Cariátides

Cariátides

Não há esperança para nós, penso ao procurar a palavra Atlas na enciclopédia que eu trouxe para casa, depois de vender o apartamento no centro onde minha mãe viveu até morrer. Preocupada com meus estudos, minha mãe comprou os vinte volumes dessa anacrônica potência do ilegível de um vendedor ambulante quando eu era menina. O homem nos visitou por um ano em busca de receber o valor da prestação e ela, cheia do medo que a caracterizou até a morte, nunca permitiu que ele passasse do portão da pequena casa que habitávamos antes da mudança para o centro da cidade.

Como todo luxo, a enciclopédia era algo pouco prático, algo que se torna cada vez menos prático desde que se pode pesquisar tudo na internet. Preservar esse anacronismo, o gesto de folhar as páginas que se tornam infinitas quando comparadas ao tempo de uma vida insuficiente para elas, me parece, por algum motivo que desconheço, responsabilidade minha.

Manter vivo aquilo que já não deveria existir, talvez seja importante, eu penso, até que Susana chega pelas costas e me diz

 

Cariátides, Agnes. O nome disso são Cariátides.

No lugar daquelas mulheres carregando paredes nas costas, eu via Auxiliadora sem dinheiro para pagar o aluguel. Dinheiro que ela não tinha naquela semana, que ela não teve em semana alguma e que eu e Susana com um pouco de pena, tirávamos do nosso modesto orçamento doméstico, sem dizer nada, olhando uma para a outra, a avaliar em silêncio o cansaço de viver que pesava sobre aquele corpo velho de nossa amiga. O senso de dever quanto ao problema que não nos cabia resolver e, mesmo assim, nos interpelava era, de algum modo, uma mensagem indecifrável da vida.

A morfina não me deixa sentir nada enquanto lembro o que aconteceu. Ao lado, Susana posa para um quadro cujo pintor, escondido atrás da porta, é incapaz de reproduzir o movimento da fumaça de cigarro em suas mãos. Tento fazer foco nas páginas de papel finíssimo, não vejo bem as letras, estranho que eu possa estar tão tranquila e que a dor, assim como o pintor, esteja ausente.

A memória é de dias atrás. No ônibus cheio até Guarulhos, gente em pé. Eu buscava espaço para as pernas. A mochila nas costas fazia meu corpo inteiro pesar mais, tornando-o finalmente nítido para mim. Ou eram as mãos que me davam esse senso de nitidez. Inchadas e doloridas de uma semana inteira de trabalho árduo no posto de saúde, guardavam a frustração de não poder salvar aquelas mulheres espancadas, lábios rachados, cenhos cortados, olhos inchados, hematomas espalhados pelo corpo que transformam algumas delas em pessoas totalmente diferentes do que deveriam ser. Essas mãos grossas que são as minhas, ameaçavam soltar alguma espécie de rédea, me fazendo cair para trás. Era apavorante saber que eu teria que pegar o ônibus duas vezes antes de chegar em casa e que a vida não seria diferente na manhã seguinte e que, até chegar domingo, o mundo não seria criado pelo meu trabalho e nada do que se pudesse fazer ajudaria a escapar da repetição que é esse dia após o outro, da casa para o trabalho, passando pelo ônibus, o mesmo ônibus todos os dias, várias vezes no mesmo dia. Em pé, eu segurava na barra metálica sobre minha cabeça e suportava o peso de cada minuto fingindo, para mim mesma, que não sentia nada e que não havia nada de tão incômodo naquilo tudo.

O mundo nas minhas costas, era a imagem que se desenhava no trajeto como um fantasma branco a embaçar a janela de vidro onde pude por minutos encostar o rosto e descansar. Eu pensava na vida avaliando o domínio do fingimento de que sejamos civilizados, de que, sem reclamar, suportamos o sofrimento ao qual estávamos submetidos dentro do grande carro popular. Talvez que esse fingimento tivesse algo a ver com a máscara que Rita trouxe às escondidas da escola durante a semana, e que eu devia fazê-la devolver porque Susana não tinha paciência para essas coisas.

