1154876-35

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(Ilustração: @photo.jaksys)

 

Muito tempo no mesmo lugar. Não lembro se pensei ou falei, ao vê-lo descendo do mesmo lugar de onde um dia eu desci, empunhando a mesma trouxa e cometendo as mesmas gafes de procedimento. 1154876-35 era o número de registro dele. Só a camiseta que era diferente. A que ele envergava, nova, branquíssima, completamente esticada sobre o ventre, tentava em vão cumprir o propósito de cobrir o corpo, mas o máximo que conseguia fazer, não sem muito esforço, era chegar ao umbigo. A outra metade do corpo, enorme e peluda, balouçava nua o resto de sua obesidade recém-aprisionada. Somente muito tempo e lavagens depois, a camiseta, já laceada, conformar-se-ia com a sina de acompanhar a circunferência avantajada do novo hóspede. A minha foi diferente. De cor predominante e dizeres em silk iguais. Porém, diferente. Ao menos na parte prática da função. Cumpria literalmente com folga o ofício de cobrir os parcos e esquálidos quilos que tristemente eu ostentava na época. Álcool, mulheres, vida desregrada. Só me dei conta disso quando quebrei as regras e me vi descendo a alameda que ele descia.

Como sempre, apostas – a minha não verbal – e, como sempre, após uma furtiva análise do novo companheiro, acertei em todos os quesitos. Muito tempo no mesmo lugar. Não houve comemoração de minha parte instantes depois quando chegou a confirmação oficial do que eu deduzia. Tive, sim, um rápido pensamento e uma sensação boa e mesquinha, que logo convergiu para minha triste realidade. Ele ainda sairia antes de mim. Mais tarde, no quadrado pelo qual entrava o ar, avistei o homem isolado na cela isolada, meditando, revendo, dando-se conta e inteirando-se do que havia acabado de cometer. Meditei sobre a vida dele. Alguns idiotas companheiros gritaram que a matéria do gordo estava passando na TV. Não me movi. Apenas ouvi a confirmação do que eu desconfiava, dada com extensivos, mórbidos, sensacionalistas e inventados detalhes, repetidos à exaustão, acompanhados pelos sábios comentários do apresentador, nosso paladino da justiça. Ainda me orgulho de nunca ter dado audiência para esse tipo de programa.

Não fugia muito da praxe. Caucasiano, obeso, meia-idade, situação financeira definida, casava bem com morena mais jovem, fotogênica e fogosa, querendo se arranjar. O terceiro não aparecia. Nunca aparece. Mas consigo vislumbrá-lo no exato momento. Talvez ainda em choque por ter escapado da ira do corno, ou talvez já bebendo no bar e rindo vendo a matéria. A gostosa safada que se foi, e o trouxa que se afundava na cadeia por querer ter defendido a honra que não tinha. Posso até imaginar os comentários que faziam enquanto transavam, falando mal do pagador de contas. Basicamente era o que acontecia, até o dia em que Niéliton confirmou o que vinha desconfiando. Muito tempo no mesmo lugar. Lei mudando. Já vi casos de pena baixa, crime privilegiado, absolvição até, mesmo com crime praticado com extrema brutalidade e violência, mas agora dizem que a sociedade evoluiu. Mesmo o marido chegando em casa cansado do trabalho e encontrando a amada esposa nua, numa posição que ele jamais imaginou que ela seria capaz de fazer, suando e gritando para o amante não parar, o que se deve fazer é fingir que não está vendo nada, ir pro banho e perguntar pelo jantar.

Muito depois, um dos que pagam por esse tipo de crime me confidenciou que acha que aconteceu justamente por ele ter passado anos chegando, indo pro banho e perguntando pelo jantar sem dar atenção à esposa. Não defendo nenhum tipo de crime, não mais, porém, há casos peculiares, e Niéliton se encaixou em um deles. Apenas o utensílio utilizado é que destoava dos demais casos idênticos, garimpados e noticiados no dia. Foi uma miniatura da estátua da liberdade, que ironicamente o trouxe para a prisão. O trocadilho e a observação são meus; o paladino da justiça alardeava aos gritos às minhas costas a sordidez e a premeditação do assassino que, sem dar chance de defesa à esposa – ocupada e empenhada em outra atividade – teve tempo de escolher o mais cruel objeto da casa para golpeá-la na cabeça entre brados de ira.

