As contradições da personalidade autoritária

As contradições da personalidade autoritária
(Foto: Fotos Públicas)

 

Nos Estudos sobre a personalidade autoritária, um aspecto que sobressai nas descrições dos sujeitos classificados como mais autoritários é a postura anticientificista. Tal característica decorre de sua anti-intracepção, que corresponde a uma oposição a tudo o que seja subjetivo, introspectivo, intelectual demais. Os conhecimentos produzidos por pesquisas científicas seriam substituídos por opiniões baseadas em superstições, estereotipias, cinismos, projeções de medos, desejos e fantasias – todos os ingredientes que compõem as racionalizações e fake news tão atuais.

No entanto, é também característica da personalidade autoritária ser “down-to-Earth”, isto é, ter o pé no chão, ser prático, realista. Tudo o que não parte da realidade vivida de forma socialmente hegemônica é descartado como ilusório, imaginativo, impossível. Essa descrição decorre, por sua vez, de outro atributo do mais autoritário: o convencionalismo, ou seja, a rígida aderência a valores que produzem a manutenção do status quo.

Essas são algumas das muitas contradições presentes na personalidade autoritária e que exibem os diferentes níveis de distanciamento e proximidade do mais autoritário em relação à realidade externa, à experiência, ao empírico. Antagonismos que evidenciam também a complexidade da teoria formulada por Theodor W. Adorno no que se refere à compreensão dos sujeitos estudados, da realidade e das contradições que persistem em seu “método” (sempre entre aspas) dialético.

Tais desenvolvimentos adornianos sobre a personalidade autoritária se situam em uma pesquisa que procurou provar como o fascismo não era um episódio isolado à Alemanha de Hitler. Presente de forma latente em países democráticos – como em amostras da população estadunidense nos anos 1940 –, o fascismo podia passar para uma defesa aberta de ações violentas contra minorias em momentos específicos de crise social.

Escrito quase que simultaneamente à Dialética do esclarecimento, A personalidade autoritária aborda, sob o formato de uma pesquisa empírica com base freudiana, a tão famosa dialética entre o mito e o esclarecimento de um sujeito que vive em um ambiente tecnológico avançado, mas que, ainda assim, mostra-se avesso aos avanços da ciência. O tipo antropológico autoritário é aquele que, apesar de racional, identifica-se com estereótipos e racionalizações de ódio recebidos “prontos” da indústria cultural, compartilhando ideologias socialmente produzidas sem que haja nenhum julgamento acerca da veracidade dessas informações. Suas (pseudo-)opiniões, no entanto, não passariam de uma coleção de conteúdos – denominada no livro de “padrão ideológico pessoal” – fornecidos pela cultura, conteúdos que muitas vezes apresentam contradições entre si e que se modificam conforme as necessidades pulsionais e o contexto social. Vê-se, então, como Adorno enfatiza as contradições expressas pelos entrevistados – socialmente determinados a reproduzir ideologias preconceituosas e, ao mesmo tempo, parcialmente esclarecidos quanto às próprias experiências muitas vezes opostas a tais ideologias.

Essas contradições psíquicas seriam um reflexo das próprias situações contraditórias da realidade social capitalista. A base de argumentação do livro procura expor como o autoritarismo mantém relações profundas com o modo capitalista de organização socioeconômica. Ou seja, Adorno e os membros do grupo de pesquisa social de Berkeley (Else Frenkel-Brunswik, Daniel Levinson e Nevitt Sanford) não situam a origem do preconceito em fatores psíquicos. Assim, se “Freud tinha razão onde ele não tinha razão” é porque sua descrição do ser humano é lida por Adorno como fruto do contexto em que o sujeito está inserido, como a fotografia de uma situação social registrada pela psique individual.