A máscara na minha mochila, Rita na escola e as lembranças de uma semana dura me empurravam para o fundo do grande coletivo onde era fácil odiar o mundo. Só de pensar onde estava, o cansaço parecia duplicado. O cansaço de estar e o cansaço de pensar no meu próprio cansaço. Esse era o meu destino, o cansaço a ser vivido de maneira dupla. Era assim que eu pensava naquele momento antes que as coisas tivessem sido empurradas para fora de seu lugar habitual. Agora, abrindo as páginas dessa enciclopédia em busca de Atlas, sei que as coisas nunca estiveram em um lugar habitual e que tudo o que aconteceu, estava por acontecer.

Era preciso passar no terminal de ônibus e carregar o bilhete se não quisesse voltar para casa desperdiçando mais ainda do que já tinha sido posto fora durante a semana com o valor cheio da passagem. Desde que comecei a fazer pós-graduação, depois de todos esses anos, o desconto de estudante fazia parte do orçamento doméstico. Voltar a estudar era um desejo antigo e, desde que vendemos o pequeno apartamento do centro, pude voltar a fazer isso. Agora, temos dois quartos, a sala com as estantes onde posso guardar os livros todos. Eu pensava computando, aos solavancos do ônibus, os pequenos sucessos da vida. Temos a área de serviço para guardar as bicicletas, o salão de festas onde faremos o aniversário de dez anos de Rita. Era o que me passava pela cabeça no momento da viagem rumo à escola. Eu evitava prestar atenção demais ao espaço móvel, conseguia assim, senão diminuir o cansaço, driblar aquele medo difuso que me agredia os pensamentos como um inimigo armado. Em nossa casa nova tudo é maior do que era no apartamento de minha mãe e, no entanto, custou bem mais barato. Prosseguiam meus raciocínios entregues ao barulho repetitivo do motor do ônibus. Longe do centro tudo é mais barato. Eu pensava e repensava sem avançar para os motivos concretos que constituem a diferença de preço entre os espaços da cidade. Não precisava mais trabalhar em dois hospitais para pagar o aluguel. Era como eu me compensava tendo em vista um tempo conquistado. No desconforto no ônibus eu podia ficar tranquila, eu racionalizava cada detalhe dos sofrimentos e das conquistas numa espécie de economia subjetiva compensatória. Eu me consolava com clichês. Como se ao pensar que o sol nasce e se põe todos os dias, e que era evidente que a viagem teria seu fim, a vida fosse menos pior. O fim chegava todo dia, isso era certo. Tanto como um objetivo alcançado, o que eu sabia, quanto como simples fim de linha, como vim a saber.

Susana me esperava em casa, como agora, a fumar seu cigarro, pronta a ouvir o que eu deveria lhe dizer e não consigo. Rita não sabia que eu iria buscá-la na escola e muito menos que levaria a máscara comigo para devolvê-la e que ela, como eu, estaria agora sem máscara alguma. Susana me perguntou antes que eu saísse se era realmente necessário devolver a máscara. Eu tinha certeza que sim. Ela não me contestou. Não gastava seu tempo em me questionar em horas como essa, quando eu mesma perguntava se algumas das atitudes que exigíamos de Rita desde tão pequena não seriam puro e simples exagero. Mesmo assim, eu era firme. Eu pensava na educação, sempre na educação que eu mesma não recebi e tudo me parecia justificado. Era claro que minha mãe, trabalhando o dia todo, não se ocupava muito comigo. Mas eu me ocupava com Rita. Eu pensavam, afundando um pouco mais no ônibus cujos passageiros se tornavam diferentes a cada parada. Aprendi a cuidar de mim bem cedo e agora aplicava toda a minha técnica de sobrevivência mental a suportar os solavancos inevitáveis do grande carro coletivo na velocidade alucinada com que o motorista, certamente tão cansado quanto eu, nos conduzia.

