Arcas de Babel: especial Louise Glück
A poeta estadunidense Louise Glück, vencedora do Nobel de Literatura em 2020 (Foto: Sigrid Estrada/AP)
A poeta estadunidense Louise Glück, ainda inédita em livro no Brasil, tinha acabado de receber o Prêmio Nobel de Literatura e já começavam a aparecer em blogs e nas redes sociais inúmeras traduções de seus poemas. Essa recepção espontânea, ainda não absorvida pelo mercado editorial, mostra a vitalidade da produção poética contemporânea e sua íntima ligação com a experiência de traduzir.
Para dar visibilidade a essas traduções brasileiras já existentes e apresentar a obra de Louise Glück a um público mais vasto, a Arca de Babel desta semana é coletiva. Essa edição especial reúne traduções de poemas de Louise Glück por seis poetas: Camila Assad, Mariana Basílio, Piero Eyben, Guilherme Gontijo Flores com Adalberto Müller e Thiago Ponce de Moraes, a quem agradeço pelas belas contribuições.
Poeta e professor de Teoria da Literatura na Universidade de Brasília, Piero Eyben assina a apresentação da obra de Glück, que segue abaixo.
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Louise Glück acaba de receber o Nobel de Literatura, o que significa que ao menos agora haverá a possibilidade de que sua poesia ganhe traduções – já há muito atrasadas – em português. A Academia Sueca justificou seu prêmio por aquilo que eles chamam de “beleza austera”, algo que já aparecia no artigo assinado por Nick Laird, para o The New York Review, em março de 2013, quando diz que “o tom é desapegado, frequentemente raivoso, às vezes irônico, sempre austero”.
É possível compreender o que a Academia Sueca quis dizer, mas prefiro imensamente o que segue a essa frase que circulou pelo mundo desde o anúncio, quando o responsável pelo comitê a compara a Emily Dickinson. Em princípio, parece ser uma comparação que não encontra respaldo na forma – versos muito mais longos em Glück, se tomarmos a amplitude da obra, muito mais desenvolvidos em termos de palavras e elementos coesivos, e mesmo mais “narrativos” –, mas a comparação é acertada porque mostra bem o modo de ver, que elas compartilham, diante de um mundo tomado por estereótipos, por modos preestabelecidos de existir; em ambas, a intransigência e esse aspecto mordaz com que lidam com suas próprias vidas.
Não podemos esquecer que a própria Louise Glück diz que escrever poesia sempre leva a uma autobiografia, “mas despida das armadilhas de cronologia e comentários, a alternação metronômica entre anedota e resposta”. E, nesse sentido, ela escreve no tom autobiográfico, mas está distante da tradição estadunidense da “poesia confessional” (como Sylvia Plath ou Anne Sexton), quando tomadas apenas nesse paradigma temático que as encerram para longe do que de fato é a poesia dessas autoras. Há um trabalho nesse “despir-se” dos elementos da vida-de-autora, que deve ser considerado a partir de um forte controle da sintaxe; da disposição de versos (ela pratica uma muito variável forma de expor a poesia); da organização da temporalidade, que varia entre memória, impressão e fatos que vão se apurando a partir do uso de tempos verbais inusitados (que são tão fluidos quanto as estações do ano que abundam nos seus poemas, sempre marcando uma observação audaciosa sobre o tempo e o sujeito). Dito de outro modo, ela realmente consegue dar essa impressão das coisas que se ganham e se perdem, ou daquilo que se ganha quando se perdeu algo – e há lugar melhor para fazer isso que a poesia?
Poderíamos dizer que sua poesia implica numa espécie de disrupção entre vida e personae, que sempre persegue a sombra de algo como um fim, um fim próximo, a consciência da devastação, da decomposição, da insuficiência experimentada a cada corpo ausente, a cada modo de tentar não se apropriar totalmente do outro, como uma responsabilidade radical. Sua poesia diz muito bem como deveríamos nos portar diante de pequenos desesperos, de grandes desesperos cotidianos. Ela faz com que questões muito íntimas realmente ganhem uma força de coletividade.
Com sua aparente simplicidade, ela consegue captar “momentos estranhos”, às vezes “no fundo fraudulentos e profundamente verdadeiros”, como diz num de seus poemas mais recentes, em que ela é capaz de pegar “palavras tão vazias e sem sentido” que “estimulam alguma emoção rememorada” que nos prende à ocasião ou aos sujeitos envolvidos. Sua poesia analisa impiedosamente as solidões criadas pela ilusão, pela falta de compreensão, num modo de dizer claríssimo em que a vida não é apenas revelada, ela é reinventada, porque ela precisa ser ensinada, colocada numa forma – ela lembra, num poema, que não é possível continuar a odiar a matéria amando a forma; e é o que ela faz.
Há diversas vozes que se respondem nos poemas, um “nós” que, mesmo que partilhe a convivência das cenas apresentadas, olha com certa distância e, com isso, pode se transformar num “você”, nunca definido se plural ou singular, sempre apontando como se para si, olhando-se do exterior. Figuras vão se formando a partir desse movimento de vozes, progredindo em ecos, conduzindo aquilo que parece uma simplicidade brutal em estar viva. Poderíamos definir essa poesia, utilizando-se de uma de suas metáforas, como o vestuário com que o corpo se converte para não deixar que uma nulificação aconteça, mesmo batido pela promessa, pela escuridão, pelo abandono, sempre, sobretudo em seus trabalhos mais recentes, apontando para esse lugar da ironia da vida comum.
A linha que liga Louise Glück à última mulher poeta agraciada com o Nobel, a polonesa Wislawa Szymborska, parece quase clara, nesse sentido. E, espero que não tomemos tanto tempo para vê-la lida em larga escala quanto foi o caso de Szymborska. Então, entre os poemas traduzidos que deixo aqui, vale lembrar sua breve conversa quando lhe foi anunciado o prêmio. Uma poeta que diz que precisa de dois minutos para tomar um café, porque, às 7 horas da manhã, tudo é muito cedo, muito novo, e não dá pra saber o que isso significa. Penso que essa é uma boa maneira e oportunidade de começar a lê-la… – Piero Eyben