O terceiro conseguiu fugir. Deixou a camiseta e a cueca como lembranças, mas saiu sem ser alcançado pelo peso da liberdade. Niéliton, numa fria demonstração de falsidade, ainda ligou para a emergência e, quando a ajuda chegou, chorava inconsolável e arrependido ao lado do corpo exangue e nu da mulher que amava. Fosse em tempos antigos, daria até uma boa briga, e um ótimo espetáculo de teatro no Tribunal do Júri, com um bom advogado tal como um ator tentando transmitir aos jurados uma fração do descontrole repentino que havia tirado Niéliton do seu normal, por alguns instantes apenas, diante de uma visão que nenhum marido gostaria de ter.

Honesto, trabalhador, incansável e manso pagador de impostos, jamais teve problemas com a justiça. Atuava como voluntário numa ONG, fazia doações, fantasiava-se de Papai Noel para agradar às crianças. Agora, era um de nós. Dane-se o passado. Na cadeia só conta, só vale, se for negativo. Boas ações pregressas não são boas. Não que estivesse contando, mas o homem já deveria estar no oitavo cigarro desde que passei a olhar. Olhei a quentinha amassada e retorcida no canto. Nem a morte que causou havia tirado seu apetite. Talvez até a tivesse aumentado. Cada organismo reage de uma forma a situações extremas. Pelo jeito o dele reagiu como vinha reagindo desde sempre. Comendo. Hora de apagar as luzes. Deixei o homem lá com seu farolete de nicotina na boca e fui pra cama. “Just another day in paradise”. Já me peguei pensando se Sir Elton John pensou em prisão ao compor isso. Aliás, já me peguei pensando muita coisa ao mesmo tempo. Paciência. O psicotrópico que recebo e normalmente vendo seria útil nessa noite. Tomei.

Os dias que se seguiram não foram muito diferentes de todos os outros. Execraram em todos os canais, em todos os horários, o pobre homem. Conseguiram detalhes de sua vida que ele próprio desconhecia. Inventaram outros tantos. Mais presos chegaram, um felizardo conseguiu sair. Muitas brigas, algumas tentativas de suicídio e uma que se concretizou. Essa eu sei que deu um pouco mais de trabalho para a administração. Pela forma como ocorreu. Alguns contaram sete, outros oito, outros apenas três. Mas após um tempo cessaram e, por ele ter sido colocado numa cela sozinho, que estava em reforma eterna, ninguém pôde atestar ao certo com quantas cabeçadas ele conseguiu colocar sua massa encefálica em contato direto com o concreto. Já vi filmes sobre pessoas que se mutilavam, mas um indivíduo cometer suicídio na base da pancada, muita pancada bruta, apenas para tentar incriminar os outros, pra mim foi inédito. Muito tempo no mesmo lugar, e nem tudo eu havia visto então.

Quando notei, o gordo já estava incluso em nosso convívio. O advogado que arrumou tinha malícia, passou mel em sua boca. Acreditava em absolvição: afinal, a sua mulher era uma vaca. Contudo, embora não estejamos no segundo país mais populoso da Ásia, vacas aqui também são sagradas. Representam uma vida, e uma vida ceifada, independentemente do que tenha feito. Há um preço a ser pago, e ele está sendo cada vez mais cobrado – o que acho muito justo. Não se pode matar uma pessoa por ela ter sido infiel. Não é porque estou preso que compactuo com crimes, principalmente desse tipo, mas não poderia falar isso pro cara. Vi e vejo a evolução dessa cobrança toda, mas outra regra silenciosa aqui diz que não se deve tirar a esperança de quem quer que seja, seja lá o que a pessoa tenha feito.

