Arquitetura e fotografia

Arquitetura e fotografia

Peter Scheier: um fotógrafo moderno e a idéia de cidade

Conforme mostram os levantamentos e a reavaliação dos acervos e depoimentos deixados pelos fotógrafos atuantes especialmente entre os anos de 1930 e 1960, foi a partir das primeiras décadas do século 20 que as relações entre a arquitetura moderna e a fotografia se fizeram tão imbricadas que esta acabou por transformar-se em um paradigma da representação da modernidade arquitetônica. Mais que uma simples documentação a serviço da história da arquitetura e do ambiente construído, a fotografia tornou- se parte do discurso e o instrumento pelo qual os arquitetos modernos comunicaram as suas idéias sobre a arquitetura e a cidade.

Essa simbiose identificada na América do Norte entre fotógrafos e arquitetos modernos como Julius Schulman e Richard Neutra, ou o fotógrafo Ezra Stoller e seus arquitetos comitentes entre os quais Frank Lloyd Wright (1867- 1959), Mies van der Rohe (1886-1969), Marcel Breuer (1902-1981), Louis Kahn (1901-1974), Richard Meier (1934) e

Eero Saarinen (1910-1961), pode ser encontrada no Brasil entre o fotógrafo francês Marcel Gautherot (1910-1996) e o arquiteto Oscar Niemeyer (1907). Em São Paulo, profissionais da arquitetura como Rino Levi (1901-1965) e Gregori Warchavchik (1896-1972) – ele mesmo um apaixonado pela fotografia e retratista sensível – já reconheciam a importância da imagem como mediadora do objeto arquitetônico controlando a sua produção e reprodução.

A partir de uma série de imagens escolhidas no acervo Peter Scheier pertencente ao Arquivo Histórico Judaico Brasileiro/ AHJB, imagens estas que foram produzidas pelo fotógrafo imigrante Peter Scheier (1908-1979) ao longo das décadas de 1940 e 1950 nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, este artigo pretende lançar algumas hipóteses para uma análise a respeito da profunda relação que uniu fotógrafos e arquitetos modernos no Brasil, a partir da primeira metade do século 20.

Um pouco de hist ória

Scheier chegou ao Brasil em 1937, refugiado da Alemanha nazista onde nasceu no seio de uma família judaica, em 1908, na cidade de Glogau na Silésia. Seu pai, Julius Scheier, oficial do exército alemão durante a Primeira Grande Guerra, e sua mãe, Hedwig Strakosch, austríaca de origem, mantinham uma loja de departamentos em Glogau, onde Scheier cursou a escola de comércio e trabalhou junto ao pai até a ascensão do nazismo em 1933, quando se transferiu para Hohenau na Áustria, onde permaneceu até 1937 trabalhando em uma indústria de fabricação de açúcar pertencente a parentes do lado materno. Suas primeiras experiências com a fotografia foram feitas ainda na Europa, e é do período passado em Hohenau, que emerge uma primeira e particular imagem de cidade envolta em penumbra, precioso testemunho da sensibilidade do olhar do futuro fotógrafo.

Em 1937, quase às vésperas da anexação da Áustria pelos alemães (1938), Scheier chega ao Brasil com uma carta de recomendação para trabalhar no frigorífico Armour, que naquele período mantinha como política a contratação de empregados da Europa do leste e central. Para complementar seu orçamento, nas horas vagas Scheier vendia cúpulas de abajures. A dificuldade em levar sempre consigo as tais cúpulas o inspirou a fotografá-las, realizando um catálogo que a fortuna tornaria sua primeira iniciativa na profissão que, mais do que escolhida, “o escolheu”.

Entretanto, a grande oportunidade para o desenvolvimento e maturação dessa verdadeira inclinação foi o emprego como foto repórter na revista O Cruzeiro, pertencente ao grupo Diários Associados de Francisco de Assis Chateaubriand. A mais importante revista ilustrada brasileira até a década de 1960, O Cruzeiro (criada em 1928) foi responsável pela introdução do fotojornalismo como uma corrente editorial, inovação acompanhada por uma nova linguagem estética que a partir de uma maior definição gráfica e do uso da rotogravura permitiu associar imagem e texto.Scheier trabalhou na revista durante quase uma década fazendo dupla com o jornalista Nelson Candido Motta, e a sua preocupação com o apuro gráfico e a força da imagem enquanto discurso – conforme podemos comprovar pelos inúmeros álbuns que ele próprio produziu como amostragens de sua produção – parecem derivar em parte dessa vivência no corpo editorial da publicação.