Da mesma forma como as ideologias tendem a naturalizar as contradições da sociedade capitalista, evitando refletir sobre elas e modificá-las, o mesmo tende a ocorrer com a personalidade autoritária. O “padrão ideológico pessoal” de cada entrevistado permanece contraditório: não produz sínteses nem reflexões, satisfazendo pulsionalmente as necessidades psíquicas conflitantes. Visto isso, o trabalho propriamente crítico a ser produzido por um estudo sobre preconceito centrado em bases psicanalíticas não seria apaziguar ou resolver contradições psíquicas (como querem os revisionistas freudianos, aos quais Adorno se opõe), mas sim denunciar essas irracionalidades como reações a antagonismos presentes na sociedade que forma esses mesmos indivíduos.

A fim de se ajustar a uma visão ideológica socialmente hegemônica que encobre as contradições sociais e naturaliza problemas do capitalismo, o autoritário deve ser “realista”, adequando-se ao status quo, sem cogitar transformá-lo. Contudo, para que tal adequação seja possível, é necessário falsear parte da realidade. Para tanto, as desigualdades e injustiças produzidas pelo capitalismo devem ser encobertas por conteúdos distantes da empiria, gerando fake news, negacionismo científico, superstições, estereotipias, projeções, personalizações, crenças.

 

O trabalho propriamente crítico a ser produzido por um estudo sobre preconceito centrado em bases psicanalíticas não seria apaziguar ou resolver contradições psíquicas, mas sim denunciar essas irracionalidades como reações a antagonismos presentes na sociedade que forma esses
mesmos indivíduos

 

 

A ênfase na contradição presente na descrição do mais autoritário expõe, portanto, a marca adorniana nos Estudos sobre a personalidade autoritária, distanciando-se das teorias psicológicas de Erich Fromm, que dominavam o cenário do Instituto de Pesquisa Social nos anos 1930. Ao mesmo tempo que deve muito a pesquisas feitas anteriormente por seus colegas frankfurtianos, como os Estudos sobre autoridade e família (de Max Horkheimer), A personalidade autoritária também se contrapõe a elas ao não centrar seu diagnóstico na concepção de caráter – entendido como uma disposição psíquica mais ou menos estável desde a infância – e ao trabalhar com os conceitos mais plásticos da metapsicologia freudiana, como inconsciente, sexualidade, pulsões. Adorno produz uma leitura de Freud que mostra uma personalidade em conflito constante com as exigências que lhe são internas e externas, ressaltando como os antagonismos, as irracionalidades e as discrepâncias não podem ser aplainados, naturalizados, mas sim assumidos como próprios da experiência humana.

É assim que Adorno expõe o mais autoritário – segundo uma antropologia que evidencia a relação entre indivíduo e sociedade pensada pelo autor. Procurando as rachaduras de uma noção de caráter pretensamente unificado, Adorno parte dos fragmentos inconscientes que, ao tentarem se integrar à personalidade, expõem as contradições próprias de indivíduos submetidos a um processo de socialização incompreensível e, ao mesmo tempo, nocivo. Uma socialização que promove a adaptação e a reprodução de uma sociedade excludente, desigual e encobridora. Os fragmentos contraditórios da psique espelham, então, a fragmentação da sociedade que, caso se revelasse de maneira límpida a seus súditos, promoveria revoltas e lutas por emancipação, e não a reprodução cega. Concentrando sua atenção nas dissonâncias conflituosas no interior da psique, Adorno procura significar a expressão do sofrimento que as contradições capitalistas causam – condição de uma vida danificada por uma totalidade que falseia parte da realidade para se manter vigente. O fracasso de uma identidade pretensamente integrada reflete o fracasso de uma sociedade cuja unidade social, proferida hegemonicamente, é apenas fictícia.

