Apagão de professores na pátria educadora
(Foto Joka Madruga / APP- Sindicato)
O segundo pior crime da ditadura militar foi não ter alfabetizado o Brasil. Apesar de Anísio Teixeira (1900-1971), Paulo Freire (1921-1997) e Darcy Ribeiro (1922-1997), a formação de um sistema educacional nunca esteve entranhada à constituição do Estado brasileiro nem a uma política que o definisse ao menos por uma temporada.
Isso representa um contraste vivo com países contíguos como a Argentina, do presidente Domingo Sarmiento (1868-1874), que estabeleceu uma ligação intrínseca entre o projeto republicano e a educação universal, pública e gratuita. Nós, nesse período, expulsávamos jesuítas; nossos republicanos, positivistas, alegorizavam o saber como uma espécie de fetiche religioso para iniciados. Nosso parque universitário é tardio, nossos sistemas de avaliação recentíssimos, a ideia de fazer do Brasil um país voltado para a educação surgiu anteontem. Guardadas as proporções de nosso complexo de renascimento, ignoramos soluções e erros encontrados em tentativas anteriores, fazendo valer apenas o último capítulo da história, cuja lembrança do processo pode ser assim economizada. É também daí que procede nosso espírito de comparação com países como a Finlândia, com grandes centros notáveis de saber, contabilizados por Nobéis, ou com experiências de excelência no ensino, medidos por ideias geniais. Há um soberbo desconhecimento do tamanho do problema brasileiro. Isso torna bizarro nos compararmos com países com populações menores do que o estado de São Paulo, intuir ideias revolucionárias sobre currículo e tecnologia e nutrir a retórica dos grandes líderes na matéria. Na verdade, a educação, em vez de ser território de todos, passou a ser tratada como terra de ninguém.
Profecia: haverá um apagão de professores no Brasil!
Em meio à série confusa e divergente de diagnósticos que já há algum tempo tem caracterizado a preocupação fundamental do Brasil nessa matéria, há uma profecia que se torna cada vez mais real: haverá um apagão de professores no país.
Depois de anos de condominização à guisa de regulamentação ou avaliação e de décadas de reciclagem de fórmulas morais, chegou a conta da nossa imprevidência.
Para a psicanálise, esse momento (em que estamos diante de um sintoma) é também a ocasião em que a estrutura do problema se apresenta de modo mais claro. O desaparecimento de interessados em formar-se em certas disciplinas não pode ser atribuído apenas aos salários, muito menos à confusão reinante em nossos modelos de formação. Ele é sintoma de que a educação transformou-se em outra experiência. Não é mais a transmissão de um saber, movida pelo desejo do professor e oferecida para aqueles que já se interrogam sobre o mundo, sobre suas letras e sua lógica muito antes dessa transmissão. Não. A educação virou outra coisa.
O metodologismo, representado tanto pela confiança em técnicas de aprendizagem como pelo sistema de individualização ou patologização do fracasso escolar, tornou-se um obstáculo para que a escola seja uma escola aprendente e para que o professor sustente aquele que seria seu desejo no ofício. Uma escola aprendente é aquela que coloca entre seus fins e no centro de suas relações a disposição ao saber, transferindo essa disposição não apenas a professores e estudantes interessados, mas também aos seus funcionários, aos pais, à sua comunidade e – o mais difícil – aos seus administradores. Uma pátria educadora deveria ser, antes de tudo, uma pátria aprendente.
As pesquisas de Maria Cristina Kupfer, Rinaldo Voltolini e Leandro de Lajonquière mostram, já há algum tempo, que a relação de aprendizagem está sobredeterminada pelo que a psicanálise chama de transferência. É assim desde o começo, quando os pais e a família transferem o encargo e a autoridade do cuidado e do ensino da criança. É assim também quando o universitário ou pesquisador formado transfere e retorna o que pode descobrir e aprender para a comunidade e para a sociedade que nele deposita um mandato simbólico. A transferência é um processo que convida continuamente a reconhecer o sujeito (referido ao saber) numa relação de suposição.
Quando Paulo Freire chamou a atenção para a importância dos contextos, das suposições e dos saberes daqueles que entram no processo de aprendizagem, destacava a importância da transferência, sobretudo, a importância do bom uso da transferência para uma educação que não se queira apenas reprodutora de opressões. Um verdadeiro professor não transmite conhecimentos ou conteúdos que ele aprendeu e domina, mas a relação que ele tem com o saber do qual também se torna autor ao tornar seu o que lhe foi legado. Isso não tem a ver, necessariamente, com vocação, paixão ou gosto, mas com certo empenho do desejo naquilo que se faz. Professores disciplinados transmitem disciplina; professores críticos transmitem perguntas; professores amorosos transmitem sua capacidade de amar; e há tantos tipos de professores quanto modos de relacionar desejo e saber. Contudo, ao apagão de professores corresponde a emergência de um novo tipo social na escola brasileira: o não professor. O não professor não é o que deixou a sala da aula, mas aquele que se tornou um gestor ou um síndico de processos educativos. Exatamente como um bom vendedor de bananas, ele não entende nada de bananas, ele apenas agencia ou administra um processo em torno delas.
O grande combate hoje em curso no que restou de nossas escolas e universidades se dá entre os que estão interessados na circulação do saber e os que estão voltados para leis, normas e regulamentos pedagógicos. Há uma inversão simples entre meios e fins: a educação baseia-se em métricas, resultados e parâmetros. Ela rapidamente produz escolas que selecionam ou segregam alunos para o ENEM, tendo em vista a criação de aparências de resultados para atrair consumidores. Essa corrupção dentro da lei é o que se ensina ao final do processo; e, como tal, é o mesmo princípio que nos leva ao ensino apostilado, às matérias pré-fabricadas, aos professores recicláveis, aos cursos e faculdades para inglês ver. Uma simples operacionalização metodológica (útil para comparar práticas, orientar intervenções pedagógicas e formar políticas públicas) bastou para criarmos um intervalo infinito entre o educar e a sua cópia imperfeita, a quase educação praticada por seu parasita, o não professor.