Eu pensava na vida do motorista, seus oito filhos, suas três mulheres, duas mortas, uma, a mais nova, que ainda o suportava com aquele bigode cafoníssimo, com aquela barriga vergonhosa, que literalmente o aguentava por ser inocente. Eu pensava na inocência da mulher, sem saber muito bem o que era essa inocência, uma mulher cuja imagem não ficava nítida para mim, e pensava em sua mãe morrendo no hospital, não tão velha que não se pudesse deixar de sentir pena da pobre mulher, aquela piedade que sentimos e que só o descanso quando imputado a um outro, necessário para o corpo que chega ao extremo do tempo, nos libera de sentir. Eu via a conta atrasada da energia elétrica cortada na semana passada e o banho frio de manhã cedo para tirar o suor do corpo de uma noite infernal no pequeno quarto sem ar condicionado. O desejo de um almoço que não aconteceria tão cedo corroía seu estômago a cada quilômetro rodado.

A raiva do motorista estava explicada. Eu me perguntava pela origem dessa explicação, enquanto, ao mesmo tempo, imaginava o medo da morte em luta com o desejo de morrer que nos conduzia. A imaginação incontida que Susana não parava de criticar e que Rita parecia ter herdado, construía em mim labirintos mentais sem saída. Talvez por isso, Rita tivesse pego a máscara, porque ela sabia que não bastava ser quem se é, que os pensamentos se pensam sozinhos, e que a imaginação sempre ajuda a consertar o real. E que, no meio da confusão, só as imagens servem de limite ao que podemos compreender.

A imagem do motorista era a de um pai, eu pensava, enquanto verificava se a máscara roubada por Rita estava dentro da mochila. Eu pensava nele, em sua pressa e lembrava de minha mãe a rir de um vizinho nosso, com barriga idêntica a do motorista, que a convidou num dia de verão qualquer para tomar uma cerveja. Não houve nada como um pai em nossa casa, nada como aquele homem obsceno em sua miséria exposta na forma da grande protuberância abdominal que se antepunha ao todo do seu ser. Me dei conta disso ali no ônibus. Que a barriga vinha antes como um excesso material e, ao mesmo tempo, que não houve algo como um pai em minha casa. Tampouco houve algo como uma mãe, pensei, me desculpando comigo mesma quanto ao rancor que preside esse tipo de pensamento.

Pensei muito em minha mãe naquela hora perdida sem poder ler os livros na mochila, livros que eu sempre carrego por medo do vácuo do tempo que devora qualquer usuário de transporte público em uma cidade como São Paulo, sobretudo quando se vai às cidades ao redor e se tem que viajar pela marginal de ônibus na hora do rush. Minha mãe que temia os homens, que os temia porque podiam nos maltratar, também temia a cidade grande e foi morar no centro para exorcizar o espaço e o tempo. Ela sabia que as margens da cidade dão a verdadeira dimensão do seu tamanho e que o tempo se concebe pelo espaço e pelo deslocamento, muito mais do que o contrário. Era assim que ela falava sempre que aparecia uma oportunidade de expor sua visão de mundo. Aproveitava para deixar claro, em um nexo que nunca ficou evidente para mim, que por conta desses medos, dos homens e do tempo, foi que ela jamais namorou alguém, que não deixou ninguém entrar em nossa casa. Ela fazia questão de dizer que não se podia confiar em qualquer um, muito menos em um homem. Primeiro nos maltratam, ela me disse uma vez, roubando o nosso tempo, depois nos espancam e depois nos matam. Eu não podia deixar de deduzir que o motorista era um homem e que eu, que já não tinha forças para raciocinar sobre muita coisa, cada vez mais vitimada por meus próprios pensamentos cansados e, por isso mesmo, confusos, me preocupava se devia descer do ônibus, no qual a frágil carne humana era humilhada, ou se deixava o meu questionamento dissolver-se nos meandros do acontecimento passageiro que me levaria até perto da escola de Rita.

