Arcas de Babel: ensaio para não concluir

Arcas de Babel: ensaio para não concluir
Lavelle: Situo o projeto destas Arcas de Babel como uma intervenção modesta e concreta (Foto: Marc de Launay)

 

Desde maio, a convite de Daysi Bregantini, venho pilotando estas Arcas de Babel para a Revista Cult: série semanal de traduções de poesia feitas por poetas, concebida também como deriva e trânsito entre línguas. Iniciei esta curadoria pensando que a aventura duraria uns dois meses – prazo que então dávamos para a pandemia… – e hoje completo sete meses embarcada junto com a competente equipe editorial da Cult e trinta e quatro incríveis tradutoras e tradutores, a quem agradeço demais pelas contribuições que resultaram nas trinta primeiras edições. Chegou a hora de fazer uma parada, com a alegria de saber que içaremos vela de novo em 2021 – momento oportuno para contar de onde vem estas Arcas de Babel, e para onde desejam ir ainda.

Biblioteca em livre acesso, esta Babel não quer ser torre, mas arca de resistência ao dilúvio pandêmico que vem nos isolando em casa e fechou fronteiras nacionais, impedindo viagens e encontros internacionais. Abarca, assim, não apenas a poesia de outras línguas, mas também testemunhos e reflexões sobre a experiência de traduzir, e sobre os deslocamentos poéticos que nela se operam, sobre os efeitos e vivências que desencadeiam. Daí o título, que lembra barco e arquivo, e vem de um poema:

 

Arca de Babel

 

Era uma vez duas histórias:
a cidade em construção
era este barco à deriva.

Nele, as línguas, enroscadas,
pares híbridos e férteis,
cresciam e multiplicavam-se.

Um abarcar, muitas arcas:
esta cidade à deriva
é balbúrdia e tradução.

 

Escrevi este poema para Bye bye Babel, livro que surgiu num processo de retorno à língua materna, depois de quinze anos vivendo na França e escrevendo muito, mas apenas ensaios e artigos em francês. Processo sempre inacabado, este retorno atravessado por múltiplas e novas partidas, se inscreve no horizonte filosófico de uma reflexão sobre a experiência da pluralidade linguística e da tradução, que dialoga com minha própria escrita poética e também orienta o projeto destas Arcas de Babel. Ensaio e poema aqui conversam, convergindo, divergindo, e diferindo conclusões no movimento intermitente do interrogar.

Pensamos na densidade imediata das palavras, mas também nos servimos delas como um meio através do qual comunicamos conteúdos determinados. O pensamento vive imediatamente na linguagem, mas dela em princípio se distingue, como indica Walter Benjamin em Sobre a linguagem humana e sobre a linguagem em geral. Mas a própria palavra “linguagem” não designa uma realidade concreta, tangível: é uma abstração que empregamos comumente para falar das línguas em suas múltiplas materialidades e historicidades, sempre em transformação nos fluxos múltiplos dos discursos. Assim, a “pura linguagem” de que fala Benjamin em Sobre a tarefa do tradutor, prefacio à sua própria tradução em alemão da poesia de Baudelaire, aponta para a expressividade imediata do espírito humano em sua relação complexa com a pluralidade linguística: misterioso hiato que é condição de possibilidade da passagem entre as línguas, através da tradução.

 

O Tradutor

 

O corpo contorce
um gesto sem
som
esboça ritmos
em movimento arrítmico
dos lábios.

Entre duas tramas
(fonemas
palavras
sintagmas
sintaxes
sentidos
entre parêntesis)

um hiato:
cesura a-semântica
intervalo

e salto

 

Em seus ensaios Sobre a tradução, que traduzi em português, Paul Ricœur compreende a passagem que se opera na experiência de traduzir como “elaboração de correspondências sem adequação”, de “equivalências sem identidade”. Deixando de lado uma certa filosofia da tradução que oscila entre a tese de sua impossibilidade teórica e a constatação de sua prática efetiva, ele a concebe como “construção de comparáveis”. Além e aquém dele, pergunto-me sobre a densidade rítmica, sensível e corpórea deste salto entre línguas. Experiência desta construção silenciosa, a tradução remete, então, a um desejo que vai além da necessidade de comunicação interlinguística em sua utilidade prática.

