Além da Bruzundanga

Além da Bruzundanga

A obra de Lima Barreto ultrapassou os limites da sátira e da crítica social, assumindo um sentido premonitório em relação aos grandes conflitos políticos e sociais do século XX

Ravel Giordano Paz

 Lima Barreto nunca foi, nem durante nem após sua vida, um autor cortejado pelos críticos. Para muitos – é claro que há exceções –, sua obra poucas vezes atingiria um nível propriamente artístico, ficando quase sempre restrita aos limites da crônica, da sátira e da crítica social. O rótulo de autor satírico, em particular, é um dos que mais se fixaram ao escritor carioca. Mesmo Triste fim de Policarpo Quaresma, geralmente considerado seu romance mais bem acabado, a ponto de alguns livros didáticos chegarem a apresentá-lo como sua única obra de certa importância, costuma ser definido como uma sátira ao ufanismo nacionalista. E se as recentes produções televisivas baseadas em histórias como “A nova Califórnia” e os contos da Bruzundanga [o país fictício criado por L.B. para parodiar o Brasil] certamente ajudaram a ampliar sua participação no repertório didático oficial, em nada contribuíram – muito pelo contrário – para livrá-lo desse estereótipo.

Não que a força de Lima Barreto não se deva, em grande parte, a sua verve satírica. Mesmo essa dimensão de sua obra, no entanto, não se limita à crítica dos costumes, dos preconceitos, do provincianismo ou da burocracia – enfim, da tragicomédia da vida prática, moral e ideológica nacional, que foi aquilo a que os padrões Globo e didático a reduziram: ela tem um alcance muito maior.

Um bom exemplo, nesse sentido, é conto “Congresso pamplanetário” (Contos & Novelas, Garnier), uma visão cáustica das relações internacionais pintada com as cores meio aberrantes de uma alegoria em forma de ficção científica. Em primeiro lugar, já no início do século XX Lima Barreto expunha a banalidade da “grande nação americana”, apresentando-a como uma grande produtora de mercadorias inúteis e descartáveis. No conto, os Estados Unidos são representados por Júpiter, um país cuja indústria cultural produzia coisas como “uma obra de 68.922 volumes, com 20.677.711 páginas, das quais 3.000.000 alvas e limpas – as melhores”, que correspondiam “às horas do sono sem sonhos” de seu autor.

Para além mesmo do vazio da sociedade de consumo, o autor aponta para algo que Baudrillard chama hoje de “êxtase da produção”: a proliferação de mercadorias a níveis estratosféricos graças ao avanço tecnológico, gerando um enorme excedente produtivo; um excedente cujo destino não poderia ser outro senão os países, ou planetas, pobres. É com o objetivo de “vender aos outros planetas farpas aperfeiçoadas, remédios para calos, toneladas de um literário papel de embrulhos e outros produtos similares de sua atividade sem limites”, e também para conquistar alguns desses planetas, que Júpiter propõe “a reunião de um Congresso pamplanetário”. Para isso, vale-se do argumento – e aqui Lima Barreto revela uma percepção antecipada do que viria a ser a guerra fria, e de como ela serviu de pretexto para a dominação norte-americana – de que é preciso “formar um espírito planetário, em contraposição ao espírito estelar” (o bloco comunista).

Assim, depois ainda de algumas farpas desferidas contra o ufanismo publicitário for export brasileiro, realiza-se o tal Congresso, regado a discursos jupiterianos sobre a fraternidade; discursos cujo cinismo o narrador não tem pudores em denunciar, explicitando, ainda na primeira metade do século, a visão dos Estados Unidos como “polícia do mundo”, papel que eles não fizeram mais do que reivindicar e exercitar desde então: “É muito cediça a manobra de Júpiter falar sempre em liberdade, fraternidade, etc. Certa vez, ele declarou guerra a Saturno, para libertar-lhe os povos. Logo, porém, que o venceu, restabeleceu a escravatura que já estava absolvida. Tal e qual a América do Norte fez com o Texas, província do México, em 1837.”