Eu sabia que ele iria levar uma boa madeirada. O cetro da justiça iria pesar sobre ele com mais intensidade e dor do que a escultura da liberdade havia libertado da vida promíscua sua esposa. Mas de uma coisa eu tinha certeza: ele superaria e ainda sairia antes de mim. O mel que o advogado passou surtiu efeito. Embora já tendo visto inúmeros inícios e desistências do tipo, confesso que foi, inicialmente, cômico, mas, depois, animador ver o gordo ensaiando as primeiras caminhadas. Alternava passos com baforadas, porém com o tempo a coisa foi se invertendo proporcionalmente. Bem mais passos e bem menos baforadas. Tinha uma irmã, também bem de vida e também obesa, ou melhor, ex-obesa que tinha feito bariátrica e mudado radicalmente os hábitos de vida. Até trouxe as gordices que ele pediu nas primeiras visitas, mas depois deixou claro que, se ela continuasse a visitá-lo, traria apenas coisas de sua dieta.

E assim foi indo. Legumes, proteínas, caminhadas, diminuição, até o corte total da nicotina, e advogado dando esperança. Já havia ganhado outra camiseta branca e essa teve bem menos trabalho de efetuar seu papel. Niéliton resgatou a veia atlética que nunca tivera antes. Já conseguia correr 4 km ao redor da pequena quadra de cimento, sem desfalecer de dor e cansaço. Fazia alguns exercícios físicos, e a gordura ia se dissipando do corpo. Data do julgamento se aproximando. Tão certo estava da absolvição que até já fazia contato por cartas com uma mulher da rua. Curiei em saber, apenas para comprovar minhas teses, e não me enganei. Mais nova, mais bonita, mais pobre e querendo se arranjar. Como condenar? Ambos estão corretos. Cada um com o seu corre, com os seus objetivos. E para dar mais credibilidade e senso de merecimento para os dele, havia se tornado um atleta. Natural que deduzisse merecer uma moça mais jovem, bonita.

Como sempre, apostas. Dessas eu não participo, nem em pensamento. Cada júri uma sentença. Me reservei o direito de aguardar. Na roda do baralho, a mesa estava um tanto dividida, a maior parte apostava em condenação, e o que mudava era o quantitativo da pena, mas um ou outro ainda apostava em milagre; se o quase ex- gordo se safasse, teriam cigarro pro resto do ano. Minha única opinião que se mantinha era que ele iria suportar, seja lá quanto e o que viesse. Seria numa quarta-feira, mas desde uma semana antes seu rosto estampava os jornais aos quais não gosto de assistir. Seu semblante parecia condizente com o de qualquer um que enfrentasse situação parecida. Gostaria de conseguir defini-lo, porém nem todo sofrimento e angústia consegue ser transcrito em palavras.

De certa forma seguiu quase todo o rito que todo mundo aqui segue antes de um julgamento. Ida a cultos; propósitos anunciados que nunca seriam cumpridos; ouvidos aqui, ouvidos acolá. Todo mundo tinha algum conselho, dica para dar: porque no meu júri foi assim, foi assado, deu ruim por isso; então, faça aquilo etc. Mas, se estão presos e condenados, já é mais do que um sinal de que não são bons em conselhos. De certa forma também passei por essa fase antes e sobrevivi. Condenado, mas sobrevivi. E ainda que esse aí fosse ter destino igual, sairia antes de mim, podia apostar. Com certa preocupação, comecei a perceber que ele colava muito com a turma do psicotrópico, com os dorme-sujo, os sem futuro da cadeia. Não podia fazer nada. Apenas esperar. Chegou o dia. Vimos pela TV a coisa toda. Demorou. Apagamos as luzes e fomos dormir, o cara só chegaria na madrugada, era longe. Depois chegou. Não ele, mas a notícia. Para ajudar a descer os vinte e cinco anos que levou de pena, tomou 73 comprimidos que tinha levado no corpo, sabe-se lá como, para o fórum. Depois da paulada, deixaram ele ir ao banheiro. Saiu espumando, e seu coração parou na carceragem mesmo.

Muito tempo no mesmo lugar e eu já tinha visto muita coisa, mas acertei. Em parte. O cara saiu antes de mim. Morto.

por Ronaldo Ferreira


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