Eu não falava dessas coisas com Susana, que foi barrada por minha mãe todo o tempo, desde o começo. Minha mãe não gostava de ninguém, também não aceitava a presença de Susana. Mas Susana entendia desde cedo o ressentimento dos personagens vivos e não se espantava com ele, como jamais se impressionou com o ar pesado daquela casa, ar que exalava do grande corpo doente de minha mãe. Não sei por que ainda penso nisso se minha mãe já morreu há mais de um ano, se eu deveria ter esquecido todos os detalhes desagradáveis que dão à vida depois da morte daqueles que amamos esse tom niilista. Um direito dos mortos é o de serem esquecidos junto de seus defeitos, penso agora. É o erro que nos mantém vivos, eu pensava naquele momento, na travessia coletiva no ônibus, e continuo a pensar agora. Hoje eu deveria lembrar de minha mãe em atitudes gentis, heroicas, como na madrugada em que me carregou nas costas, quando a água da chuva inundou nossa casa nos confins da cidade, como ela gostava de dizer, perto de onde vivo agora. Lembrar de minha mãe juntando nossas poucas roupas em uma mala, espantada com o meu retorno a esse bairro, anos depois de nossa diáspora, quando ela já não estivesse viva para dar sua opinião. Lembrar de seu sorriso monótono no dia em que voltou para me buscar depois da diáspora, depois de passado um mês em que fiquei na casa de uma amiga sua da qual nunca mais tivemos notícias. Não sei como minha mãe pagou por aquele único cômodo no Copan, aquele quarto e cozinha onde vivemos economizando passos e palavras. Nada no Centro pode ser pago, nada que envolva dinheiro tem realmente um preço, eu pensava enquanto o ônibus seguia no desaconchego ao qual somos condenados como moradores da periferia. A rigidez de minha mãe me vem à mente. Aquele olhar de dever por cumprir nunca deixou de me assistir. A disciplina também me vem à memória, e eu penso em Lúcia e seu medo do mundo com certo carinho, um carinho que eu desconhecia e que me veio à consciência no desconforto do trânsito idêntico em tudo ao seu colo cansado.

Quando pensar em coisas mais úteis é difícil, é minha mãe que ocupa todos os meus pensamentos, muito mais que Susana, muito mais que Rita. Queremos dar aos filhos o que não tivemos, eu sempre digo a Susana lembrando de minha mãe. Susana nunca contestou essa ideia tão verdadeira quanto infeliz. Ela sabe o que eu sempre quis para Rita, que também não conheceu seu pai, que não era minha filha biológica, porque Susana tinha mais condições de engravidar do que eu, mas que era, em certo sentido, mais minha filha do que de Susana, porque eu cuidava muito mais dela do que Susana era capaz, eu queria, afinal, que Rita vivesse de tudo aquilo que eu não tive. E que, desde pequena, vivesse em nome da verdade, que ela não mentisse, que ela não enganasse ninguém e que não fosse enganada, como eu mesma fui enganada e enganei, sobretudo a mim mesma. Enquanto eu meditava nesses temas, contava as paradas vendo aquele homem louco prestes a arrebentar o ônibus num muro e só o que sei agora é que o tempo retorna e não há como evitar.

O ônibus parou bruscamente me fazendo bater a cabeça na barra de metal na qual eu me segurava. O impacto me deixou meio tonta, mas não o suficiente para cair. Uma mulher gritou com o motorista enquanto era arrastada pelos demais que preferiram descer logo sem acertar contas com o homem e sua barriga a nos transportar. Desci desconfiada daquela pacifidade que evitava a briga. Ninguém se atreveu a continuar. O ônibus arrancou depressa sem dar tempo de que alguém xingasse o motorista. Caminhei do ponto de ônibus até a escola, subi cinco quadras pisando no asfalto a quarenta graus, sol do meio dia, como me dizia minha mãe que nunca deixou de se espantar com calor dos dias cada vez mais quentes mesmo no inverno. Quando cheguei na escola eu me sentia um pouco mal, a água da garrafa que levava comigo tinha acabado, sentei na mureta e me abanei com o único caderno que eu trazia na mochila enquanto tentava recuperar o fôlego. Eu podia ter descido na parada de ônibus em frente à escola e me poupado desse cansaço, mas as pessoas empurravam umas às outras para que evacuassem o carro naquela hora. O caderno que uso nas aulas de sociologia desapareceu depois disso, não imagino onde posso tê-lo deixado com as anotações de um curso sobre a história do corpo que eu vinha acompanhando desde o começo do ano e no qual eu desenhei, com os meus traços pouco desenvolvidos, a imagem de uma mulher segurando o mundo nas costas.

