eu acho que eles são em maior número que os bolsonaristas) fiquem tranquilos, porém: Sérgio Moro não vai renunciar. Moro, que o comentarista da BandNews Eduardo Oinegue esta semana chamou de “namoradinho do Brasil”, não vai sequer admitir que fez alguma coisa errada. Nem de longe lhe parece ocorrer que o seu comportamento corrompeu o devido processo legal, pedra basilar do pacto que nos ata à democracia liberal. O juiz reconhecido pela massa como o (único) dono do tema “corrupção” no Brasil não é capaz de enxergar que a sua interferência na acusação maculou, enxovalhou, corrompeu a lisura do procedimento jurídico. Com cara enfadada de quem não deve explicações a ninguém, já disse e repetiu que não vê nada demais no que fez, que é muito barulho por nada.

Moro se tornou político, mas levou para a atividade política a pior característica dos juízes, a arrogância de quem não reconhece a ninguém o direito de lhe pedir explicações, de acusá-lo, de recusar os seus argumentos. Moro veio ao mundo para julgar, não para ser julgado. Como podem os jornalistas e a opinião pública atrever-se a apontar-lhe o dedo?

Moro não vai renunciar principalmente porque é um alpinista político, de ambições gigantescas, que subiu até este ponto em marcha acelerada e avalia estar bem perto do topo. Até a semana passada, Sérgio Moro e os moristas sabiam que Jair Bolsonaro só estava guardando um lugar que todo mundo sabia que era destinado ao ex-juiz, que estava apenas esquentando a cadeira para aquele certamente a merecia mais. Moro recuar? Desistir? Ver-se novamente na planície? Voltar a uma vida sem glória, justo agora quando multidões de moristas gritam “sobe, sobe, que a gente não deixa eles te pegarem!”? Não há hipótese. Recuar é para fracos. Moro só desce se for jogado.  E não serão os princípios ou remorsos a empurrá-lo para baixo, pois Moro, como se depreende da sua reação, não trabalha com esses princípios liberais do Estado de direito. O que Moro tem é apetite. E pressa. E um conceito elevadíssimo de si mesmo.

WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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