O que fazer com a comunicação digital nociva?
(Foto: Fernando Frazão/AB)
Pessoalmente, entendo a sensibilidade ao problema e o senso de urgência que aceleram e multiplicam as iniciativas governamentais voltadas para proteger a vida pública e a democracia do que podemos chamar de comunicação digital nociva. Afinal, o presidente e o seu partido têm sido as vítimas preferenciais da guerrilha informacional baseada em fake news desde que isso se intensificou em 2016.
Além disso, o país passou pelo inferno da chamada infodemia que agravou enormemente a mortalidade da pandemia de coronavírus entre 2020 e 2022. Houve também, enfim, a Intentona Golpista de 8 de janeiro, inteiramente mobilizada e planejada em ambientes digitais, alimentada por doses diárias e gigantescas de informações falsificadas. Tudo isso gerou na sociedade e no governo a sensação de que a regeneração de uma vida pública democrática inclui necessariamente a redução destes fluxos incessantes de propaganda disfarçada de informação e o fim da manipulação massiva da população por meio da falsificação de informação e do tráfico de informação nociva.
Para agravar ainda mais a sensação de que “alguma coisa deve ser feita” tem-se o fato, que ficou óbvio para a sociedade esta semana, de que nos ambientes sociais que se estabeleceram nas plataformas digitais vêm circulando, impunemente, nas palavras da Portaria (Nº 351/2023) de Flávio Dino, “conteúdos que incentivam ataques contra o ambiente escolar ou fazem apologia e incitação a esses crimes ou a seus perpetradores”.
Professores, pais e crianças estão apavorados com a constatação de que os massacres escolares, que estão se multiplicando no país, são produtos de uma subcultura juvenil de ódio e ressentimento, de pessoas articuladas em redes que transformaram a matança de estudantes em uma forma de acumular capital social, isto é, em uma forma de consagração, recompensada pela admiração e pela memória dos que consideram os seus pares.
Não são fatos isolados, perpetrados por assassinos solitários, mas ações que ganham sentido e são recompensadas dentro de comunidades que têm seus princípios, seus valores, uma linguagem própria e as suas regras para acúmulo de prestígio e distinção. E essas comunidades são de natureza digital, são grandes redes subterrâneas que conectam digitalmente pessoas física e socialmente distantes.
Não, não há fake news envolvidas nessa cultura da matança em escolas, mas há ambientes sociais online e comunidades baseadas em plataformas e tecnologias digitais. Portanto, há também troca incessante de informação e circulação de conteúdo em redes de contato, com a consequente geração de uma identidade social e com regras do campo para a obtenção de capitais simbólicos como prestígio e reconhecimento. Ora, no culto das matanças que nos estão aterrorizando nesses dias, apresentam-se os mesmos recursos mobilizados para a constituição de comunidades baseadas em afinidades e para convocação para a ação, que estão por trás da cultura das fake news.
Temos conteúdos produzidos e difundidos online, temos contas (anônimas) articuladas em redes mediadas digitalmente – gozando, inclusive, dos sistemas de recompensas que grupos criados por afinidades costumam oferecer – e, enfim, temos sentimentos comuns de ódio e desprezo por grupos específicos, gerados e alimentados em comunidades digitais, como justificativa para a ação.
A sensação de urgência, portanto, parece justificada; os problemas começam quando as perguntas são “o que fazer?” e “com que efeito?”.
Ultimamente, as respostas têm apostado em enfrentar as empresas que fornecem o espaço social usado para a criação dessas comunidades e para a difusão de seus conteúdos, as assim chamadas empresas de plataformas ou, simplesmente, plataformas. O governo quer que, no caso de conteúdo que incentive ou glorifique matanças em escolas, as publicações sejam prontamente removidas pelas plataformas e os perfis que os publicam se sujeitem às penalidades previstas na lei. É razoável. Ainda mais considerando que o novo Twitter de Elon Musk recusou-se afrontosamente a colaborar com o Ministério da Justiça nesse quesito.
Mas, será que isso realmente resolve o problema?
Essa cultura de atentados contra escolas operou por décadas nos Estados Unidos em outros ambientes digitais menos públicos, protegidos por anonimato ou camadas de criptografia, em fóruns reservados ou na deep web, extrato subterrâneo da internet. Tecnicamente, ela não precisa da internet pública e dos ambientes digitais baseados em redes sociais para existir. Atacada nesse momento, a tendência dela seria submergir e não desaparecer. Isso ajuda? Talvez. Resolve? Dificilmente.
O que fazer, então? Efetivamente, ninguém sabe. Não há solução que não passe por algum tipo de cooperação, voluntária ou forçada, da parte das empresas de plataformas. Mas não basta. A cultura de ressentimento que levou ao culto das matanças escolares, um problema norte-americano que demos um jeito de nacionalizar, apoia-se em recursos digitais, mas não foi inventada pela digitalização do mundo.
A cultura da manipulação da informação para a satanização de adversários, para a criação de inimigos e para a mobilização sectária da sociedade, intensificou-se e ganhou nova dimensão com a cultura digital, mas não começou com ela. O que significa que, no fim do dia, teremos que lidar com o fato de que há múltiplos fatores envolvidos na constituição do tipo de sociedade que nos tornamos. Uma sociedade extremamente digitalizada, mas também com grupos usando a transformação digital para fazer de um jeito novo as velhas maldades.
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)