Patologias sociopedagógicas
Uma inversão desse tipo é o suficiente para que o desejo se transforme em outra coisa. A transferência de desejo, que caracteriza a educação, torna-se então a identificação com maneirismos verbais, máximas de doutrina e defesa de personagens. A identificação com discursos sobre a educação em vez de discursos educativos retira nosso interesse do objeto, do mundo e do outro, e promove uma intrassubjetivação da experiência de aprendizagem. Do lado do aluno, isso cria uma espécie de pragmatismo administrado, que tipicamente se observa nesse pacto de mediocridade chamado “trabalho feito em grupo”, na cronificação do professor particular ou, ainda pior, na indústria médica do doping de resultados ou da retórica psicopedagógica do fracasso escolar. Do lado do professor, isso traz uma permanente experiência de déficit em relação às idealizações que são mobilizadas para mantê-lo engajado em sua própria profissão. Desconhecendo as razões estruturais que cercam a real impossibilidade de educar alguém, ele poderá se identificar ao discurso da fé na técnica educativa, na onipotência do amor ou na suprema individualização de seus limites.
A segunda patologia social, que está na raiz de nosso vindouro apagão de professores, é a degradação do desejo em demanda. Ensinar tornou-se um horizonte infinito de preparações, dividido entre o cumprimento de tarefas e a pressão contínua dos coordenadores e administradores escolares por mais produtividade. Um desejo se transforma em demanda quando seu objeto pode ser todo “operacionalizável”: estabelece-se uma gramática de recusas, de resistências, de discordâncias, que favorece a ampla desapropriação do sujeito em relação ao desejo que o move. Toda iniciativa por parte dos professores em prosseguir sua própria experiência de saber, levar adiante sua formação e integrar-se ao universo maior da cultura é tratada como algo de sua inteira responsabilidade privada. Em outras palavras, não há nenhuma política que incentive estruturalmente (por exemplo, com financiamentos) a vida cultural dos professores, sua formação contínua, o investimento de seu desejo em cultura. Muito ao contrário, o desejo dos professores é tratado como demanda. O sistema educacional brasileiro resiste firmemente à formação cultural de seus professores. Por exemplo, no ensino universitário privado, os professores têm cargas de trinta ou quarenta horas semanais e sofrem com a intolerância de seus patrões quando pensam em fazer algum curso de pós-graduação ou extensão. Incentivo financeiro para formação é um assunto que pode dar demissão em boa parte das instituições privadas de ensino. Na universidade pública, essa patologia engendra o produtivismo pelo qual o professor é avaliado segundo o número de artigos que publica, nunca pela qualidade dos alunos que forma.
A terceira e talvez pior patologia indutora da demissão do ato de educar está na transformação do desejo em mera experiência de satisfação. A expectativa e o imperativo de que a educação seja comandada pela lei do conforto, da felicidade e da gratificação barata, aumenta assustadoramente quando se adota na escola a mentalidade do consumidor. Tomados de soberba, os pais entendem a escola (principalmente privada) como uma extensão de seu narcisismo. Nessa extensão, não vigora a lei impessoal do espaço comum para o qual transferimos nossa autoridade de pais, mas a lei caprichosa e particular da família interessada em expandir privilégios e exceções. Na escola pública especificamente, esse gozo se exerce ainda pelas mãos do Estado interessado em produzir números que justifiquem o injustificável, seja com programas de aprovação automática, seja com inclusão social desprovida das estruturas necessárias para a permanência qualitativamente significativa dos incluídos na escola. Nesse caso, o desejo é secundado pelo gozo dos direitos de todos contra todos e dos interesses de grupos contra grupos.
O não professor é aquele para quem o desejo de educar apagou-se. O desejo evadiu-se, deixando como substituto e impostor a identificação, a demanda e o gozo.
Slavoj Zizek (1949-) argumentou que a política propriamente dita está sendo substituída por outras práticas que se parecem com ela, mas não são como ela: por exemplo, a parapolítica das comunidades orgânicas ou a metapolítica dos gestores e administradores públicos. Assim também a educação está sendo substituída por outras práticas que se parecem com ela, mas não são como ela: discursos pedagógicos sobre educação, normas e regulamentos de síndicos educacionais, diagnósticos psicológicos ou demográficos, cursos e experiências de desenvolvimento pessoal, testes homogêneos e em larga escala etc. O não professor não é o professor sem recursos, sem formação ou mal pago, mas aquele que desconhece o apelo universal do desejo que constitui a sua prática. O desejo não é a vontade individualizada ou a paixão pessoal, que serão sempre bem-vindas, ainda que sejam usadas pelos cínicos de ocasião para desvalorizar quem delas padece. O desejo não é a força de pensamento, nem a persistência em um ideal, ainda que a eles sejamos gratos. O desejo é essa experiência coletiva que se transmite no presente, segundo a história dos desejos desejados dos que nos precederam, abrindo-nos um futuro indefinido e num mundo de comum pertencimento. O grande desafio para uma pátria que se quer educadora é utilizar sua força e seus meios institucionais, econômicos e jurídicos de modo que não sejam contrários aos seus fins. Em vez de apagar o professor, pague-o na moeda do reconhecimento de seu desejo.
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