Ao mesmo tempo, o trabalho no grupo dos Diários Associados lhe abriu às portas para uma segunda importante experiência profissional como fotógrafo oficial do recém-inaugurado Museu de Arte de São Paulo – MASP (1947), também uma iniciativa de Assis Chateaubriand, que havia convidado o jornalista e proprietário da Galeria Studio d’Arte Palma, de Roma, Pietro Maria Bardi (1900-1999) para a sua direção. A trajetória italiana de Bardi, personagem de destaque no movimento de difusão da vanguarda racionalista na Itália, foi incidente na formulação de um projeto para o museu paulista que, através de suas atividades didáticas e cursos nas mais diversas áreas da expressão artística, também se tornou um centro articulador e irradiador de uma cultura moderna e cosmopolita na cidade de São Paulo especialmente entre as décadas de 1940 e 1950. Se a passagem na revista O Cruzeiro permitiu o desenvolvimento do olhar do repórter, aquele que “conta uma história”, muito provavelmente foi trabalhando junto com Bardi e Lina Bo no registro das atividades do museu e na constituição do seu acervo, bem como na revista Habitat, dirigida pelo casal em São Paulo, ou ainda na documentação da produção do Studio de Arte Palma e da Fábrica de Móveis Pau Brasil Ltda; uma associação dos Bardi com o arquiteto italiano Giancarlo Palanti (1906-1977), que o fotógrafo refinou a sua perspectiva cultural sobre a arte e a arquitetura usufruindo dos conhecimentos e das experiências de editoração e fotomontagens acumuladas por Bardi como editor e redator da revista italiana Quadrante, reduto dos arquitetos racionalistas, ou mesmo da própria Lina Bo em suas passagens pelas revistas Stile, A e Domus.

Em meados dos anos 1940, o fotógrafo abriu seu próprio estúdio, o Foto Studio Peter Scheier, que funcionou até 1975 atendendo clientes das mais diversas áreas desde indústrias até a TV Record, cujos eventos Scheier registrou como fotógrafo oficial entre os anos de 1958 e 1962.

No entanto, será a sua produção como fotógrafo de arquitetura e da cidade o foco deste artigo e nesse sentido lembramos que Scheier registrou a produção dos arquitetos mais atuantes do período especialmente em São Paulo, entre eles Gregori Warchavchik (1896-1972), Rino Levi (1901-1965) e Lucjan Korngold (1897-1963), além da já citada Lina Bo Bardi (1914-1992).

 O olhar do fotógrafo

Uma primeira análise da produção de Scheier deve necessariamente passar pela sua condição de exilado, ou de estrangeiro cuja consciência de pelo menos duas culturas possibilitaria, conforme sugeriu o filólogo de origem alemã Erich Auerbach, transcender os limites nacionais e desse modo usufruir de uma originalidade de visão que permitisse reconciliar mais facilmente a idéia do universal com o particular. Nesse caso, parafraseando a arquiteta Lina Bo Bardi em sua referência ao amigo Pierre Verger, o fotógrafo francês estabelecido na Bahia, podemos afirmar que Scheier, sem se demitir de sua posição cultural “européia”, conseguiu penetrar profundamente na cidade, compreendendo seus habitantes como se ele fosse um deles, sem incorrer no folclore e nas interpretações piegas. Efetivamente, a consciência do fotógrafo – ou do foto repórter – reconhece as especificidades da cidade cujas imagens recolhe com paixão, ao mesmo tempo em que busca uma “idéia de cidade” como um modelo fundamental cuja essência poderia estar na reconciliação do fotógrafo exilado com o seu próprio destino.

E, nesse caso, as imagens urbanas recolhidas confirmam a atração de Scheier pela modernidade e pelo projeto moderno, que para ele, assim como para outros milhares de exilados europeus nas Américas, carregava o duplo significado da renovação e da utopia de uma sociedade livre das diferenças nacionais e sociais.