Se o preconceito não é um fenômeno gerado pela personalidade, mas tem sua origem na sociedade, então podemos vislumbrar desde já por que a psicanálise freudiana é empregada na obra para fornecer explicações antropológicas, e não precisamente psicológicas. Sem perder de vista o empírico, corporal e singular, a psicologia se converte em antropologia quando sua explicação diz mais sobre uma forma de socialização hegemônica em um momento histórico do que sobre configurações psicológicas individuais. A antropologia seria, então, um modo de expor o mais autoritário como um retrato do modo de socialização de indivíduos em dado contexto, segundo respostas psíquicas reiteradas e sedimentadas diante de situações historicamente reificadas. Por isso, tal antropologia não pode ser tomada como uma essência imutável da natureza humana, mas deve ser compreendida em sua gênese histórica para que possa ser criticada e ultrapassada. A antropologia do autoritário, por ser profundamente contraditória, reflete uma situação social em que os valores democráticos são apenas uma fachada formal, não sendo nunca levados a cabo na realidade – algo próprio de uma pseudodemocracia que carrega em si elementos autoritários de uma sociedade extremamente desigual.

E, por fim, o enfoque dado por Adorno nos aspectos contraditórios do tipo antropológico autoritário impede leituras “positivistas” da obra, aproximando a “exilada” pesquisa empírica sobre a personalidade autoritária dos principais pressupostos teóricos adornianos.

Diferenciando-se do antissemitismo religioso vivenciado em épocas anteriores, o preconceito analisado no livro seria uma forma de a totalidade capitalista administrar o descontentamento dos indivíduos submetidos a um sistema socioeconômico excludente, injusto e explorador. Essa adequação incompleta ao social deve ser continuamente reforçada para que a resistência humana, como real atividade do indivíduo, não reapareça. Por isso, a indústria cultural a serviço do capitalismo, bem como os líderes sociais que nela despontam, administram o mal-estar individual que irrompe sob a forma de pulsão de morte e agressividade, desviando-o para os alvos considerados “corretos” – em geral, grupos de minorias.

Compreende-se, então, que o que aparece como autoritário na personalidade estudada abarcaria as parcelas do indivíduo que simplesmente repercutem as determinações sociais por adequação e repetição, nas quais não há lugar para reflexão e real individuação. Em suma, aquilo que foi objetificado ou reificado na psique humana pelo capitalismo. Daí a constatação de que, como a cultura é hegemonicamente autoritária, todos os indivíduos que lhe são submetidos seriam autoritários, diferenciando-se apenas o grau maior ou menor de autoritarismo. Nesse sentido, segundo Adorno, os sujeitos da sociedade esclarecida não se comportam mais como indivíduos, mas como pseudoindivíduos, para quem está reservada somente uma pseudoatividade, ou seja, a possibilidade de apenas reagir às imposições capitalistas, em vez de modificá-las. O que se estuda no livro seria, com isso, a parcela estereotipada dos indivíduos, ou os mecanismos de cooptação das propagandas autoritárias e o que eles suscitam nos indivíduos.

Logo, o método empírico de pesquisa quantitativa, que maneja dados subjetivos de forma objetificada, seria adequado para analisar a parcela dos pseudoindivíduos que se encontra reificada pelo sistema capitalista. Estando submetidas cegamente ao universal, as qualidades únicas de cada ser humano se perdem em simples reproduções estereotipadas, mesmo quando os sujeitos estariam supostamente opinando conforme seus próprios pontos de vista. Assim, não é porque a pesquisa empírica geralmente é produzida de forma positivista que a Teoria Crítica descarta toda e qualquer relação entre teoria e empiria. O que necessita ser feito é um uso teórico adequado dos dados coletados. É por isso que, para Adorno, as investigações empíricas não podem ser desenvolvidas só por pesquisadores tradicionais, mas devem ser empreendidas por teóricos críticos.

Virginia Helena Ferreira da Costa é doutora em Filosofia pela USP


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(2) Comentários

  1. Texto incrível, ótimo para esclarecer a realidade aplicada inclusive em vários locais. As vezes sinto, que com o avanço do capitalismo neo-liberal, essa personalidade autoritária e os pseudoindividuos parecem encontrar maior espaço atualmente.

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