Citando uma tradição que vai de Lutero à Benjamin, passando pelo romantismo, Ricœur afirma que o desejo de traduzir não diz respeito apenas ao sonho insensato da torre capaz de abolir a diferença entre as línguas, seja pela via iluminista da eliminação de todas as intraduzibilidades no âmbito de uma racionalidade universal, seja pela espera messiânica do advento de uma linguagem radicalmente expressiva. Segundo ele, este desejo diz respeito à descoberta das potencialidades da língua de partida e dos recursos inaproveitados da língua de chegada. Trata-se, assim, do desejo de trazer a outra língua para o processo de transformação e de reconfiguração da própria.

Talvez seja isso que a prática da tradução tem em comum com a invenção poética no interior de cada língua: o desejo de hibridizá-la, de torná-la excessiva e estranha a si mesma, mais aberta e mais fértil. Neste horizonte teórico, mas não utópico, situo o projeto destas Arcas de Babel como uma intervenção modesta e concreta. Mas diferente de Ricœur, não tenho tanta certeza quanto às fronteiras linguísticas entre o próprio e o outro, e nenhuma ilusão quanto às hierarquias cristalizadas entre línguas e culturas, em particular na recepção de obras literárias.

Por isso tenho tido o cuidado de manter nesta curadoria a maior diversidade possível aliada a estrita paridade entre mulheres e homens. E por outro lado, durante esses sete meses, também estive ocupada em traduzir poesia brasileira em francês, a convite da revista francesa Place de La Sorbonne. Desse desejo de inverter (e de multiplicar, portanto) o sentido das Arcas, certamente virão ainda muitos outros projetos.

Esta edição, que encerra o primeiro ciclo das Arcas de Babel, foi especialmente concebida como homenagem a poetas que traduzem e trazem dessa experiência materiais para a sua própria escrita, e portanto como um agradecimento especial àquelas e aqueles que contribuíram para esta série. Por isso é dupla: traduzo a poesia polifônica da francesa Catherine Weinzaepflen, e com ela trago do alemão também a austríaca Ingeborg Bachmann, uma das vozes mais fecundas do século 20, que a primeira convoca em sua própria escrita poética.

Uma arca se abre, assim, no interior de outra, como esta instigante poeta que se deixa atravessar por outras vozes poéticas, transgredindo os limites entre criação e tradução. Além das traduções de poemas e de apresentações biográficas das duas autoras, essa edição dupla inclui também uma entrevista com Catherine Weinzaepflen sobre as relações entre escrita poética, pluralidade linguística, leitura, criação e tradução em sua própria obra.

Ao traduzir em português poemas que convocam e recriam outros textos, a língua estrangeira abre-se, por assim dizer, a uma outra, a todas as outras. Essa situação de dupla (e múltipla) alteridade linguística relativiza o próprio e o estrangeiro. E levando a interrogar os limites mais íntimos da linguagem, me conduz ainda ao poema:

 

Palavra estrangeira

 

Entre palavras e coisas,
há sempre alguma distância:
na palavra, a coisa é outra
na coisa, a palavra nem é.
Mas essa coisa sonora,
que a palavra é também,
é uma forma de armadilha
pra pegar uma outra coisa.

Presa em palavra estrangeira,
uma coisa é ainda mais outra
menos diversa dela mesma
que do meu próprio silêncio.

Mas a palavra estrangeira
que tardiamente apreendi
em prévia palavra estrangeira
torna-se coisa ainda mais diversa
prendendo-me assim à primeira.

Coisa apreendida no tempo,
toda palavra é armadilha
onde eu, ela ou isto
(a coisa pensante = X)
capturada, captura-se:
toda palavra é estrangeira.

 

Patrícia Lavelle é poeta, tradutora, professora de Teoria Literária na PUC-Rio, doutora em Filosofia pela EHESS-Paris. Estreou em poesia com Bye bye Babel (7Letras, 2018, reedição prevista para 2021), que obteve a primeira menção no Prêmio Cidade de Belo Horizonte de 2016. Organizou O Nervo do poema. Antologia para Orides Fontela (Relicário, 2018) em colaboração com Paulo Henriques Britto. Publicou poemas também em antologias e revistas, entre as quais a francesa Po&sie, e numa plaquete (coleção Megamíni, 7Letras, 2017). Escreveu e organizou diversos livros de ensaios publicados na França e no Brasil. Os três poemas que dialogam com estas reflexões são de sua autoria.


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