Entrei na escola, as paredes cheias de cartazes feitos pelos alunos, o cheiro de comida vindo da cozinha misturado ao cheiro de giz que ainda há nas escolas públicas onde a tecnologia chega muito devagar, o silêncio ameaçado pela sirene que tocou alguns minutos depois que eu cheguei. Vou devolver a máscara na secretaria, pensei, mas me dei conta de que antes talvez fosse melhor falar com a professora de Rita. Ela podia saber o que se passava, devia ter uma ideia de como aquela máscara verde tinha ido parar nas coisas de Rita e por que a própria Rita, questionada sobre um objeto tão estranho entre suas coisas, não falava sobre ela, mesmo quando eu insistia, mesmo quando Susana resolveu usar a máscara um dia inteiro sem que em momento algum Rita perguntasse por que sua mãe escondia o rosto atrás daquela coisa estranha cuja origem apenas ela mesma conhecia. Talvez a professora dissesse o mesmo que Susana, que Rita devia devolver a máscara quando quisesse ou quando pudesse, que talvez a máscara servisse a algum propósito psíquico, que nós é que não estávamos preparadas para o sentido daquela apropriação. Mas para mim o que de fato contava é que Rita portava um objeto que não era seu.

O que me trazia ali era o medo. Me dei conta naquele momento de que no fundo de tudo estava o meu medo. Um medo que me impedia de questionar como devia o gesto de Rita, de obrigá-la a devolver a máscara simplesmente, o medo de cometer um erro psicológico desses que se tornam irreparáveis e que depois, quando ficamos velhos, se ficamos velhos, nos pesa como um morto nas costas.

O medo de devolver a máscara, o medo de não devolvê-la. Aquela sensação de estar no meio de um caminho escuro entre o certo e o errado onde lâmpada alguma poderia ser acesa. Foi assim que eu entrei na escola pensando em devolver a máscara e livrar Rita de um problema e me livrar, ao mesmo tempo, desse problema que parecia meu. Entrei, dei aqueles passos hesitantes de quem se depara com a presença de uma impressionante primeira vez presidindo cada segundo próximo, olhei para os cartazes colados na parede perguntando a mim mesma por que eram todos iguais, todos mal feitos, talvez pela alegria de fazer ou pela alegria de fazer mal feito. Pensei em voltar para trás e perguntar na secretaria qual era a sala do terceiro ano, pois na porta da sala onde Rita sempre estudou uma placa sinalizava Sala de Leitura. Há quanto tempo eu não ia à escola, pensei. Por minutos, imaginei estar na escola errada, em um lugar por mim desconhecido. Susana me reprovava sempre por minha falta de radar e avisava que um dia isso me causaria problemas maiores que me perder entre as prateleiras de um supermercado ou pegar a direção contrária da rua e acabar me distanciando do meu objetivo. Susana parecia minha mãe quando falava assim. Era em Susana que eu pensava quando entrei na sala ao fundo do corredor onde cadernos abertos e mochilas penduradas davam a certeza de que as pessoas chegariam logo para retomar seus postos. Eu pensava em Susana e via minha mãe como se ela quisesse falar comigo.

As crianças vieram do recreio correndo como se o intervalo fosse uma bomba de gás que tivesse o poder não só de fazer flutuar, mas também de acelerar o movimento dos balões. O pátio ficava atrás da escola e não se ouvia nenhum som naquele lado onde ficavam as salas. A escola tinha sido instaurada em um velho prédio onde há muito tempo funcionou uma casa noturna daquelas típicas de zona de meretrício, como dizia minha mãe, e havia muitas paredes com isolamento acústico. Sinais do isopor usado nas paredes, que até então não fora revestida senão com os cartazes dos alunos, davam a dimensão do um abandono ao qual a vida se prostrava sem muita solução.

Fiquei à porta observando a professora que entrou tão acelerada quanto as crianças e, nesse ritmo, pedia que fizessem silêncio. As crianças continuavam pulando sobre as carteiras e gritando umas com as outras. A professora tentava contê-los vendo-me à porta. Iria me atender, como fez, quando eles se acalmaram ameaçados de ficar na escola por meia hora a mais depois do sinal. Uma câmera lenta parecia regular os meus movimentos em contraste com a rapidez manifesta no exterior. O barulho do vento fino a correr no encontro com as paredes apareceu quando cessou a algazarra dos pequenos.