E finalmente celebra-se, sob as luzes de uma verdadeira sociedade do espetáculo – “luminárias para quem quisesse ver as fantasmagorias surpreendentes nos órgãos de publicidade” –, a “fraternidade animal” pamplanetária: “Júpiter vendeu a todos os seus irmãos toneladas de farpas, de remédios para calos, de papel literário; e isto com alguma violência, que me eximo de contar. De passagem, digo-lhes que ele ocupou um pedaço de Mercúrio. Se tais produtos não estavam completamente envenenados, foram, no entanto, deletérios. A Terra banalizou-se; Marte perdeu a inteligência; Vênus, o amor desinteressado; Neptuno, a bravura generosa; os ‘gatos’ de todos os planetas, contudo, vieram a gozar dos benefícios das instituições jupiterianas, isto é, foram expulsos da comunhão dos patrícios.”

Os gatos, aqui, representam os negros, de modo que há uma ironia feroz nessa última frase, que é a idéia de sua exclusão social como um benefício; exclusão esta que realmente acabou se concretizando, e das formas mais perversas, oficialmente no apartheid sul-africano e extra-oficialmente em muitos outros apartheids: nos processos de guetificação social que o escritor conseguiu entrever ainda em suas origens.

“Congresso pamplanetário” só não é mais profético por um detalhe: porque apostou na vitória do “espírito estelar”, ou seja, do mundo comunista, como deixa claro a última frase do conto: “Sírius nunca mais cessou de sorrir”. Seu autor não previu que até esse “espírito estelar” seria tomado pelo “espírito planetário”…

Mas o testemunho mais impressionante da argúcia de Lima Barreto ao sondar o futuro pelas sementes plantadas no presente – de, nas palavras de Fredric Jameson, “olhar as sementes do tempo e dizer qual grão crescerá e qual não” – se encontra em seu Diário íntimo (Brasiliense), numa invectiva contra o racismo cientificista de certos “sábios alemães” que chega a uma verdadeira premonição do nazismo. Essas anotações registram a expansão da idéia “de que há umas certas raças superiores e umas outras inferiores”, antevendo que se até então elas ainda se restringiam aos laboratórios científicos, “amanhã espalhar-se-ão, ficarão à mão dos políticos, cairão sobre as rudes cabeças da massa, e talvez tenhamos que sofrer matanças, afastamentos humilhantes, e os nossos liberalíssimos tempos verão uns novos judeus”.

É provavelmente no povo negro que o escritor está pensando quando se refere aos “novos judeus”. Mesmo assim, essa passagem não deixa de ser uma surpreendente premonição de quão grande e terrível seria a disseminação de um racismo amparado em falsos pressupostos científicos e articulado às concepções políticas mais sórdidas e demagógicas, algo com que o último século se defrontou à exaustão.

Um dos lugares-comuns a respeito de Lima Barreto é o de que sua obra exprimiria um profundo ressentimento pelos preconceitos e humilhações que ele e sua família experimentaram. E é partir dessa idéia que muitas vezes se explicou a presença tão marcada de elementos satíricos e caricaturais, além de fortes traços autobiográficos, em suas narrativas. Alguns dos trechos que transcrevemos não deixam dúvida de que há nisso um fundo de verdade. No Diário íntimo, o escritor chega a dar testemunho explícito da articulação entre suas amarguras e suas pretensões literárias. A certa altura, ele conta que recebeu uma carta extremamente ofensiva, acompanhada de uma caricatura em que é retratado como um macaco, e em seguida desabafa: “Desgosto! Desgosto que me fará grande!”

Mas os próprios termos em que esse “ressentimento” ganha vazão já revelam que ele se liga a uma ambição bem maior do que a pecha de escritor satírico pode dar conta. No horizonte dessa ambição está o sonho de se inscrever, de forma consistente, no rol de uma tradição literária humanista, cujo expoente maior, como testemunha seu depoimento crítico e pessoal “O destino da literatura” (Impressões de leitura, Brasiliense), Lima Barreto parecia encontrar em Dostoiévski. Nesse sentido, é preciso reconhecer que o horizonte de pelo menos determinadas representações do escritor está muito além de uma visão satírica ou moralista (o fundo de toda sátira) da vida.