Talvez seja essa a chave para o entendimento do caráter essencial das imagens arquitetônicas e urbanas captadas por Scheier. O fotógrafo reafirma a modernidade através da noção de transparência que possibilita os efeitos das luzes e das sombras, mas também o jogo das reflexões. Uma idéia cara aos modernos, a arquitetura de vidro imaginada ainda na Alemanha por arquitetos como Bruno Taut (1880-1938) ou Mies van der Rohe (1886-1969) representava não somente o símbolo de uma sociedade futura orientada tecnologicamente, mas também um atributo moral e a representação de uma nova ordem social e espacial, conforme formulou Walter Benjamin (1892-1940). As cidades de Scheier são cidades transparentes não somente literalmente, mas porque condensam outras vivências e significados que os primeiros historiadores da arquitetura moderna, como Sigfried Giedion (1888-1968), atribuíram ao conceito, ou seja, a simultaneidade, a interpenetrabilidade, a sobreposição e a ambivalência, características dessa nova espacialidade que permite a percepção simultânea de diferentes planos e contextos que não necessariamente possuem a qualidade da substância concreta, mas uma transparência fenomenológica conforme o crítico da arquitetura moderna Colin Rowe (1920-1999), e uma experiência espacial que encontrou na imagem fotográfica seu melhor veículo de transmissão conforme mostraram as experiências do artista húngaro László Moholy-Nagy (1895-1946). Ao mesmo tempo, o conceito de transparência rompe a autonomia da arquitetura como disciplina, isto é, identifica as realidades urbanas – edifícios, estações, avenidas e ruas – não mais como objetos definidos, mas através de relações e interpenetrações em diversas áreas, sugerindo significados metafóricos de todo tipo, que permitem ao olhar sensível do nosso fotógrafo reconhecer o tecido urbano como um palimpsesto que recompõe e perpetua outros tempos, e seus habitantes como personagens cujas memórias alcançam outros homens tão afastados no tempo como no espaço.

A série de imagens que acompanha a construção e inauguração de Brasília, resultado de um trabalho encomendado pela agência americana PIX, é exemplar no uso dos conceitos de transparência, interpenetrabilidade, superposições e ambivalências, e ainda o espaço-tempo – a quarta dimensão que permitiu vivenciar distintas experiências espaciais simultaneamente através da transparência e da interpenetrabilidade. Nas imagens de Scheier, os edifícios projetados por Oscar Niemeyer (1907) e implantados sobre o traço de Lucio Costa (1902-1998) parecem flutuar acima do solo, os volumes se interpenetrando enquanto as rampas retilíneas e helicoidais de intensidade quase piranesiana criam uma dinâmica única que somente a fotografia é capaz de congelar.

Por outro lado essa mesma série é reveladora de outra faceta do fotógrafo Peter Scheier enquanto um homem e profissional perfeitamente inserido na cosmovisão do período que abriu o caminho para a nova sensibilidade do espaço na arquitetura enas artes, assim como para a compreensão da aliança da modernidade com os meios de comunicação e portanto com as novas tecnologias de reprodução. Le Corbusier (1887-1965), o mestre da arquitetura moderna, quando redator da revista L’Esprit Nouveau (1920-1925), já manipulava imagens fotográficas como uma verdadeira prática mediática, e as reproduções de seus edifícios foram freqüentemente mostradas em confronto com automóveis; a montagem fotográfica de Julius Shulman foi responsável pela fortuna crítica da Case Study 22, a famosa casa Kaufmann, projetada por Richard Neutra na Califórnia (1946). Assim como eles, Scheier também percebeu a importância do uso dialético das imagens na criação e transmissão de conteúdos, contrapondo-se à célebre expressão do escritor Bertolt Brecht quando este afirmava que “a simples reprodução da realidade” nunca havia dito tão pouco sobre essa mesma realidade, sugerindo que as fotografias das indústrias Krupp ou AEG alemãs não haviam contribuído com qualquer conhecimento sobre essas instituições, perdendo-se no domínio do funcional. Ao contrário, as cidades de Peter Scheier são plenas de significados e conforme escreveu Octavio Paz, “o bosque dos significados é o lugar da reconciliação”.

Anat Falbel
é engenheira civil e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo

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