Rita entrou na sala depois de todo mundo e fingiu não me ver. A professora veio à porta. Perguntou-me o que eu desejava. Eu, se podia falar com ela. Apesar de sua gentileza, deixou claro que tinha muito pouco tempo e me olhou nos olhos como se pedisse cumplicidade. Eu comecei a contar sobre a máscara. Expliquei-lhe que estava preocupada pelo comportamento de Rita em relação à máscara, tanto por tê-la levado para casa às escondidas, como se fosse um roubo, o que não se podia afirmar, considerando a idade de Rita e o valor simbólico da máscara, quanto por fingir que não a tinha levado mesmo quando a questionávamos abertamente sobre seu gesto evidente. Rita talvez estivesse se tornando cínica, cheguei a dizer, mas a professora riu do que pareceu um exagero e me fez sentir um pouco ridícula quanto ao meu próprio pensamento. Sem demonstrar a mesma preocupação que eu, ela chamou Rita, mas Rita fingiu estar concentrada nos cadernos. A professora parecia ler meus pensamentos e me disse que Rita ficava assim quando desenhava, que não era um fingimento. Eu expliquei da minha preocupação com a verdade, com o caráter de Rita, por isso, tinha tomado a decisão de conversar e decidir, abertamente, como me parecia mais justo, o que fazer com o caso da máscara, pois não queria cometer erro ou injustiça em relação à Rita, mas que a educação não poderia ser, dizia eu, resolvida pelo caminho mais fácil que era fingir que não se viu o que se viu. E que Rita precisava ser ajudada a resolver aquilo, pois era apenas uma criança. A professora me ouvia atenciosa, com certa impaciência escondida atrás do dever de escutar a preocupação de uma mãe de família exposta nesse tom didático como me parecia inevitável. Em uma sala de aula devia haver os casos mais complexos e a professora possivelmente fosse a depositária de muitos segredos e tensões, tantos que os considerava banais. Era o que eu pensava e o que me fazia falar naquele momento. A professora insistiu e Rita se ergueu da cadeira, olhou-me de longe fixando o olhar no meu próprio. Eu não sabia o que fazer, se sorria, se a indagava com os olhos, se enviava uma mensagem telepática dessas que se transformam em signos fisionômicos. Eu não sabia se ficava quieta ou desviava o olhar para dar tempo ao tempo.

O barulho do vento funcionava como trilha sonora. O isolamento acústico servia apenas para dar o ar de ruina ao local. A professora chamou Rita mais uma vez, mas Rita que olhava firme pra mim apenas fez um sinal entre olhos, cabeça e dedos de que ouvia o barulho do vento e voltou a sentar-se aconchegando o corpo todo em torno do desenho ao qual se dedicava desde a volta do pátio contradizendo a algazarra que voltava a aparecer. A professora decidiu ir até ela para insistir que atendesse ao seu pedido. Eu baixei a cabeça com vergonha de alguma coisa mal colocada em minhas palavras enquanto prestava atenção ao estranho barulho do vento conforme o sinal de Rita.

O barulho do vento cessou com o estrondo. As crianças me olhavam por entre uma névoa branca e Rita, bem longe de mim, tapava o rosto com as mãos. Tive tempo de ver o ônibus que avançou sobre a escola derrubando a parede e, dentro dele, o condutor cuja cabeça sangrava sobre o volante. O homem com a grande barriga estava morto e eu não sentia nada apesar da parede sobre minhas costas.

Na ambulância, ouvi que diziam quatro por um para sinalizar a pressão e depois, no hospital, o rosto branco de Susana como se, desde aquele dia, o pintor que a retrata agora tivesse disposto uma veladura sobre seus olhos para que ela não me visse nunca mais.

Os móveis permanecem manchados de branco, assim como as páginas da enciclopédia que tento ler sem muito sucesso. Rita move meus dedos dos pés perguntando quando voltarei a andar. Eu mando uma mensagem telepática dessas que viram sinais fisionômicos e ela ri me mostrando com o dedo a máscara pendurada por um fio a enfeitar a sala.

Conto publicado no Suplemento de Minas Gerais, na recente edição de novembro/dezembro, 2015, número 1363. 

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