Nem sempre essa dimensão mais ampla da obra de Lima Barreto foi bem realizada. Algumas de suas tentativas mais sérias, como a primeira versão de Clara dos Anjos, são também as mais problemáticas. Mas mesmo essa alegoria da humilhação não só da mulher mas da população negra no Brasil – tão explícita que, nessa versão, é no dia 13 de maio que se dá a sedução de Clara –, e cujos protagonistas são praticamente reduzidos, em sua substância humana, a tal objetivo alegórico, não deixa de conter elementos interessantes, que desvelam, por exemplo, os traços de continuidade entre as relações escravistas e as relações sociais pós-abolição, além das contradições ideológicas embutidas nesse processo.

Seria então, realmente, a excessiva subordinação da arte às experiências pessoais (ao “ressentimento”) o “problema” de Lima Barreto? A questão não é tão simples, pois o fato é que também suas melhores realizações literárias, como é o caso do próprio Triste fim de Policarpo Quaresma, são fortemente marcadas por essas experiências. Mais do que isso, é quando lhes empresta sua própria revolta – pois, sem dúvida, aquele “ressentimento” merece, por sua força e dimensão ativa, esse nome mais nobre – que o escritor consegue investir seus personagens de maior densidade humana. No caso de Quaresma, é quando ele se rebela contra Floriano Peixoto e os horrores que vivenciou na repressão à Revolta da Armada que essa densidade mais aflora.

Já Clara dos Anjos, na versão definitiva de sua história (também esta, por vezes, pouco mais do que um panfleto social e moralista), somente ao final, quando profere sua queixa patética – “Mãe, nós não somos nada nesse mundo” –, é que manifesta uma vitalidade que ultrapassa o alegórico, deixando de ser apenas um “caso exemplar” nas mãos do escritor. Bem mais substancial, no entanto, é um dos personagens secundários dessa mesma novela: o velho, fracassado e alquebrado Marramaque. É verdade que Marramaque é por vezes retratado com traços caricaturais, mas em outros momentos, como quando enfrenta o sedutor de Clara, Cassi Jones (este, talvez a primeira manifestação do moderno jovem consumista na literatura brasileira), faz-se portador da revolta mais nobre, alçando-se para muito além desses traços.

No fim das contas, é também essa identidade visceral com os “humilhados e ofendidos” – uma identidade muitas vezes problemática, atravessada pelos sentimentos mais contraditórios –, e aquilo que ela determina em termos de interesses e preocupações face à realidade, o que possibilita o alcance por vezes verdadeiramente premonitório da obra de Lima Barreto. Afinal, aquelas “sementes do tempo” ele as traz, e as sente germinar, dentro de si. No início de uma de suas narrativas mais interessantes, Vida e morte de M. J. Gonzaga, o narrador Augusto Machado contempla a Baía de Guanabara e vê espelhados em seu aspecto irregular e nas transformações que a cidade havia sofrido a origem, as dores e as lutas de seus antepassados, ao mesmo tempo que se embebe da “segurança divina” da paisagem. Muito longe da sátira, do moralismo ou da caricatura, aqui a prosa de Lima Barreto, como disse certa vez Alfredo Bosi, faz par com a poesia:

“Saturei-me daquela melancolia tangível, que é o sentimento primordial da minha cidade. Vivo nela e ela vive em mim!

“E assim, fui sentindo com orgulho que as condições de meu nascimento e o movimento de minha vida se harmonizavam – umas supunham o outro que se continha nelas; e também foi com orgulho que verifiquei nada ter perdido das aquisições de meus avós, desde que se desprenderam de Portugal e da África. Era já o esboço do que havia de ser, de hoje a anos, o homem criação deste lugar. Por isso já me apóio nas coisas que me cercam, familiarmente, e a paisagem que me rodeia, não me é mais inédita: conta-me a história comum da cidade e a longa elegia das dores que ela presenciou nos segmentos de vida que precederam e deram origem à minha.”

Ravel Giordano Paz
Mestre em teoria e história da literatura pela Unicamp e doutorando em letras clássicas e vernáculas na USP

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